O NYT acaba de publicar uma matéria em que os conselheiros para a área de saúde do então candidato Joe Biden pedem ao presidente dos EUA, em vários artigos, uma estratégia nova de enfrentamento ao Covid-19. Textualmente: “… eles estão pedindo a Mr. Biden que adote uma estratégia totalmente nova para a pandemia – uma que se adapte ao “novo normal” de viver com o vírus indefinidamente, não eliminá-lo”.
No final de 2020, a grande esperança da humanidade era a vacinação. Com uma parcela relevante da população vacinada, poderíamos esperar voltar à vida normal, como sempre vivemos antes dessa praga.
Pois bem, passamos o ano de 2021 vacinando toda a população dos países desenvolvidos e de boa parte dos países de renda média. Hoje, segundo o Our World in Data, países que ora enfrentam picos inéditos de contaminação, como França, Itália e Canadá, têm mais de 75% da população TOTAL já tendo recebido a 2a dose da vacina, o que significa quase 100% da população endereçável. Portanto, não existe mais a desculpa de que somente países com “baixa” cobertura vacinal, como EUA (62%) ou Alemanha (70%) é que estavam sofrendo com essa nova onda.
Dizer que está faltando um “booster” não me parece satisfatório. Quando as vacinas foram aprovadas, os testes mostravam uma eficácia não menos que espetacular, acima de 70% para a AstraZeneca, acima de 90% para Pfizer/Moderna. Falar que somente depois do “booster” poderemos voltar a ter vida normal faz lembrar o tempo em que ouvíamos que era só tomar as duas doses e poderíamos voltar a ter vida normal. Quem garante que não precisaremos tomar mais “boosters”? Teremos que tomar vacinas de 4 em 4 meses para termos vida normal?
É nesse contexto, depois de dois anos de pandemia, e com a ômicron causando recordes em cima de recordes de casos (sem aumento de óbitos) MESMO COM UMA PARTE RELEVANTE DA POPULAÇÃO JÁ TENDO SIDO VACINADA, esse grupo de médicos acima de qualquer suspeita propõe uma nova estratégia: conviver com o vírus.
Este debate encontra-se interditado por razões políticas. No Brasil, Bolsonaro vem defendendo essa tese desde praticamente o início da pandemia. Ele estava errado há dois anos, ou mesmo há um ano, pois tratava-se de uma doença sem cura, sem método confiável de prevenção e com altíssimo grau de letalidade. Hoje, essa discussão faz total sentido: uma doença respiratória, para a qual há vacinas e não causa mortes em nível acima de outras doenças, não deveria receber atenção diferente de, por exemplo, a influenza.
Cabe perguntar: se com vacinas e óbitos em níveis relativamente baixos não podemos retomar a normalidade, qual o contexto em que isso será possível? Queremos eliminar a doença como fizemos com a poliomielite? A nova onda da ômicron, com, repito, boa parte da população já vacinada, parece indicar que isso será virtualmente impossível. Estaremos, então, condenados a viver em um “perpétuo estado de emergência”, na expressão utilizada pelos médicos que aconselharam Joe Biden?
Os médicos que aconselharam Joe Biden durante a campanha sugerem vacinação de crianças, distribuição de máscaras N95 para a população e disponibilização de testagem de baixo custo. Todas medidas com o objetivo de permitir que as pessoas possam continuar indo ao trabalho, aos locais de lazer ou se reunirem sem precisar interromper essas atividades porque se identificou alguém com o vírus. Os cruzeiros que foram interrompidos, por exemplo, não o seriam nesse novo contexto, da mesma forma como não haveria interrupção se se descobrisse alguém com influenza dentro do navio.
Já é chegada a hora de discutir seriamente esse “novo normal”, sem rótulos como “negacionista” ou “coronalover”. Se isso não for feito pelas autoridades de maneira ordenada, será irremediavelmente feito pela própria população de maneira desordenada, que não vai suportar um terceiro ano de restrições para as quais não veem sentido.
Na semana passada, fui até a casa do meu irmão para um churrasco.
Ontem, participei de um happy hour com amigos queridos.
Amanhã irei ao cinema.
Não sei quanto a vocês, mas essas experiências, que eram rotineiras antes da pandemia, tornaram-se para mim uma evidência de que estou vivo. Estou dando muito mais valor a essas pequenas coisas que dão sabor à vida, e que eram, antes da pandemia, apenas uma válvula de escape da rotina diária. Das coisas que a pandemia roubou, talvez a pior tenha sido o lazer. Passei a ver essas pequenas diversões com olhos muito mais atentos, saboreando a sua importância vital para uma vida normal.
Se tem algo que a pandemia trouxe de útil, foi evidenciar a maravilha dos pequenos prazeres que nos foram subtraídos. Com o tempo, é provável que essa sensação se dilua. Afinal, o ser humano tem a incrível habilidade de se habituar com as situações da vida. Será uma pena.
Hoje, nota política no Estadão traz a reclamação de alguns governadores, de que seus estados estariam sendo prejudicados pela distribuição das entregas de doses pelo Ministério da Saúde. São citados especificamente os governadores do Pará, Bahia, Piauí e São Paulo. Será que esses governadores têm razão em reclamar? Vejamos.
Fiz três gráficos para tentar analisar a questão. O gráfico 1 mostra o percentual da população de cada estado já vacinado. São Paulo lidera, com 67% da população tendo recebido pelo menos a 1a dose (ou a dose única). Bahia, Piauí e Pará cobriram, até o momento, 49%, 46% e 39% das suas populações, respectivamente. O Pará está em último lugar entre os estados brasileiros. Será que isso aconteceu porque esses estados receberam menos doses?
O gráfico 2 mostra quantas doses cada estado recebeu em relação às suas respectivas populações. Podemos observar que, de fato, Bahia, Piauí e Pará receberam bem menos doses em relação à média nacional, respectivamente 85%, 83% e 77% em relação às suas populações. São Paulo recebeu 97%, enquanto a média nacional foi de 91%. Mas, nem tudo é como parece.
Fiz uma outra conta: qual o percentual de doses que está em estoque em cada estado? Se a falta de doses fosse um gargalo para a vacinação, era de se esperar que os estados que receberam menos doses tivessem um estoque menor, enquanto os estados que receberam mais doses teriam que ter um estoque maior.
O gráfico 3 mostra o estoque de doses em relação ao total de doses recebidas pelos estados. Podemos observar que justamente os estados que lideram a vacinação, MS e SP, têm os menores estoques. Quer dizer, mesmo estes estados tendo recebido mais doses proporcionalmente (98% e 97% de suas populações, respectivamente), os seus estoques estão baixos (5% e 6% das doses recebidas, respectivamente). Por outro lado, Bahia, Piauí e Pará têm ainda em estoque 19%, 24% e 25% de todas as doses recebidas até o momento. Ou seja, ainda que tenham recebido menos doses, os estoques estão altos, demostrando que estes estados não conseguem dar vazão na mesma velocidade dos que recebem mais. Tomei como exemplo esses 3 estados porque foram os citados pela reportagem, mas o raciocínio vale para todos os outros.
Então, minha hipótese é a seguinte: o MS está distribuindo doses de acordo com a capacidade de vacinação de cada estado, e não proporcionalmente às suas respectivas populações. Nesse caso, os governadores de SP e MS seriam os únicos que poderiam reclamar, pois seus estoques estão muito baixos. Cabe perguntar a cada governador porque não conseguem vacinar mais rapidamente suas populações. Falta de doses, como vimos, não é.
Este é o quadro de vacinação por estado até ontem.
O estado de São Paulo lidera, com 58% de sua população já tendo tomado a 1a dose e 37% a 2a dose. Em seguida vêm Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, com 57% e 56%, respectivamente tendo tomado a 1a dose.
A média brasileira está em 48% da população tendo tomado a 1a dose. Tirando São Paulo, a média cairia para 45%. São 13 pontos percentuais de diferença, o que equivale a aproximadamente 21 milhões de brasileiros. É este contingente que já poderia estar vacinado neste momento se o restante do Brasil tivesse a mesma eficiência do estado de São Paulo no ritmo de vacinação.
Esta tabela mostra uma comparação do Brasil com uma amostra de países mais avançados na vacinação. A ideia é verificar a data em que esses países tinham o mesmo nível de vacinação do Brasil (1a dose), e o ritmo de vacinação naquela época. Assim, podemos ter uma ideia do nosso futuro, olhando para esses países.
Por exemplo, hoje ocorreu a semifinal da Eurocopa entre Itália e Espanha no estádio de Wembley, em Londres. Todo mundo feliz, aglomerado, a maioria sem máscara. Quando atingiremos este estágio?
Olhando a tabela, vemos que o Reino Unido tinha o mesmo nível de vacinação que o Brasil tem hoje exatos 111 dias atrás, ou quase 4 meses. O ritmo de vacinação lá, há 111 dias, era de 0,52% da população ao dia, um pouco superior ao que o Brasil tem hoje (0,46% ao dia). Deste modo, podemos sonhar em ter a mesma liberdade que o Reino Unido tem hoje daqui a 4 meses, ou início de novembro.
Claro que este exercício é teórico. Cada país tem uma resposta diferente à vacinação, ainda não totalmente explicada (caso do Chile, por exemplo). Além disso, o ritmo de vacinação destes países pode ter acelerado (ou desacelerado) desde aquela data da tabela. Por fim, o nosso ritmo de vacinação também pode acelerar ou desacelerar ao longo do tempo.
Itália e Espanha estão na nossa frente cerca de 40 dias, e tinham aproximadamente o mesmo ritmo de vacinação que temos hoje. Talvez estes dois países sejam a proxy mais adequada para inferir sobre o nosso futuro mais próximo.
Em 2020, morreram atropeladas 80 pessoas por dia no Brasil. Considerando que foi um ano de pandemia, vamos assumir conservadormente que, em média, somente metade da população tenha saído de casa todos os dias. Temos, então, uma chance em aproximadamente 1.300.000 de morrermos atropelados quando saímos de casa. Uma chance extremamente baixa, o que mostra que sair de casa é bastante seguro.
Mas, claro, existem as 80 mortes por dia. A chance é baixa, mas não zero. Agora, imagine que existisse uma campanha para que as pessoas não saíssem de casa por ser inseguro. Seriam os “anti-exit”. Cada morte no trânsito seria brandida pela campanha como uma “evidência” de quão inseguro é sair de casa. “Tá vendo, olha só, saiu de casa e foi atropelada!”
Parece ridículo, mas o raciocínio é o mesmo quando se aponta mortes e efeitos colaterais graves em quem tomou a vacina. A agência de notícias Associated Press fez um levantamento com base nos dados do CDC (Centro de Controle de Doenças dos EUA) e concluiu que, das mais de 18 mil pessoas que morreram de Covid nos EUA em maio, apenas cerca de 150 haviam sido vacinadas, ou 5 pessoas por dia.
Considerando que cerca de metade da população americana tomou as duas doses da vacina, temos uma chance em 35 milhões (por dia) de alguém morrer de Covid tendo tomado a vacina. Ou seja, é cerca de 30 vezes mais provável ser atropelado no Brasil ao sair de casa do que morrer de Covid após tomar a vacina. Um movimento “anti-exit” faria, portanto, mais sentido do que o movimento “anti-vaxx”.
Ocorre que essas 150 pessoas existem, além de outras que tiveram efeitos colaterais graves. De fato, elas morreram de Covid, mesmo tendo tomado a vacina, ou sofreram efeitos colaterais. Vivemos na sociedade da informação instantânea e sem filtros. Basta que uma pessoa tenha morrido ou tenha tido reações graves à vacina que a sua história voa nas asas das redes sociais. E aquela história, de uma pessoa concreta, tem muito mais poder sobre a mente das pessoas do que estatísticas frias. Os jornalistas sabem disso. Em qualquer matéria, a ilustrar o ponto a ser defendido, existirá ao menos uma entrevista com alguém de carne e osso que esteja vivendo aquela situação.
Os anti-vaxx acreditam em histórias, não em probabilidades. Segundo os dados levantados pela AP, pessoas que não tomaram a vacina tiveram cerca de 250 vezes mais chance de morrer de Covid do que pessoas que tomaram a vacina. É muito, e deveria servir como um incentivo à vacinação. Mas é outra a probabilidade considerada pelos anti-vaxx: em maio, a chance de morrer de Covid sem estar vacinado nos EUA foi de uma em 275 mil. Trata-se de uma chance remota de qualquer forma, e que compete com as histórias tenebrosas a respeito das vacinas.
É impossível viver sem arriscar-se. Estamos o tempo inteiro girando o tambor do revólver contra as nossas cabeças e puxando o gatilho. A bala sempre vai existir. O que podemos fazer é diminuir o máximo possível a chance de a bala parar justamente no ponto de parada do tambor. Os números levantados pela AP demonstram que essa chance diminuiu em 250 vezes nos EUA em maio. Não é zero risco. Mas nada na vida é zero risco.
Aos 31 minutos do dia de hoje, 21/06, horário de Brasília, o hemisfério sul da Terra passou pelo ponto de maior ângulo em relação ao Sol, marcando o solstício do inverno e dando início à estação de mesmo nome em nosso hemisfério. Esse é o dia que marca o menor período de insolação: são 10 horas, 40 minutos e 57 segundos entre o nascer e o por do sol na cidade de São Paulo. O que nos leva, em consequência, à noite mais longa do ano.
O ser humano é chegado em uma alegoria. O inverno é, muitas vezes, associado a coisas ruins. A velhice, por exemplo, às vezes é chamada de outono da vida, a estação que precede o inverno, a morte. Uma guerra nuclear seria seguida por um “inverno nuclear”, um cenário de desolação sem a luz do Sol. Cenário este usado em filmes como Matrix, para construir uma ambientação de fim de mundo.
Também a noite é associada ao perigo, ao desconhecido, ao terror. Quando dizemos que um assalto ocorreu “em plena luz do dia”, queremos enfatizar que aquilo não era o esperado. Portanto, é durante a noite que as coisas ruins acontecem, não durante o dia. Dormimos à noite e vivemos de dia. A noite é o reino dos sonhos e dos pesadelos, um mundo que não nos pertence.
A noite é também uma óbvia alegoria para essa pandemia. Estamos passando pela mais longa noite de nossa geração, que não teve que passar por guerras. É o nosso solstício de inverno. O medo e a incerteza tomam conta da sociedade. As pessoas se recolhem e parece que vivemos em um grande pesadelo distópico.
Mas o ser humano, com seu engenho, domou o inverno e a noite. É durante a noite que nos divertimos e convivemos com a família, porque o dia é dedicado aos deveres. E é durante o sono que recarregamos as baterias. Os seres humanos precisamos da noite para viver.
A pandemia é a noite da humanidade. Durante a pandemia, fomos forçados a conviver mais com a nossa família e, porque não dizer, conosco mesmos. Conviver de uma maneira diferente, que mudará novamente quando as restrições acabarem. A noite não é ruim em si, apesar do seu estigma. A noite será tão boa quanto o que façamos com ela.
Por fim, assim como a noite mais longa do ano, apesar de longa, não é eterna, assim também a noite da pandemia será sucedida por um radioso nascer do sol. E, como na vida, aproveitaremos tanto melhor o dia quanto melhor tivermos empregado o tempo da noite.
Há um ano, se alguém me dissesse que um ano depois estaria tomando a vacina contra a COVID, certamente consideraria esse alguém como um sonhador ou ingênuo.
Bem, aí está.
Para chegarmos neste ponto, uma incrível corrida de obstáculos foi vencida. Já disse aqui algumas vezes: uma coisa é ter uma ideia, outra bem diferente é tirá-la do papel. A coordenação de milhares de cérebros trabalhando para um único objetivo não é tarefa trivial.
A humanidade, sobre a qual paira muito ceticismo a respeito de sua capacidade de sobrevivência, não chegou onde chegou à toa. Somos solucionadores de problemas, e este é mais um que vamos vencer.
O autor começa o artigo contrapondo dois exemplos de restaurantes nos EUA. O primeiro, em Mendocino, California, avisa que usar máscaras dentro do salão acarretará uma taxa adicional de 5 dólares. O segundo, em Washington D.C., avisa que, sem máscara, não será servido hummus.
As máscaras, mais que uma questão de saúde pública, se transformaram em uma questão política. Antes de avançar, permitam-me uma pequena digressão.
Entre 2009 e 2014, viajei a trabalho ao Japão uma vez por ano. Uma das muitas coisas que me chamaram a atenção era o fato de alguns usarem máscaras ao andarem na rua ou em transporte público.
Estas fotos foram tiradas por mim mesmo. Não era a maioria, mas também não era difícil encontrar crianças, jovens e adultos usando máscara. Perguntei aos meus anfitriões o porquê daquilo. A resposta foi meio óbvia: ou porque estavam ligeiramente resfriados e não queriam passar a doença adiante, ou porque tinham receio de pegar doenças pelo ar e queriam se proteger.
As máscaras eram, então, uma forma de profilaxia. Só isso. Em um país que sofreu muito com a epidemia de SARS em 2003, aquele comportamento era natural. Tratava-se apenas de uma decisão relacionada com a saúde própria e de terceiros. Não havia conotação política.
Como um simples pedaço de pano no rosto se transformou no símbolo maior da verdadeira guerra cultural que se instalou no Ocidente?
O início de tudo
No início, não eram as máscaras. Ou melhor, máscaras não eram recomendadas, a não ser para os profissionais de saúde e pessoas infectadas. Por exemplo, na edição de 06/03/2020 do Estadão, podíamos ler a seguinte orientação:
Isso não impediu, no entanto, que o próprio presidente Bolsonaro aparecesse de máscara em live no dia 13/03/2020, ao lado do então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Ou seja, apesar de não ter caráter obrigatório, o presidente foi garoto-propaganda do uso da máscara no início da pandemia.
No dia 15/03/2020, Bolsonaro foi a uma manifestação em seu apoio.
Observe que as críticas da imprensa e dos infectologistas se restringiram à falta de isolamento social. Não há menção à falta de máscaras, nem do presidente e nem dos manifestantes, em uma evidência de que este não era um problema àquela altura.
Em foto do dia 08/04/2020, vemos pessoas em transporte público de São Paulo sem máscaras. Este fato não é citado na reportagem. Ainda não era um problema.
Na posse do novo ministro da saúde, Nelson Teich, em 17/04/2020, nem sinal de máscaras, mesmo por parte do novo ministro. Não houve críticas a este fato nas reportagens da época.
Em 19/04/2020, nova manifestação com a participação do presidente. Existe menção à aglomeração e à tosse de Bolsonaro, mas ainda não à falta de máscaras.
Essa não-orientação pelo uso de máscaras não foi exclusividade brasileira. Pelo contrário. A própria OMS, no início, recomendava o uso de máscaras apenas em situações muito específicas. Era o que podíamos ler em seu site em 18/03/2020:
• Se você for saudável, só precisará usar máscara se estiver cuidando de uma pessoa com suspeita de infecção por nCoV 2019.
• Use uma máscara se estiver tossindo ou espirrando.
• As máscaras são eficazes apenas quando usadas em combinação com a limpeza frequente das mãos com produto à base de álcool ou sabão e água.
• Se você usar máscara, deve saber como usá-la e descartá-la de maneira adequada.
Foi apenas no início de abril que o C.D.C – Centers for Disease Control e Prevention, dos EUA, mudou a sua orientação e recomendou o uso de máscaras. Em sua página, as orientações começavam com a seguinte frase: “Quando você usa uma máscara, você protege outros assim como você mesmo. Máscaras funcionam melhor quando todo mundo usa uma”.
Mas esta reportagem do New York Times mostra uma Casa Branca dividida. No mesmo dia em Anthony Fauci, o todo poderoso diretor do U.S. National Institute of Allergy and Infectious Diseases e chefe do conselho médico de apoio à presidência, recomendou o uso de máscaras, o presidente Donald Trump veio a público dizer que aquela se tratava de uma orientação, não uma obrigação, e que ele mesmo não usaria. Talvez possamos estabelecer aqui o marco zero da politização do uso das máscaras.
De início, essa polêmica tinha, de fato, embasamento científico. Lembrando que a própria OMS não havia mudado a sua orientação (isso aconteceria somente em junho), a Dra. Deborah Birx, chefe da equipe médica da Casa Branca, afirmou, em uma coletiva de imprensa, que tinha receio que, se as pessoas usassem máscaras, poderiam se sentir à vontade para aglomerar, o que poderia ser ainda pior. Aliás, na foto desse coletiva de imprensa no início de abril, tanto ela quanto o Dr. Fauci não estão usando máscaras.
Trump justificou sua negativa em usar máscara pelo relacionamento que tinha com chefes de estado, o que mostra que as máscaras, naquela altura, ainda eram vistas com certa estranheza. A reportagem do NYT chama a atenção para este ponto: o cidadão ocidental não está acostumado a esconder o rosto, é algo estranho à sua cultura.
No Brasil, somente em 03/05/2020, em cobertura de nova manifestação em apoio ao presidente, há, pela primeira vez, alguma menção à ausência de máscaras na reportagem do Estadão.
Começava a batalha. Não a batalha da saúde, mas a batalha política.
Máscaras e política
Por que as máscaras são o símbolo maior dessa batalha política? Porque é visível. Ninguém vê se você pegou ou não pegou Covid, se você tomou ou não cloroquina, se você tomou ou não a vacina. Esses atos são, digamos, declaratórios. Máscaras, não. Máscaras são visíveis. Todo mundo vê se você está usando ou não.
As máscaras passaram a ser muito mais do que uma proteção. Para os que defendem a sua adoção, as máscaras se tornaram um sinal público de virtude. Quem usa máscara dá valor à vida, pensa no seu semelhante. Por outro lado, quem não a usa, é um egoísta que despreza a vida do seu semelhante.
Por outro lado, os que são contra o uso das máscaras encaram os que usam como covardes, que abrem mão de sua liberdade em nome de uma política inútil, imposta, em última análise, para manter a população sob controle. Trata-se, a exemplo do sinal externo de virtude citado antes, também de uma demonstração de superioridade moral. Ainda em março de 2020, publiquei em meu perfil no FB a seguinte imagem que, na época, não passava de uma piada, mas que depois foi ficando mais séria:
Está aí o símbolo de virilidade, o mesmo usado várias vezes pelo presidente, quando, por exemplo, chamou de “maricas” todos os que se protegiam de alguma forma da doença. Além disso, o uso de máscaras poderia causar mais mal do que bem à saúde, segundo algumas teorias que circularam por aí, como a do post abaixo.
Então, temos de um lado os que fazem da máscara um símbolo de virtude. E, do outro lado, os que fazem da falta da máscara também um símbolo de virtude. São virtudes diferentes, sem dúvida, mas ambas símbolo de superioridade moral. Quando chegamos neste ponto, a verdade, como em todas as guerras, é a primeira vítima.
Ciência
A ciência é sempre invocada como o árbitro imparcial das questões envolvendo a Covid-19. Como instância não engajada politicamente, a ciência teria o poder de trazer racionalidade à discussão sobre as máscaras (e, de resto, a todas as questões envolvendo a Covid-19). A má notícia é que a ciência não tem o conhecimento divino da realidade das coisas, aquele conhecimento definitivo, que apreende a realidade de uma só vez e de maneira definitiva. A ciência é uma construção humana, em sua constante luta por compreender a realidade à sua volta, com base em uma metodologia amplamente aceita, chamada de método científico. Se compreendida desta forma, a ciência é essa criação humana que nos tirou da idade da pedra para onde hoje estamos.
No entanto, quando a ciência é encarada como um oráculo infalível, assumindo o lugar da onisciência divina, passa a ser utilizada como instrumento político pelos dois lados da disputa. De um lado, a palavra definitiva sobre o que deve e o que não deve ser feito. De outro, a exploração da desmoralização de orientações antes tomadas como absolutas.
Por exemplo, recentemente se chegou à conclusão de que o vírus se transmite preponderantemente pelo ar, sendo muito remota a possibilidade de transmissão por tocar em superfícies (veja, por exemplo, esta reportagem da Economist). Pouco se falou sobre isso, mas este achado nos deixa em posição ligeiramente ridícula quando nos lembramos do “teatro da higiene” do início da pandemia, em que alguns de nós chegamos a lavar todas as compras de supermercado com álcool gel. A questão das máscaras é típica: a mudança de orientação é até hoje lembrada como uma “desmoralização da ciência”.
Além disso, os cientistas, assim como os economistas, também têm lado. As conclusões científicas a respeito da Covid-19, uma doença nova, são bem menos definitivas do que nos querem fazer crer cientistas que pontificam verdades absolutas. Sem querer, trabalham contra a causa que defendem, pois novas descobertas desmoralizam aquelas verdades que não eram mais do que provisórias.
Enfim, a ciência, como qualquer outra criação humana, trabalha a serviço da política, não o contrário. Não que não exista conhecimento científico e tudo seja não mais que narrativa. Longe disso. O problema é usar a ciência como narrativa, um vício que acaba se voltando contra a própria atividade científica.
O futuro das máscaras
No dia 13/05, o C.D.C. chocou o mundo ao recomendar que todos os que já tivessem tomado a vacina não precisariam mais utilizar máscaras. Depois de um ano e meio de terror, sair de casa sem máscara é quase como exibir-se somente com roupas de baixo. Houve contestações por vários epidemiologistas. Mas o C.D.C., em tese, se guia pela ciência, o que só demonstra a ambiguidade de toda essa situação.
O fato é que máscaras passaram a ser um símbolo político. Nos países do oriente, o uso de máscaras segue a lógica da doença: evitá-la e evitar passar para outros. No ocidente, no entanto, as máscaras serão a lembrança de uma batalha política que dividiu os cidadãos em dois campos irreconciliáveis.
Depois que tudo isso passar, seremos capazes de usar máscaras quando estivermos com uma gripe? Não fazíamos isto antes, faremos agora? Ou serão as máscaras a lembrança do pior pesadelo coletivo pelo qual passou a nossa geração, de modo que o seu uso será como que um tabu? E pior: o uso da máscara (ou o seu não uso, em caso de doença) não será considerado uma espécie de desafio ao campo político adversário?
São questões em aberto. Será interessante observar como se desenvolverá esse fenômeno sociológico.