Havia uma pessoa em minha família que sofria de depressão. Uma das características do quadro é que ela se achava culpada por tudo o que acontecia de ruim, principalmente a morte de pessoas. Não havia modo de convencê-la do contrário. Para ela, a causalidade era clara.
Podemos não notar, mas agimos o tempo todo como essa pessoa da minha família. Estamos o tempo inteiro buscando causas para as coisas que acontecem. O Homem é um ser em constante busca de porquês.
Essa característica do ser humano me veio à mente mais uma vez em meio a essa pandemia. O que causa a queda do número de casos? O lockdown? O tratamento precoce? A vacinação?
Vivemos em um sistema social extremamente complexo, com bilhões de interações. Imagine uma gigantesca mesa de bilhar, com milhões de bolas e milhares de jogadores jogando ao mesmo tempo. Como tentar prever o comportamento de uma das bolas? Mesmo que haja um mínimo de coordenação entre os jogadores, como prever o comportamento do conjunto das bolas? Agora imagine se cada uma dessas bolas tomasse a sua decisão individualmente…
Ontem li dois artigos que, coincidentemente, entre outros casos, usava o exemplo do Peru para provar duas coisas diferentes: no primeiro caso, que o uso da ivermectina como tratamento precoce funciona. No outro, para provar que o lockdown não funciona. Em ambos, o leitor é convidado a observar gráficos que, supostamente, provariam o ponto. Senti-me diante de um daqueles testes de Rorschach, em que a pessoa é chamada a descrever o que vê em uma figura sem sentido algum.
Determinar causalidade é um dos grandes desafios da econometria. Pode até haver correlação entre dois fenômenos distintos, mas causalidade é outra história, muito mais difícil de provar. Voltando ao caso do meu familiar: ela estava convencida que, toda vez que pensava em uma pessoa, aquela pessoa morria. A correlação poderia até existir, mas obviamente não havia causalidade. É o que chamamos, em estatística, de correlação espúria.
Ocorre que, ao contrário dessa pessoa de minha família, os fenômenos com os quais estamos tratando têm efetivamente um fundamento racional. É óbvio que o vírus não se transmitirá se as pessoas se mantiverem afastadas umas das outras. É óbvio que remédios e vacinas que se mostraram eficazes em grupos menores também se mostrarão eficazes em grupos maiores. Não estamos tratando de correlações espúrias, como aquela estabelecida pelo meu familiar.
Por mais que seja racional, a causalidade precisa ser provada. É nisso que a dificuldade reside e é aí que um debate que supostamente se daria no campo racional se transforma em guerra de narrativas.
A narrativa é um instrumento da fé. Todos nós vivemos de fé, por menos que queiramos admitir. Aqui não falo especificamente da fé religiosa, ainda que esta seja um exemplo. Refiro-me de maneira genérica ao conjunto de crenças que moldam a nossa maneira de pensar. O mundo é extremamente complexo e, por isso, não conseguimos abarcá-lo todo com a nossa mente limitada. Para lidar com essa realidade, confiamos em autoridades. Ou, para usar uma linguagem religiosa, depositamos nossa fé em uma autoridade.
Mas não em qualquer autoridade. Escolhemos as autoridades que confirmam as nossas crenças iniciais. Somente crianças e, em menor medida, adolescentes, são páginas em branco. Nós, adultos, enfrentamos o mundo armados de nossas próprias crenças, e procuramos autoridades que as confirmem, construindo a narrativa que nos convém.
Constatei isso, mais uma vez, lendo ontem sobre tratamento precoce. Há autoridades igualmente respeitáveis atacando e defendendo. Aí, você vai explorar os dados no detalhe (quantos têm tempo e interesse e know how para fazer isso?) e descobre que o caso da ivermectina, por exemplo, está em uma zona cinzenta, onde os estudos apontam para uma direção promissora, mas são realmente limitados e pobres, o que exigiria mais estudos para serem definitivamente comprovados ou descartados. Ou seja, é uma conclusão que não orna e não interessa a nenhuma das narrativas vigentes.
Se as crenças envolvem posicionamentos políticos, aí então é que podemos desistir de qualquer abordagem racional, ainda que o debate possa ter uma roupagem acadêmica. As próprias autoridades têm os seus vieses políticos, muitas vezes não claros.
O que podemos concluir disso tudo? Diria o seguinte:
1) Cuidado com afirmações definitivas, que passam a impressão de que se tem 100% de certeza sobre alguma coisa. Se até em fenômenos físicos novas certezas podem substituir certezas anteriores (vide a física de Einstein substituindo a de Newton) imagine em fenômenos biológicos e, no caso, sociológicos.
2) Por outro lado, não podemos cair em um nihilismo destruidor, em que nada pode ser afirmado definitivamente. Podemos fazer uma ideia da realidade tendo a mente aberta para teses que desafiem as nossas crenças.
3) No entanto, o fato de não conseguirmos compreender a realidade em sua totalidade não significa que ela não exista. A Terra é redonda, não plana, não há crença ou narrativa que mude essa realidade. A arte está em saber distinguir aquilo que é saber definitivo daquilo que é saber provisório. Bem-vindo à aventura do conhecimento!
4) Por fim, não vale a pena perder amizades e relações familiares por conta desse tipo de discussão. Tenha em mente que cada pessoa tem as suas próprias crenças, que podem ser incompreensíveis para nós. Saiba que é vice-versa. Evitaríamos muitas brigas inúteis se tivéssemos isso em mente e buscássemos mais o que nos une do que o que nos separa.