A construção da desigualdade brasileira

Jason está de volta. Um grupo de empresas, liderado pelo presidente da Associação Brasileira dos Lojistas de Shoppings, vai sugerir uma PEC para reintroduzir a CPMF como compensação para a desoneração da folha de pagamento.

Já escrevi várias vezes sobre esse assunto, mas nunca é demais repetir: o mecanismo proposto, além de pernicioso para o financiamento de empresas e indivíduos, é um instrumento de concentração de renda. Vejamos porque.

Grande parte da carga tributária sobre a folha de pagamento refere-se à contribuição previdenciária. Ou seja, é a parte da empresa paga para o INSS. Portanto, esse imposto servirá para financiar a aposentadoria dos empregados.

Ao substituir esse imposto pela CPMF, o que se está fazendo é cobrando de todo mundo o funding que financiará a aposentadoria dos trabalhadores que têm carteira assinada. Esse grupo forma a elite dos trabalhadores brasileiros. Pode ser um empacotador no supermercado ou um porteiro terceirizado: se tem carteira assinada, significa que trabalha para uma empresa de certo porte, que pode formalizar a sua mão de obra e, portanto, está muito melhor do que a imensa maioria dos brasileiros, que sobrevive na base do subemprego, na hipótese de ter algum emprego.

Assim, a CPMF vai onerar todo mundo, tendo emprego ou não, para subsidiar a aposentadoria da parte superior da força de trabalho, aquela que é registrada. Os defensores da proposta defendem que a desoneração permanente poderia aumentar o número de trabalhadores registrados. No entanto, mesmo nessa benigna hipótese, em que o subsídio não serve para engordar a linha do lucro do balanço das empresas, o seu custo continua recaindo principalmente sobre os mais pobres. A CPMF parece um imposto mágico porque tem uma alíquota muito pequena. A sua “mágica” consiste justamente na sua enorme base de incidência. E não é possível ter uma base grande de incidência sem onerar a grande massa de pobres do país.

Essa proposta é o retrato da elite brasileira: construímos com banda e fanfarra um estado de bem-estar social exemplar, com benefícios previdenciários que permitiam a aposentadoria a pessoas do topo da pirâmide com 50 anos de idade e, do outro lado, cobramos silenciosamente um imposto dos mais pobres para financiar a festa. Não se tem uma desigualdade de renda como a brasileira sem muito esforço e dedicação.

“Simplificação tributária”

Luciano Bivar, aquele que quer ser o vice de Moro, indicou um “técnico” para “conversar” com a equipe econômica do candidato do Podemos.

Trata-se, nada menos, de Marcos Cintra. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Cintra é o principal “teórico” do país por trás do “imposto único”. Leia-se CPMF.

Marcos Cintra foi levado por Paulo Guedes para o governo para assumir a Secretaria da Receita. Cheguei a escrever um post a respeito, dizendo que se tratava de uma “preferência revelada” de Guedes, termo técnico do economês para dizer que Guedes podia negar até a morte, mas o que ele queria mesmo era a volta da CPMF.

O professor da FGV foi defenestrado do governo por pressão de Bolsonaro, que não queria mais um assunto impopular sendo discutido a céu aberto. Isso não impediu que Guedes, várias vezes depois, voltasse a esse que é um de seus assuntos prediletos, acoplado à desoneração da folha de pagamentos.

Agora Cintra volta à cena pelas mãos de Bivar. Fico imaginando a conversa com Pastore. Se é que um dia um dos maiores economistas do país vai se dispor a discutir a genial ideia.

Engôdo

Um anúncio de página inteira hoje no Estadão chamou-me a atenção. Patrocinado por várias entidades empresariais, pede foco nas reformas constitucionais de que o país necessita. E chama o teto de gastos de “sagrado”, além de defender a independência do Banco Central.

Chamou-me a atenção porque, quando as entidades empresariais se manifestam, geralmente é para pedir algum benefício para si. Neste caso, no entanto, defendem uma agenda de aumento de produtividade nacional, sem olhar a setor A, B ou C.

No mesmo jornal, a manchete nos diz que Guedes quer aproveitar o novo presidente da Câmara para pautar a volta da CPMF.

Guedes não está preocupado com a reforma administrativa, a reforma tributária, a independência do BC. Seu interesse é a CPMF. As entidades empresariais devem estar enganadas. Essa agenda de produtividade é bobagem. Bom mesmo para o país é a CPMF.

Paulo Guedes é um engodo.

Estelionato eleitoral

Entre o final de setembro e o início de outubro de 2018, na reta final da campanha eleitoral, o Posto Ipiranga deu com a língua nos dentes e avisou que estava pensando em um imposto com rabo de CPMF, focinho de CPMF e boca de CPMF, mas não era a CPMF, taokey?

Como o então candidato do PSL sabia do teor tóxico da proposta, a negou veementemente. Lembro que todas as páginas bolsonaristas saíram em defesa do candidato, classificando a notícia como “fake news”. No máximo, havia sido uma “trapalhada” do Posto Ipiranga, que confundira IVA com CPMF. Muito compreensível.

Obviamente, olhando em perspectiva, fica claro que a única proposta tributária do Posto Ipiranga sempre foi a CPMF. É o samba de um imposto só. Marcos Cintra foi convidado para ser o secretário da Receita com um único objetivo: a implantação do seu projeto de vida, o imposto único.

Não consigo dizer se isto estava claro para Bolsonaro desde o início, ou se o Posto Ipiranga contava com o tempo para convencê-lo do seu projeto. O fato é que, hoje, Bolsonaro quer emplacar a CPMF, mesmo sendo um claro estelionato eleitoral.

Em sua mensagem na abertura dos trabalhos do Congresso em 2016, a então presidente Dilma Rousseff defendeu a aprovação da CPMF. Foi o único momento durante aquele discurso em que foi vaiada. Certamente o então deputado Jair Bolsonaro engrossou o coro.

Diz o governo que não vai aumentar a carga tributária, vai apenas substituir os impostos sobre a folha de pagamentos pela CPMF. Bem, o mesmo efeito poderia ser atingido pelo aumento da alíquota do futuro IVA, que vai substituir outros impostos. Por que não o faz? Ora, porque a alíquota do IVA já é grotescamente alta, e aumentá-la ainda mais é inviável. Então, vamos inventar um novo imposto com alíquota pequena pra fazer de conta que não estamos cobrando nada. É a confissão de que é preciso continuar escondendo a derrama a que é submetido o cidadão brasileiro.

E qual teria que ser o tamanho da alíquota? Vamos lá. Em 2007, último ano de cobrança da CPMF, a arrecadação foi de R$ 37 bilhões, o que daria, a valor corrigidos, R$ 73 bilhões. Isso com uma alíquota de 0,38%. O orçamento recém-enviado pelo governo prevê uma arrecadação de INSS (principal imposto sobre a folha) de R$ 417 bilhões, grande parte paga pelo empregador. Só para compensar este imposto, a alíquota teria que ser de 2,17%. Isso com uma taxa de juros de 2%. Uma alíquota de 0,38% pagaria cerca de 1/5 das despesas com INSS. Faltariam o FGTS e o PIS/PASEP. Dá para perceber que a coisa não é tão simples.

Na época da eleição, escrevi aqui um post em que lembrava que eu havia testemunhado o nascimento de muitos impostos e contribuições, mas a morte de somente dois: a CPMF em 2007 e o imposto sindical em 2017. Os dois são, para mim, linhas vermelhas. Voto no Cabo Daciolo, mas não voto no cidadão que recriar um desses dois impostos. Está avisado.

Tratando o brasileiro como imbecil

Imposto Digital.

Imposto digital não é CPMF. Imposto digital é…

Até agora ninguém do governo veio a público para explicar o que seria o tal “imposto digital”, e como ele pode substituir impostos sobre folha de pagamento, IPI, Imposto de Renda, subsidiar o Renda Brasil, a lista de benesses não para de crescer.

Há uma confusão intencional aqui. Existe realmente uma discussão global sobre como taxar a economia digital. Empresas “que não estão em lugar algum”, como Google, Facebook, Amazon e outras do mundo virtual são um desafio para um sistema tributário baseado em jurisdição territorial. Os governos estão discutindo como taxar o consumo desses serviços.

Isso é uma coisa.

Outra coisa é um imposto “de base ampla” (como gosta de enfatizar Paulo Guedes) para financiar a felicidade geral da nação. Seu assessor especial Afif Domingos falou em arrecadação de R$ 120 bilhões/ano. Não se arrecada esse montante taxando os serviços do Google, Facebook etc. Obviamente não é isso. Insiste-se no termo “imposto digital” para confundir as coisas. Propositalmente. Não existe (pelo menos não foi divulgado) até o momento qual seria a base de tributação desse tal “imposto digital”.

A taxação das transações pela Internet já acontece. Pagamos ICMS e IPI sobre a compra de qualquer produto, seja este comprado em uma loja física ou na Amazon. Resta a transação em si, o pagamento sobre a transferência do dinheiro. Mas se isso for taxado somente para transações na Internet, todo o consumo migrará para as lojas físicas. Obviamente também não é disso que se trata.

Seria muito melhor para todos se Paulo Guedes parasse de tratar os brasileiros como imbecis. Jogasse aberto, dizendo exatamente o que quer, e não ficar se escondendo atrás de um palavreado que não significa nada. Ganharíamos tempo, uma mercadoria cada vez mais escassa na dramática situação fiscal brasileira.

Só avisando

“Parece que tem muita gente que não quer deixar suas digitais”.

“É maldade ou ignorância chamar novo imposto de CPMF”.

Estas são frases de Paulo Guedes, hoje, em audiência no Congresso, sobre o novo imposto que não é a CPMF.

Lula era mestre em cunhar frases que deslocavam a discussão do mérito da questão para o questionamento da moral de quem criticava. Quem não se lembra da acusação de que as pessoas “se incomodavam pelo pobre viajar de avião”, para desclassificar seus críticos?

Guedes precisa tomar cuidado para, no afã de emplacar sua agenda, não adotar métodos que não deram lá muito certo para o PT. Chamar quem é contra a CPMF de ladrão, ignorante ou maldoso, deixando de lado o mérito da questão, não é algo muito esperto a se fazer. Só avisando.

Linha vermelha

Um imposto sobre transações financeiras é o sonho de qualquer governante. Por que? Porque é um imposto insonegável, e sua alíquota pequenininha passa a impressão de ser um imposto inofensivo. Fica lá, escondido, ninguém nota. Só tem um problema: não é um imposto pequeno. Na verdade, é bem grande. Por ser cumulativo, soma-se em cada fase de uma cadeia de produção.

Consideremos um exemplo prosaico: um saco de arroz, vendido no supermercado. Vejamos: o supermercado paga a indústria de arroz, que paga o produtor de arroz, que paga o fabricante de fertilizantes, que paga o produtor dos insumos para a indústria de fertilizantes, que paga o produtor de petróleo, que paga a siderúrgica que produz o equipamento para tirar o petróleo, que paga o produtor de minério, que paga…E isso porque fui em uma vertical só. Não considerei o transporte, as embalagens e outros vias de produção laterais. Não é à toa que a CPMF tem um grande poder arrecadatório com uma pequena alíquota.

Como eu ia dizendo, a CPMF é o sonho de todo governo, pois deixa o imposto escondido. Nem parece que você está sustentando a máquina. Dizem que a alíquota do IVA proposto pela reforma tributária da Câmara precisaria ser de algo em torno de 25%. Um horror. Pois bem, é esse horror que estão tentando esconder de você, ao propor a CPMF.

Todo mundo tem uma linha vermelha. Eu tenho duas: o imposto sindical e a CPMF. Qualquer político que contribua para a volta de um ou de outro não tem o meu voto.

A desigualdade de renda é uma construção

Para você, que lamenta e não consegue entender porque o Brasil é um país tão desigual, preste atenção porque a história está se desenrolando diante dos seus olhos. Seus filhos e netos se farão a mesma pergunta, e você poderá contar um pequeno capítulo.

Estamos em meio às discussões sobre a Reforma Tributária, um dos dois palcos onde se define o papel do Estado na distribuição de renda do país (o outro é a discussão do orçamento).

Pois bem. O setor de serviços, por meio do seu lobby, se pintou para a guerra e afirmou que vai brigar pela nova CPMF para desonerar a folha.

Desonerar a folha parece algo nobre porque, em tese, fomenta empregos. Mas este é somente o lado bonito da história.

A CPMF é um imposto que “pega todo mundo”. E quando eu digo todo mundo, é todo mundo mesmo. Por ser um imposto em cascata, que incide em cada transação financeira, onera tanto mais os produtos produzidos quanto mais longa for a cadeia de produção/distribuição. Trata-se de um imposto concentrador de renda, e eu vou explicar porque.

Eu trabalho no setor de serviços. Minha alíquota de contribuição ao INSS vai diminuir, assim como a de meu empregador. Nem por isso vou deixar de receber a minha aposentadoria oficial. Quem vai financia-la?

Na outra ponta, temos os compradores de produtos onerados pela CPMF. Como cidadão da classe média, minha cesta de consumo é dominada por serviços. Quem compra preponderantemente produtos são os mais pobres. Produtos onerados pela CPMF. Estes, mais uma vez, pela zilionesima vez desde que Cabral aportou em nossas praias, estarão subsidiando os mais ricos. No caso, quem tem carteira assinada.

A desigualdade social não é um imperativo do capitalismo. É, antes de tudo, fruto do crony capitalism (capitalismo de compadres), onde governo e elites empresariais se unem para arrancar benefícios dos mais pobres, enquanto, com a outra mão, distribuem migalhas em forma de “bolsas” para tranquilizar suas consciências.