Renan repaginado

Em qualquer lugar do mundo civilizado, uma figura como a do senador Renan Calheiros já estaria relegado há muito tempo ao mais profundo ostracismo. Mais precisamente, desde 2007, quando renunciou à presidência do senado para evitar a cassação por seus pares.

No entanto, no Brasil, Renan está por aí, dando as cartas, como um interlocutor político legítimo. Inclusive, segundo a notinha do jornal, Renan teria sido “repaginado” pela CPI.

O jornalista, para escrever isso, deve entender muito de política. Eu, na minha invencível ignorância, penso o contrário: essa CPI nasceu com um vício de origem chamado Renan Calheiros. Simplesmente não dá para levar a sério uma comissão de inquérito que tenha Renan como relator. Tanta gente com uma folha corrida menos, digamos, polêmica, e os senadores da oposição não conseguiram escolher ninguém melhor que Renan Calheiros. Chego a pensar que foi tática de algum senador governista para minar a credibilidade da CPI.

Não deveríamos estar surpresos. Em um país onde um político com condenação confirmada em três instâncias da justiça é tratado como um player normal do jogo político e até como um estadista, Renan Calheiros é café pequeno. No fim, a mesma inteligentzia tupiniquim que acha tudo isso muito normal, rasga as vestes diante das “injustiças” brasileiras. Vai vendo.

O tribunal de Haia é o cemitério da CPI

A CPI da Covid quer levar Bolsonaro ao tribunal de Haia. Não consigo pensar em argumento melhor para demonstrar o fracasso dessa comissão.

Houvesse crimes tipificados pelo código penal brasileiro, o nosso STF estaria mais do que satisfeito em receber as denúncias. Ir a Haia é a admissão que tudo isso não passa de pastel de vento. Alias, é o que candidamente reconhece uma advogada entrevistada na reportagem: não tem porque Haia aceitar uma denúncia vinda de um país em que as instituições da justiça estão funcionando sem intervenção do Executivo.

O único resultado político de impacto dessa CPI seria a abertura de um processo de impeachment. Ocorre que não há votos no Congresso para isso. Se houvesse, Lira já teria sido forçado a abrir o processo. Para que isso acontecesse, a CPI teria que ter incendiado o país, levando milhões às ruas. Amanhã, teremos mais uma oportunidade de observar se a CPI funcionou. As últimas notícias dão conta de que os organizadores dos protestos incluirão na pauta questões econômicas, como inflação e desemprego. Mais um sinal de que a CPI “não pegou”. Talvez por isso seus organizadores, tendo perdido a Paulista, estejam se mudando para Haia.

Ninguém saiu vivo

Em Bastardos Inglórios, uma de suas muitas cenas antológicas reúne alemães e americanos em uma taverna. Depois de alguns minutos de tensão, todos puxam suas armas e as apontam uns para os testísculos dos outros. Então, como um bom filme de Tarantino, alguém puxa o gatilho, começando a carnificina.

Neste momento, o deputado Luis Miranda resolveu puxar o gatilho. A carnificina mal começou. E, é bom lembrar, no filme, o dono da taverna não saiu vivo.

Cuidado com os seus desejos

Bolsonaro, ontem, acusou Barroso de fazer “politicalha” e desafiou-o a ordenar também a abertura de processo de impeachment contra membros do próprio STF.

Li argumentos nessa linha ao meu post de ontem. Fui investigar.

O impeachment de ministros do Supremo está previsto na Constituição (art. 52, inciso II – qualquer cidadão pode pedir o impeachment de um ministro do Supremo) e é regrado pela Lei 1079, de 1950. Os artigos 41 a 73 são os que regem o processo de impeachment dos ministros do Supremo.

O artigo 44 diz o seguinte: “Recebida a denúncia pela Mesa do Senado, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial, eleita para opinar sobre a mesma”.

Parece claro, não? Uma vez recebida a denúncia, a mesma será lida na sessão seguinte e despachada para uma comissão especial. Aparentemente, não há discricionariedade possível por parte do presidente do Senado ou da mesa diretora. Deveria ser um procedimento automático: recebe a denúncia, lê e instaura comissão para análise. É isso, por exemplo, que defende Roberto Jefferson, em trecho de sua denúncia contra Edson Fachin, que destaco abaixo.

Portanto, qualquer cidadão poderia entrar com recurso junto ao STF para exigir a instauração de um processo de impeachment no Senado contra membros do Supremo, com o mesmo argumento (prevaricação) que valeu para a instauração da CPI da pandemia.

Mas…

Mas nem sempre as coisas são como parecem.

A mesma Lei 1079 rege o impeachment do presidente da República. O seu artigo 19 reza o seguinte: “Recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma.

”Observe a quase exatamente mesma redação que vimos no artigo 44. Não caberia, aqui também, a discricionariedade do presidente da Câmara ou da mesa diretora. Recebeu a denúncia, leu no expediente seguinte, encaminhou para uma comissão especial. Procedimento automático.

Como é de saber comum que o encaminhamento de um pedido de impeachment contra o presidente depende da boa vontade do presidente da Câmara, cabe analisar melhor a redação dos artigos 19 e 44 da Lei 1079.

“Receber”, neste caso, creio que tenha o sentido de “acatar”. Não se trata, no contexto, de um verbo passivo, no sentido de receber uma correspondência, mas ativo, no sentido de reconhecer que aquilo é uma denúncia válida. Portanto, cabe discricionariedade. É o mesmo sentido que os noivos dão ao verbo receber quando dizem na cerimônia do casamento: “recebe esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade”. Os noivos recebem a aliança podendo recusá-la, se não estão dispostos, por algum motivo, a assumir o compromisso que ela representa.

Se assim não fosse, todos os 61 pedidos de impeachment contra o presidente que estão engavetados teriam que ser automaticamente colocados para caminhar dentro da Câmara.

Quando Bolsonaro desafia Barroso a fazer caminhar os pedidos de impeachment contra ministros do Supremo, do mesmo modo qualquer ministro do STF poderia obrigar o início dos procedimentos para os pedidos de impeachment contra o presidente.

Cuidado com os seus desejos.

A CPI inconveniente

O parágrafo único do artigo primeiro da Lei 13.367 de 05/12/2016, que atualmente rege a constituição e funcionamento das CPIs, reza o seguinte:

“Parágrafo único. A criação de Comissão Parlamentar de Inquérito dependerá de requerimento de um terço da totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em conjunto ou separadamente.”

Mais claro e cristalino do que isso, impossível. Os senadores reuniram cinco votos a mais que o terço determinado em lei. A lei não prevê que o presidente do Senado tem poder discricionário para não instalar a CPI. Luís Roberto Barroso fez o óbvio: concedeu liminar obrigando a cumprir a lei. Rodrigo Pacheco não vai nem mesmo aguardar a apreciação da liminar pelo plenário, porque sabe que não tem chance. Segurar a formação da CPI é prevaricação.

Tudo isso é verdade. O que não tira a razão de Pacheco ao tentar segurar ao máximo a instalação dessa CPI: trata-se de mais um elemento de confusão em um ambiente político já conturbado.

O que exatamente essa CPI vai descobrir que já não estejamos fartos de saber? Claro que se trata de luta política, mais um front para enfraquecer ainda mais o governo. Um palco para execrar publicamente as figuras envolvidas no controle da pandemia. É um direito da minoria, daí o quórum de um terço para a instalação. Mas que tem o potencial de paralisar a atividade legislativa, daí a resistência de Pacheco.

No passado, uma CPI derrubou um presidente. Mas o sistema político aprendeu a domar as CPIs, de modo que, hoje, não passam de palanque para a minoria expor os governos. Pouco vai sair daí, a não ser mais barulho.