A esperança nunca morre

O problema não é a quarentena em si. O problema é a incerteza.

Se alguém pudesse dizer com certeza “olha, vamos ter que ficar 3 meses em quarentena, mas depois desse prazo uma vacina milagrosa reduzirá a zero a chance de novos contágios”, estou certo de que a mudança de humor seria generalizada. As pessoas e os mercados (que nada mais são do que a expressão financeira das pessoas) comemorariam, tendo muito mais ânimo para aguentar o tranco.

Pois acredite nisso. Há uma rede nunca vista de cientistas trabalhando para encontrar a tal “vacina milagrosa”. É difícil que seja daqui a 3 meses, mas é questão de “quando”, não de “se”. Enquanto isso, é importante procurar “achatar” a curva de contaminação, para que o sistema de saúde dê conta, como estão fazendo todos os países do mundo. O importante é ter fé de que isso terá um fim.

Números mascarados

Alguns dias atrás, comentei trabalho do Imperial College de Londres, que vem embasando a resposta ao coronavírus mundo afora. Segundo as simulações do ICL, a província de Hubei, que tem a mesma população da Itália, deveria ter tido 15 mil mortes pelo vírus se adotasse a política de supressão precoce, a mais draconiana. A China reportou 3 mil.

Minha hipótese é de que, ou eles tinham adotado medidas ainda mais duras de contenção, ou os números estavam subestimados. Bem, começa a surgir a verdade.

Dilmavírus

O impacto das medidas de isolamento social serão terríveis para a atividade econômica. Isso já sabemos. Mas quão terríveis?

Os primeiros chutes dos economistas do mercado financeiro indicam perdas do PIB neste ano que vão de -1% a -4%. Sem dúvida, uma grande desaceleração.

Fiquei tentando lembrar da última vez que isso aconteceu. Não foi difícil. Isso aconteceu recentemente. Não uma vez, mas duas.

Nos anos de 2015 e 2016, o PIB brasileiro recuou entre 3,5% e 4,0%. Sim, não um ano, mas dois anos seguidos. Foi o efeito do Dilmavírus.

Claro que hoje a coisa assusta mais, pois é um grande impacto no curtíssimo prazo, dando uma sensação muito ruim, como se estivéssemos em um carro que brecasse violentamente.

Além disso, não quero passar a impressão de menosprezar os efeitos deletérios da desaceleração que enfrentaremos. Serão meses bem sofridos. A comparação com um período péssimo não torna melhor um período ruim.

Mas, olhando em perspectiva, conseguimos, aos trancos e barrancos, sair daquele buraco. Sequelas ficaram, como o grande desemprego que ainda assola o país. Mas vamos caminhando.

Conseguiremos sair deste buraco também. Se sobrevivemos ao Dilmavírus, o coronavírus é fichinha.

Estatísticas da Covid-19

Hoje trago 4 gráficos, dois com o número de novos casos e dois com o número de mortes. Todos os gráficos trazem a média móvel dos últimos 3 dias, sempre em relação à população dos países/regiões.

A boa notícia é que parece que o número de novos casos parece estar se estabilizando de maneira geral na Europa, em todos os países. O patamar ainda é alto, mas não está mais crescendo. Nos EUA, o número de novos casos parece estar se desacelerando, ainda que esteja ainda crescendo.

No Brasil, temos duas leituras distintas. Quando olhamos o número de novos casos, não está crescendo, ficando abaixo de Europa e EUA na mesma época. Mas, como vimos em post anterior, é provável que estejamos com um problema de subnotificação. Se este problema é pior ou melhor que enfrentaram EUA e Europa no início do surto, não sei.

O gráfico de mortes, por outro lado, mostra o Brasil à frente de EUA e Europa na mesma época. Talvez esse gráfico seja mais fidedigno, pois parece que os testes estão sendo priorizados para pacientes falecidos ou em estado grave.

Enfim, boas notícias na Europa e ainda muita indefinição aqui no Brasil. Vamos acompanhando.

Segura a comemoração

Aos que estão soltando fogos pela curva mais suave de casos no Brasil, sugiro guardar os fogos por enquanto.

PS1: nesse contexto, o acompanhamento do número de mortos parece ser um indicativo mais fidedigno do espalhamento da doença. Apesar de ser um dado defasado, ele pode ser comparado com mais precisão com as estatísticas de outros países. Além disso, ao que parece, estão priorizando os exames de pessoas em estado crítico e mortas.

PS2: parece óbvio que se faz necessária uma coordenação com os laboratórios privados para aumentar a capacidade de testagem.

As falácias sobre o distanciamento social

Anteontem, em entrevista ao Datena, Bolsonaro afirmou que “não se pode parar a indústria automobilística porque tem 60 mil mortes no trânsito todos os anos”.

Hoje, o jornalista J.R. Guzzo segue na mesma linha. O país nunca parou porque milhares morrem de doenças coronarianas, ou respiratórias, ou de tuberculose. Então, por que parar o país por causa do corona?

Já escrevi sobre isso aqui, mas quando um jornalista da experiência do Guzzo repete uma falácia desse tipo, acho que vale a pena repetir.

Na verdade, são três as falácias envolvidas: 1) a falácia da natureza do problema; 2) a falácia estatística e 3) a falácia filosófica. Vamos ver.

A falácia da natureza do problema refere-se à forma como se trata de cada problema, de acordo com sua própria natureza. Não se trata doenças coronarianas com isolamento social porque simplesmente não tem nada a ver uma coisa com a outra. Doença coronariana se trata com remédio, alimentação e cirurgia, quando for o caso. A mesma coisa se dá com doenças infectocontagiosas, como tuberculose e sarampo, que contam com vacinas. Não é necessário distanciamento social, é preciso uma campanha de vacinação. Bem, espero ter sido claro.

A segunda falácia, a estatística, é o que tem sido falado à exaustão: estamos trabalhando para achatar a curva de contaminação, para torná-la mais lenta e não sobrecarregar o sistema de saúde. Por que não se faz isso com os acidentes de automóvel, por exemplo? Simplesmente porque não é estatisticamente necessário. Os acidentes ocorrem de maneira mais ou menos constante ao longo do ano, de modo que o sistema de saúde consegue, bem ou mal, dar conta do recado. O mesmo ocorre com doenças coronarianas e todas as outras. Não existe um pico inadministrável de curto prazo. O número total de mortes pelo corona pode até ser menor do que de outras doenças ou acidentes, mas a sua concentração em pouquíssimo tempo, além de chocar, pode ser evitada com o achatamento da curva de transmissão.

Sobre esta segunda falácia, Guzzo ainda afirma que o problema é a baixa capacidade do SUS de atender os doentes, e não é distanciamento social que vai resolver um problema que já se arrasta há mais de 30 anos. Ora, ninguém está querendo resolver o problema do SUS. Pelo contrário. Ao reconhecer que há um problema no SUS, fica ainda mais urgente tomar providências para que a situação não saia do controle. Difícil entender alguém defender que, por termos um problema, vamos agravá-lo ainda mais. Já que estou com um pé na merda, vou colocar o outro também. Faz sentido?

Por fim, a terceira falácia, a filosófica. Sim, as pessoas morrem de muitas coisas além do corona. Ainda não somos imortais, portanto vamos morrer de alguma coisa. Ao enumerar todas as outras causas mortis para diminuir a importância do corona, Guzzo lança mão de um sofisma: aproveita-se do fato de que as pessoas morrem de alguma coisa, qualquer coisa, para dizer que morrer de corona não é assim tão grave. Ora, morrer vamos sempre morrer, mas isso não significa que não devamos lutar para viver. No limite, o argumento vale para tudo: por que, por exemplo, se preocupar em tentar salvar a vida de acidentados de trânsito se muito mais pessoas morrem de doenças coronarianas? Se esse raciocínio parece maluco, por que o do corona parece razoável?

O grande debate, na verdade, é só de custo-benefício. Parar o país vale a vida daqueles que serão salvos do corona? Este debate ocorreu em todos os países onde alguma quarentena teve que ser imposta, e desapareceu quando corpos começaram a ser empilhados. Aqui vai acontecer a mesma coisa.

As previsões do Imperial College London

Tem sido muito citado o estudo do Imperial College London (ICL) para cenários de propagação do Covid-19, inclusive no Brasil. O Reino Unido, por exemplo, mudou a sua tática de combate, de mitigação para supressão, depois deste estudo. Resolvi estudar um pouco o assunto.

O estudo nada mais faz do que variar o grau de “distanciamento social”. Os vários cenários nada mais são do que variações desse distanciamento. o ICL desenha basicamente 5 cenários:

  • 1) Não fazer nada (distanciamento social zero)
  • 2) Mitigação: diminuir os contatos sociais em cerca de 40% para a população como um todo.
  • 3) Mitigação com reforço para os idosos (seria o tal “distanciamento vertical”) : interação social dos idosos acima de 70 anos reduzida em 60%, e o restante em 40%.
  • 4) Supressão: distanciamento social de 75% para toda a população.

O ICL divide este último cenário em dois:

  • 4.1) supressão precoce se implementada quando há 0,2 mortes para cada 100 mil habitantes, em uma média semanal e
  • 4.2) supressão tardia, se implementada quando há 1,6 mortes para cada 100 mil habitantes na mesma média semanal.

Por exemplo, para a Itália, os números de mortes, de acordo com esses cenários, seriam os seguintes:

  • 1) Sem mitigação/supressão: 593 mil
  • 2) Com mitigação: 293 mil
  • 3) Com mitigação e reforço para os idosos: 223 mil
  • 4.1) Com supressão tardia: 131 mil
  • 4.2) Com supressão precoce: 15 mil

Até o momento, a Itália contabiliza 9 mil mortos. O governo decretou o país inteiro em “red zone” no dia 08/03, quando a taxa média semanal era de 0,54 mortes/100.000 habitantes. Se considerarmos esta data como a inauguração do período de supressão, teríamos um cenário intermediário entre as hipóteses 4.1 e 4.2. Fazendo uma regra de 3 simples, teríamos algo como 45 mil mortes no total na Itália. À taxa atual, de cerca de 800 mortes/dia, a marca seria atingida em cerca de 45 dias a partir de hoje. Provavelmente em menos dias, pois a velocidade está se acelerando. Esse exercício com a Itália serve só para corroborar a validade desses números.

(Desculpem-me se estou sendo macabro, sei que estou lidando com vidas, e é algo que certamente não me agrada fazer. Mas alguém precisa mostrar essas contas).

Uma forma de testar a validade do modelo é observar o que ocorreu na província de Hubei, que tem mais ou menos a mesma população da Itália. Eles adotaram o modelo de supressão no dia 20/01, mais ou menos quando a taxa semanal estava em 0,2 (supressão precoce). O modelo indicaria um total de mortes de 15 mil, mas ocorreram apenas 3 mil mortes em Hubei. Afora sonegação de dados por parte do governo, podemos pensar em um modelo mais rígido de distanciamento social, com uma redução de interações de, por exemplo, 90%. Se de 40% para 75% de redução o modelo indica uma queda de 293 mil para 15 mil, imagino que seja possível diminuir de 15 mil para 3 mil se aumentar o distanciamento de 75% para 90%. Mas, infelizmente, não tenho o modelo aqui para simular.

Agora o Brasil: de acordo com as simulações do ICL, o Brasil enfrentaria os seguintes números de mortes de acordo com cada um desses cenários:

  • 1) Sem mitigação/supressão: 1,088 milhões
  • 2) Com mitigação: 576 mil
  • 3) Com mitigação e reforço para idosos: 472 mil
  • 4.1) Com supressão tardia: 206 mil
  • 4.2) Com supressão precoce: 44 mil

Apresento 3 gráficos, mostrando a evolução da taxa média semanal de mortes/100.000 habitantes para alguns países selecionados desde a primeira morte em cada um deles.

Observe como, na província de Hubei, onde temos um ciclo completo de supressão precoce com um distanciamento draconiano, a curva cresce até 1,4 mortes/100.000 e depois decresce rapidamente, atingindo um patamar tolerável depois de 45 dias após adotado o regime. No caso da Coreia, nem sequer foi atingido o índice de 0,2 mortes/100.000, de modo que eles não precisaram adotar um regime muito severo.

Observe como Alemanha e Reino Unido ultrapassaram recentemente a barreira dos 0,2 mortes/100.000. Provavelmente por isso, ambos os países começaram a adotar regras mais rígidas de distanciamento social. A Suíça aparentemente perdeu o controle, e terão problemas por lá.

Itália e Espanha são casos à parte, e tive que colocá-las em um gráfico separado. Ambos já estão com uma média semanal de quase 9 mortes/100.000 habitantes, e não parece estar se estabilizando. Provavelmente demoraram muito para implementar a supressão, e agora estão sofrendo as consequências.

Agora, o Brasil. Estamos hoje (27/03) com uma taxa semanal de apenas 0,04 mortes/100.000 habitantes. Não é muito alta, provavelmente porque estamos muito no início do ciclo. Nesta altura, estamos semelhantes à Itália e EUA. Mas já estamos tomando algumas medidas de mitigação mais duras, como fechamento do comércio, o que pode nos dar alguma vantagem em relação a estes dois países. Mas vamos descer um pouco mais no detalhe.

O terceiro gráfico mostra Brasil e EUA, e também os estados de São Paulo e Nova York, que são os epicentros da epidemia nesses dois países. Nova York fechou escolas, bares e restaurantes (como São Paulo) no dia 15/03, quando a taxa estava em meros 0,01 mortes/100.000 habitantes. Mas algo não funcionou, pois a taxa explodiu, muito mais que no resto do país.

São Paulo, por sua vez, está com uma taxa de 0,14, bem acima da média nacional, portanto. Mas ainda assim, um pouco abaixo do nível de 0,20. Ainda dá tempo de adotar a supressão precoce, portanto, e limitar o número de mortos de acordo com o melhor cenário.

Estes números calculados pela ICL são exagerados? Na verdade, são resultado de modelos matemáticos de propagação de vírus. Não se trata de rocket science, é só colocar os parâmetros e simular. Tudo depende das premissas adotas. Por exemplo, o modelo considera uma taxa de transmissão de 3 (um indivíduo infecta 3 outras pessoas) e uma taxa de mortalidade de cerca de 0,4%. Premissas diferentes irão gerar resultados diferentes. Mas, fora isso, não há muito o que discutir com a matemática.