De onde vem o crescimento

A manchete principal do Estadão tem duas imprecisões. A primeira refere-se ao “recorde”. Achei estranho, dado que já enfrentamos períodos muito piores de inadimplência. Somente no miolo da reportagem ficamos sabendo de que se trata de uma seria do Serasa que teve início em 2016. Do jeito que está, parece que o recorde é desde Cabral.

A segunda imprecisão é mais sutil. A inadimplência não “trava o crescimento”. A inadimplência sinaliza que aquele crescimento que achávamos que existia, na verdade nunca existiu de verdade, era apenas uma ilusão de ótica. Explico.

No final de todo o qualquer processo produtivo, seja de bens, seja de serviços, estão as pessoas físicas com sua renda para comprar esses produtos e serviços. O PIB nada mais é do que a soma de todos os lucros (valores agregados) nesse processo, até chegar no cliente final, pessoa física, que vai comprar aquele produto ou serviço, produzindo o lucro final dessa cadeia para o comerciante ou prestador de serviço. A pessoa física não vai empregar aquele produto ou serviço para ela mesma produzir lucro, ela vai simplesmente consumir, sendo o último ela da cadeia de geração do PIB.

Digamos, então, que a D. Maria vai comprar um liquidificador de R$ 100 na Magalu. Ela será o elo final de uma longa cadeia de agregação de valor, cada elo contribuindo com o PIB, sendo que os R$ 100 são a soma de todos os lucros ao longo da cadeia de produção do liquidificador.

No entanto, ao invés de comprar à vista, D. Maria entra no “carnezinho gostoso” da D. Luiza. O que aconteceu aqui? Na verdade, quem “comprou” o liquidificador foi a financeira por trás do carnezinho gostoso, não a D. Maria. A financeira é mais um elo da corrente que vai lucrar em cima do consumo da D. Maria. Enquanto o carnezinho gostoso não for quitado, aquele PIB, de fato, não existe. O PIB só existe de verdade quando a D. Maria e o seu José compram produtos e serviços com o seu bom e honesto dinheiro.

Quando e se o tal do Desenrola sair, digamos que a dívida da D. Maria seja comprada por R$ 20 por alguma empresa. Esse desconto é o reconhecimento de que o liquidificador não valia R$ 100, mas apenas R$ 20. Essa diferença de R$ 80 nunca existiu, e havia sido somado ao PIB inadequadamente. A financeira vai reconhecer esse prejuízo em seu balanço, e isso vai subtrair do PIB.

Portanto, não é que a inadimplência esteja “travando o crescimento”. A inadimplência é apenas o sinal de que o crescimento que achávamos que existia era pura ilusão, só existia porque a D. Maria podia comprar o liquidificador sem ter renda suficiente. Ao limpar o nome da D. Maria, o Desenrola vai reconhecer o PIB que não existia no passado e, ao mesmo tempo, vai abrir espaço para novos financiamentos, produzindo novamente um PIB fictício, que será objeto de outro Desenrola no futuro.

Crescimento econômico é uma máquina que se move com segurança jurídica, capacitação da mão de obra e barreiras baixas à integração com economias mais desenvolvidas. O crédito serve apenas como uma graxa dessa engrenagem. Não adianta querer usar a graxa como combustível. O máximo que se vai conseguir é emperrar ainda mais a máquina.

Mistificação em alto grau

Alckmin tem pouco tempo de convivência íntima com Lula e o PT, mas o ex-governador é inteligente e aprende rápido. Sua capacidade de enganar com números desenvolveu-se de maneira espantosa. Esse tuíte alcança o estado da arte da mistificação, como só os mais habilidosos artistas do PT são capazes de fazer. Vejamos.

Hoje foi publicado um estudo com base em dados do FMI, mostrando que o PIB brasileiro vem perdendo participação no PIB global desde 1980. Na reportagem da CNN, um ”especialista” afirma que essa participação veio crescendo até 2012, para depois despencar.

Alckmin aproveita a deixa e afirma, sem enrubescer, que o governo Lula deixou um país em crescimento, que depois foi destruído por Bolsonaro. No entanto, basta uma simples checagem nos números para verificar que se trata de uma grossa mentira.

No gráfico abaixo, reproduzo o estudo com base em dados do FMI.

Podemos observar que o PT pegou o Brasil com participação de 3,1% no PIB mundial (número de 2002) e deixou o governo com participação de 2,5% (número de 2016). Houve, de fato, um leve crescimento entre 2006 e 2011 (de 3,0% para 3,1%), mesmo nível de 2002, para depois despencar nos anos seguintes. Hoje, essa participação é de 2,3%, não muito diferente dos 2,5% do fim do governo PT.

O fato é que hoje temos pouco mais da metade da relevância no PIB global que tínhamos na década de 80. Essa participação despencou em dois momentos: final da década de 80 / início da década de 90, com a hiperinflação, quando passou de 4% para pouco mais de 3%, e no final do governo Dilma, quando passou de 3% para cerca de 2,5%. Houve dois momentos de “respiro”: no pós plano Real e no superciclo de commodities. Mas a tendência de declínio é clara durante todo o processo, independentemente do governo de plantão.

Não vou aqui entrar na discussão de porque isso aconteceu. O objetivo foi só demonstrar que ficamos mais pobres em relação ao mundo, e que o governo do PT colaborou para o processo. Todas as maravilhas prometidas por todos governos nos últimos 40 anos não foram capazes de reverter a tendência. E, sem querer soar pessimista, pelo andar da carruagem, os próximos 40 anos não parecem mais promissores.

O limite do ridículo

Está rodando nas redes bolsonaristas um comparação produzida pelo Luciano Hang (também conhecido como Véio da Havan), mostrando dois mapas da América do Sul, um de 1965 e o outro de 2022. No primeiro, o Brasil aparece com participação de 27,43% do PIB sul-americano, enquanto que, no segundo, a mesma participação está em 50,12%, quase o dobro.

Mas o detalhe, digamos, cômico, da comparação é a cor do mapa: em vermelho, todos os países com governos de esquerda, em preto os países com governos de direita e em azul o Brasil. Detalhe, a orientação ideológica é a do governo ATUAL. Ou seja, atribui-se o que quer que seja que se queira concluir com esses mapas aos governos atuais, quando se trata de uma evolução dos últimos 57 anos. Ou seja, uma coisa sem pé nem cabeça.

Fui dar uma checada nos dados. O Banco Mundial mantém a base de dados de onde foram tiradas essas informações. Reproduzi, com os mesmos dados, a evolução da participação do Brasil no PIB sul-americano desde 1965 até 2021 (este é o ano correto, não 2022, como aparece no mapa). O gráfico está a seguir.

Podemos observar que o Brasil atinge 50% de participação do PIB sul-americano em 1975, após o “milagra econômico”. O mesmo governo militar derrubou essa participação a 40% em 1985, quando entregou o poder aos civis. De 1985 a 1994, temos fortes oscilações, provavelmente causadas pela hiperinflação. Vamos lembrar que se trata de PIB em dólares, o que é muito influenciado pelo câmbio usado. A partir de 1995, temos uma estabilização em 55%, interrompida pela desvalorização cambial de 1999, para ser retomada a partir de 2002.

Mas o mais engraçado vem agora: o melhor momento da participação brasileira no PIB sulamericano ocorre a partir de 2007, segundo mandato de Lula, quando estabiliza em 55%, chegando a quase 60% em 2011, provavelmente em função da forte valorização do real nesse ano. A partir de 2012, e até 2019, a participação fica mais ou menos estável em 55%, recuando para os atuais 50% nos dois últimos anos, justamente o período do governo Bolsonaro.

Então ficamos assim: a participação do Brasil no PIB sulamericano ficou em 55% durante praticamente todo o governo do PT, e só recuou para 50% quando Bolsonaro assumiu. Aliás, a participação de 2021 é a pior desde 2001.

Obviamente, não quero dizer com isso que o governo do PT foi melhor do que o governo Bolsonaro, em termos econômicos. Mesmo porque, essa série de participações no PIB sulamericano não faz o mínimo sentido para tirar qualquer conclusão que preste. Meu único ponto é que tem um limite para o ridículo. O PT também faz esse tipo de mistificação, mas normalmente eles são mais competentes.

Certamente Luciano Hang não toca suas empresas com esse tipo de interpretação das estatísticas econômicas. Bem, espero que não.

A economia brasileira na era PT. Episódio 4: Na base do anabolizante

No núcleo da política econômica do PT, chamada de Nova Matriz Econômica (NME), está a crença de que o Estado pode fomentar o crescimento econômico através da escolha de investimentos cirurgicamente escolhidos. Portanto, o crescimento econômico deveria ser o resultado de todas as políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma. De fato, se olharmos somente o crescimento, o governo Lula se destaca, conforme podemos observar no gráfico abaixo:

A média do crescimento econômico nos governos Lula foi de 4% ao ano, contra 2,5% de FHC, menos de 0,5% nos governos Dilma, 1,5% no governo Temer e cerca de 1% no governo Bolsonaro (usando previsão de crescimento de 1,5% para 2022 do FMI). Então, é indisputável o fato de que o governo Lula entregou crescimento maior, mas também é inegável que Dilma foi a responsável pela pior performance da economia brasileira na história (estou considerando o ano completo de 2016 para este e os próximos cálculos. Apesar de Dilma ter deixado o cargo em abril de 2016, o PIB daquele ano foi obra de seu governo). Considerando todos os governos do PT (linha verde), temos uma média de crescimento semelhante ao que tivemos nos governos FHC, mas ainda maior do que tivemos posteriormente, com Temer e Bolsonaro.

Mas, na vida, tudo é relativo. Precisamos ver como se saíram nossos pares nestes mesmos períodos. Escolhi para comparação os seguintes países: Chile, Colômbia, Indonésia, Coréia, Malásia, México, Peru, Rússia, África do Sul e Turquia. Deixei de fora, propositalmente, China e Índia, que têm apresentado crescimentos muito superiores à média. O resultado pode ser visto no gráfico a seguir.

Em todos os períodos considerados, o nosso crescimento econômico ficou abaixo dessa amostra de países. A menor diferença (-0,5%) foi, de fato, no governo Lula, seguido por -1,0% (governo FHC), -0,9% governo Bolsonaro), -1,7% (governo Temer) e incríveis -3,3% no governo Dilma. Se, no entanto, considerarmos os governos do PT como um todo, veremos um quadro diferente: a diferença do PT passa a ser a maior (-1,8%), seguido de Temer (-1,7%), FHC (-1,0%) e Bolsonaro (-0,9%). Se considerarmos o governo Temer como de limpeza da casa, ainda carregando grande parte da “herança maldita” dos governos do PT, podemos dividir a história econômica brasileira desde o Plano Real em três partes:

  1. Governo FHC, em que nosso crescimento fica cerca de 1% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.
  2. Governos PT, em que nosso crescimento fica em quase 2% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.
  3. Governo Bolsonaro, em que nosso crescimento volta à natural mediocridade brasileira, ou seja, cerca de 1% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.

A passagem do PT pelo governo, apesar de todos as promessas grandiloquentes de crescimento econômico, entregou-nos um crescimento ainda pior que a média já medíocre do crescimento brasileiro. Isso, apesar de termos políticas de desenvolvimento econômico como nunca antes na história deste país. É o que veremos a seguir.

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

Dilma foi eleita com o epíteto de “Mãe do PAC”. O que era o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento? Além de ser o empacotamento mercadológico de todo e qualquer investimento público ou privado em infraestrutura, para passar a impressão de que o governo estava fazendo algo realmente grandioso, o PAC também contava com incentivos fiscais a alguns setores além do uso intensivo do funding de fundos de pensão públicos e o BNDES. O PAC foi lançado no início do 2º governo Lula, em janeiro de 2007, e renovado, sob o nome de “PAC 2”, por Dilma no início de seu primeiro mandato. O seu lançamento foi cercado da desconfiança do mercado em relação à sua capacidade de acelerar o crescimento de maneira permanente. E, claro, reservava a Dilma um lugar de destaque.

De fato, tivemos uma aceleração da Formação Bruta de Capital Fixo e do investimento público neste período, conforme podemos ver nos gráficos a seguir, que mostram a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que é uma medida do investimento geral na economia, e o Investimento Público do Governo Central.

As médias se referem ao período pré-PAC (até 2006), ao período do auge do PAC (2007-2014) e ao período pós-PAC (2015 em diante). Podemos observar que, na média, a FBCF foi 3 pontos percentuais acima do período pré-PAC e 5 pontos percentuais acima do período pós-PAC. O mesmo ocorre com o investimento do governo, que pulou 1 ponto percentual do PIB em relação ao período pré-PAC, para cair o mesmo tanto no período pós-PAC.

Este é o problema de programas voluntaristas: não existe uma perenidade ao longo do tempo. Enquanto tem gás, o investimento é mantido em patamares artificialmente altos. Quando o gás termina, volta-se ao normal ou até abaixo, pois é necessário pagar as contas. O investimento ser mais alto durante um período curto não tem mérito algum, pois é preciso entender como este investimento afeta o nível do crescimento econômico como um todo. Como já vimos, o crescimento no período que compreende todo o governo do PT (o que considera o período pós-PAC) foi bem abaixo da média de países comparáveis.

Para encerrar esta primeira parte, vamos observar como a indústria se comportou durante este período. Como sabemos, a “reindustrialização” do país é um mantra de todo programa desenvolvimentista, e todo esse esforço certamente tinha este objetivo como um de seus principais. Funcionou? Vejamos no gráfico abaixo, em que plotamos a participação da indústria no PIB:

Podemos observar como a participação da indústria no PIB cai quase que linearmente durante todo o governo PT, tendo iniciado em 21,6% e terminado em 19,0%. Um verdadeiro fiasco, se considerarmos o objetivo declarado.

Até agora, vimos como o crescimento econômico da era PT dependeu de anabolizantes. Um dos principais foi o crédito, via empréstimos do BNDES.

O papel do BNDES

Apesar de ter lançado o PAC em 2007, a grande “mágica” do crescimento começa realmente a partir de 2009, quando o governo Lula inicia o aumento brutal do orçamento do BNDES. No gráfico abaixo, podemos observar o crescimento espetacular do BNDES, que saiu de quase zero em 2008 para 6% do PIB em 2010, crescendo até quase 9% nos anos seguintes. Em dinheiro de hoje, estamos falando em algo próximo a R$ 700 bilhões, uma insanidade, somente possível para aqueles que estão certos do seu sucesso. O aumento do orçamento do BNDES é uma das marcas características dos Anos de Húbris.

Em junho de 2015, com a credibilidade do Tesouro Nacional já na lona, foi aprovada a lei 13.132/2015. Esta lei emendava a lei 12.096/2009, a qual, por sua vez, autorizava o Tesouro a subsidiar os juros dos empréstimos do BNDES. A lei de 2015 seria apenas mais uma de uma série a autorizar o aumento do volume de subsídios, como havia acontecido anualmente desde a lei originária de 2009, a não ser por um pequeno detalhe: foi acrescentado um parágrafo que obrigava o Tesouro Nacional a explicitar o custo dos subsídios concedidos. Seria a primeira vez em que o custo fiscal desse programa seria tratado com transparência. Desde então, o Tesouro mantém um site com os relatórios bimestrais produzidos para atender a essa determinação legal.

primeiro relatório, referente ao último bimestre de 2015, descreve minuciosamente os mecanismos fiscais por trás dos subsídios ao chamado Programa de Sustentação do Investimento (PSI), nome dado aos aportes de recursos para que o BNDES irrigasse a economia com empréstimos subsidiados. Até 2015, o Tesouro tinha emprestado ao BNDES um total de R$ 524 bilhões, dos quais R$ 452 bilhões foram no âmbito do PSI, conforme podemos ver no gráfico a seguir, retirado do relatório:

De maneira bastante simplificada, podemos resumir o esquema na figura a seguir:

Vejamos:

1. O Tesouro se financia no mercado à taxa Selic vendendo títulos públicos para os “rentistas”. Esta é uma simplificação, pois o custo da dívida pública é normalmente maior que a taxa Selic, mas vamos assumir a taxa Selic para fins didáticos.

2. O Tesouro financia o BNDES através de contratos indexados, em grande parte, à TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo. Ou seja, o BNDES precisa devolver o dinheiro ao Tesouro pagando como taxa de juros a TJLP. Há aqui o que chamamos de subsídio implícito, ou seja, a diferença entre a taxa Selic e a TJLP. Este subsídio não entra em lugar nenhuma da contabilidade pública. Este gasto somente vai ser contabilizado na dívida pública quando o BNDES pagar o empréstimo, e este sempre pode ser rolado. Trata-se de um esqueleto escondido no armário do BNDES. No gráfico abaixo, podemos ver a diferença entre a taxa Selic e a TJLP no período em que o PSI existiu:

3. O BNDES financia o tomador do empréstimo a uma taxa subsidiada, menor que a TJLP. Essa diferença entre a TJLP e a taxa do empréstimo é chamado de subsídio explícito, para o qual o Tesouro tem autorização para devolver a diferença (chamada de “equalização”) para o BNDES. Este é um gasto primário, e deve ser previsto no orçamento público.

Este primeiro relatório produzido pelo Tesouro mostra o tamanho da conta. Entre 2008 e 2015, os subsídios explícitos somaram a bagatela de R$ 36,8 bilhões, ou R$ 4,5 bilhões/ano. Até aí não parece muita coisa. O problema é a previsão dos subsídios explícitos e implícitos APÓS 2015. Sim, porque os contratos com o BNDES vão até 2060! Até lá, trazendo a valor presente os subsídios, a conta soma nada menos do que R$ 200 bilhões!!! Este é o valor a ser gasto para emprestar R$ 450 bilhões a juros camaradas no âmbito do PSI.

Apenas como curiosidade, segue a lista das dez maiores empresas ou empreendimentos que receberam financiamentos do BNDES entre 2007 e 2015 (a fonte está aqui).

Podemos verificar que a Petrobrás obteve nada menos que 18% do total dos empréstimos neste período. Dedicaremos um episódio inteiro à empresa. Podemos notar a presença de várias “campeãs nacionais”, como Embraer, Vale, Odebrecht, Oi e JBS, em uma política de fomento que pretendia criar “multinacionais brasileiras”, com resultados muitas vezes duvidosos. E a Caixa Econômica aparece na lista como repassadora de recursos para o financiamento de projetos de mobilidade e de construção de estádios para a Copa do Mundo.

Qual foi o racional para estabelecer um programa desse tipo? A ideia é que, ao fomentar setores escolhidos, teríamos um boom de crescimento que faria aumentar a arrecadação, tornando bem tranquilo o pagamento desses subsídios ao longo dos anos.

O problema desse tipo de raciocínio está na figura da bicicleta: para manter a bicicleta em pé, é necessário estar sempre pedalando. Usando um pouco de teoria dos jogos, não se trata de um jogo de uma rodada só. O custo do dinheiro para as empresas não pode ser baixo somente na primeira rodada, é preciso que seja sempre, caso contrário vão parar de investir na segunda rodada pelo mesmo motivo que não investiriam na primeira rodada. Não à toa, como vimos no gráfico acima, os recursos para o PSI precisavam sempre crescer, ano após ano.

Só que essa máquina de imprimir dinheiro barato tem um limite, que é justamente o limite de quem financia a festa: o comprador do título público. Quando este nota que tem algo errado na dívida pública, começa a pedir taxas de juros mais altas, aumentando o subsídio implícito do esquema, o que vai piorando a situação, até o momento em que o Tesouro não consegue mais pedalar. Então, a bicicleta cai, como aconteceu em 2015.

E o que aconteceu com o crescimento que deveria ser o resultado deste esquema? Em um relatório de efetividade produzido pelo próprio BNDES em 2015, chega-se à conclusão de que as empresas investiram mais do que se não houvesse o PSI. Isso é o óbvio, só faltava terem investido menos. A questão é entender como estes empréstimos elevaram o crescimento potencial do país, o que está longe de estar provado. Aliás, a julgar pelo crescimento do país após 2016, não houve efeito algum. Descobriu-se que crescimento econômico não é só uma questão de dinheiro barato financiado com dívida pública. Este é só UM dos problemas a serem resolvidos, e não é concedendo-se subsídio que se resolve. É preciso ter segurança das regras, dos contratos, um bom sistema judicial, pouca burocracia, infraestrutura adequada e uma longa lista de etceteras. Não, o crescimento não é uma questão de vontade política, como o governo do PT descobriu.

Esta aventura nos custou R$ 200 bilhões. Aprendemos alguma coisa?

O Sonho Acabou

O que é uma recessão? Recessão é o crescimento econômico negativo. Para entender o que significa isso, precisamos entender o que é crescimento econômico.

Quando falamos de crescimento, estamos comparando o PIB de um ano contra o PIB do ano anterior. O PIB é a soma de todos os produtos e serviços feitos em um país em um determinado ano. O IBGE tem um exemplo bem didático, que ajuda a entender como é calculado o PIB.

Considere a fabricação do pão. De forma bem simplificada, para fabricar o pão é preciso plantar o trigo, fazer a farinha e, finalmente, fazer o pão. Digamos que o agricultor venda o seu trigo para o moinho por R$ 100, o moinho venda a farinha para o padeiro por R$ 200 e o padeiro consiga fabricar 100 pães e venda esses pães para as famílias por R$ 300 (R$ 3 por pão). Em cada etapa, o lucro foi de R$ 100: o agricultor ganhou R$ 100 (considerando, de maneira bem simplista, que ele tenha tido custo zero de produção), o moinho lucrou mais R$ 100 e, finalmente, o padeiro lucrou outros R$ 100. O PIB é a soma de todos esses lucros (ou “valores agregados”). No final, o PIB foi de R$ 300, que foi o preço pago pela família.

Em uma recessão, temos não a criação de valor, mas a destruição de valor. Digamos que, no ano seguinte, o padeiro tenha conseguido vender apenas 90 pães pelo mesmo preço, faturando R$ 270. O PIB, neste caso, teria caído 10%. Sempre que uma empresa produz e vende menos do que no período anterior, sua contribuição para o PIB é negativa. Assim como, se uma empresa “queima” dinheiro em empreendimentos que não produzem lucro, sua contribuição para o PIB é negativa. A grande recessão de 2014-2016, a maior em mais de um século, foi fruto de uma queima sem precedentes de recursos em projetos megalomaníacos por parte do governo, combinada com a queda de confiança da iniciativa privada frente à instabilidade econômica e política do 2º mandato de Dilma Rousseff. A interrupção de obras por todo o país em função dos efeitos da operação Lava-Jato pode ser debitada nesta conta. Para os que acham um exagero chamar a recessão da Nova Matriz Econômica como a maior em mais de um século, temos o gráfico a seguir, em que mostramos, em cada ano, o crescimento do PIB acumulado naquele ano e no ano anterior:

Observe como o PIB recua mais de 5% no biênio 2015-2016, queda maior do que a vivida pelo país durante a Grande Depressão do início da década de 30 do século passado.

Há uma narrativa de que o crescimento econômico começou a declinar fortemente por conta da paralisação que tomou conta do país em função da operação Lava-Jato. Trata-se de uma falsa correlação. Sim, claro, a paralisação de obras cobra o seu preço no PIB, sem dúvida. Mas está longe, muito longe, de explicar toda a profunda recessão que o Brasil enfrentou no biênio 2015-16. Primeiramente, vamos observar a evolução da confiança dos empresários. Como sabemos, se os empresários não estão confiantes, não investirão e o PIB tende a sofrer. No gráfico abaixo, números acima de 100 indicam que há mais empresários avaliando a situação como positiva do que empresários avaliando a situação como negativa, e vice-versa.

Note que a confiança dos empresários (da indústria, do comércio e dos serviços) começa uma lenta mas segura tendência de queda desde 2010. Ou seja, já desde o último ano do governo Lula e durante todo o primeiro mandato de Dilma, a confiança dos empresários começou a declinar, mas ainda permanecendo acima de 100. A partir de 2014, no entanto, o instinto animal dos empresários sente que algo não vai bem. A confiança despenca desde o início daquele ano, e continua em sua queda livre até o final de 2015, iniciando sua recuperação apenas depois do impeachment. Note que o início das denúncias da Lava-Jato ocorre no final de 2014 e as empreiteiras começam a paralisar obras somente a partir de meados de 2015, quando a confiança do empresariado, de maneira geral, já está na lona. Se tomarmos a confiança dos empresários como uma medida que nos dá uma ideia do PIB futuro, podemos concluir que a Lava-Jato pouco tem a ver com este fenômeno.

Vamos analisar de outra forma. O gráfico a seguir mostra o acréscimo ou a perda do PIB medido em reais (valores já deflacionados pela inflação do período).

Podemos observar que, no ponto pior da recessão, o PIB encolheu R$ 400 bilhões em um ano. Segundo reportagem do Estadão de junho de 2017, havia R$ 90 bilhões de obras paradas, que eram tocadas por empreiteiras envolvidas na Lava-Jato.

Uma obra parada não necessariamente subtrai do PIB. O PIB diminui quando o dinheiro já investido naquela obra parada é eliminado do balanço da empresa, como se a obra não valesse nada. Normalmente não é isso o que acontece. A obra é contabilizada por algum valor, até para que possa ser vendida. Ou seja, o valor é menor (há um prejuízo que subtrai do PIB), mas não é zero. Mas digamos que, por hipótese, todas essas obras tenham sido marcadas a zero, ou seja, todo o dinheiro investido tenha virado pó. Neste caso, a Lava-Jato teria subtraído R$ 90 bilhões do PIB. E os restantes R$ 310 bilhões? Pode haver um efeito multiplicador na economia (uma obra parada acaba tendo impacto negativo sobre outras atividades), mas é preciso muito efeito multiplicador para explicar R$ 400 bilhões.

Outra narrativa frequentemente usada para a grande recessão foi a chamada “virada fiscalista” liderada pelo ministro Joaquim Levy a partir de 2015. Esta virada teria consistido em um corte brutal de despesas, em uma política de austeridade que teria afundado a atividade econômica, a qual já vinha cambaleante desde 2014. Vejamos, então, no gráfico abaixo, se houve realmente este corte de despesas.

Podemos observar que não houve corte real (acima da inflação) de despesas até agosto, quando já estávamos afundados na recessão. Pode-se até argumentar que, em uma situação de queda de PIB, o governo teria que agir contra ciclicamente, aumentando as despesas. Esta falta de despesas públicas teria piorado uma situação que já era ruim. O problema desse roteiro está justamente em sua protagonista.

Se tivesse havido uma mudança de presidente da República, a ideia de um “arrocho fiscal” seria muito mais verossímil. O problema é que a mesma pessoa que havia dito que “despesa é vida”, de repente torna-se a campeã do contingenciamento de despesas. Para que esta virada de personalidade fosse verossímil, seria necessário que houvesse um acontecimento de grande impacto, que fizesse a personagem mudar a sua própria natureza. Um roteiro sem esse grande acontecimento seria ininteligível.

Este grande acontecimento foi justamente a queda das receitas causada pela recessão que já havia começado em 2014 e a constatação de que estávamos caminhando para uma grande dificuldade de rolagem da dívida. Ao convocar Joaquim “mãos-de-tesoura” Levy para comandar o ministério da Fazenda, Dilma Rousseff como que abandonou a sua personalidade anterior para assumir uma nova. E foi levada a isso por circunstâncias incontornáveis, acima de sua capacidade de inventar uma realidade paralela.

O problema desse roteiro é explicar por que as receitas vinham caindo, o que obrigou o governo a também cortar despesas. Vínhamos de um período (até 2014, como vimos anteriormente) de gigantescos investimentos alavancados pelo BNDES e pela Petrobrás. Por que raios a atividade começou a recuar? Por que a confiança dos empresários começou a declinar? Onde exatamente o modelo anterior falhou? A prova de que falhou é justamente o início da desaceleração da economia a partir de 2014, apesar de todos os estímulos dados nos anos anteriores. Esta desaceleração antecedeu a desaceleração das despesas patrocinada por Joaquim Levy, que assim agiu porque Dilma Rousseff viu que não havia outra maneira de manter um mínimo de sanidade das contas públicas.

Portanto, culpar a desaceleração das despesas pela grande recessão de 2015-16 é fazer o rabo abanar o cachorro. As despesas foram desaceleradas (nem cortadas foram, apenas se mantiveram estáveis) porque a política anterior causou uma desaceleração anterior das receitas. A pergunta correta a se fazer é: por que, afinal, a política anterior causou a desaceleração das receitas? Culpar o remédio por ter causado a doença não parece ter lógica.

Assim, a Grande Recessão precisa encontrar explicação além da Lava-Jato e do “arrocho” de Joaquim Levy. Pode até ser que estes dois eventos tenham piorado a situação, mas não foram a sua causa principal, até por uma questão, como vimos, de coerência temporal entre os acontecimentos. Se fosse o roteiro de um filme, seria um péssimo roteiro, daquele cheio de pontas soltas, e que tornam o filme ininteligível.

A recessão que se iniciou em 2014 deve ter seus efeitos buscados antes de 2014, não depois. Uma recessão pode ser causada basicamente por três motivos:

  1. Um aperto monetário (elevação das taxas de juros): neste caso, os consumidores postergam o seu consumo e os empresários postergam os seus investimentos;
  2. Um aperto fiscal (corte de despesas governamentais)
  3. Um choque negativo na economia, que faz com que os consumidores e os empresários se retraiam: pode ser uma guerra, uma pandemia ou algum choque de confiança.

Vimos que nada disso ocorreu, pelo menos não na magnitude que justificasse a maior recessão da história brasileira. A única explicação coerente e verossímil é mais simples: o efeito anabolizante terminou, e tivemos que pagar a conta.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Educação e crescimento econômico

Este artigo é muito, mas muito interessante mesmo. Desconstrói, com números, o lugar comum de que o problema do Brasil é o baixo investimento em educação e aponta, no último parágrafo, os reais gargalos que impedem o crescimento econômico. Vale muito a leitura.

Casa sobre areia

Gosto de pensar em crescimento econômico como criação de valor. O PIB de cada país é calculado com base no valor agregado de cada atividade: depois de descontados todos os custos de produção daquele bem ou serviço, o que sobra é o valor agregado, o Produto Interno Bruto.

O PIB é calculado somando-se o valor, em reais, dos produtos e serviços finais, comprados pelos consumidores. O próprio IBGE, aqui, explica de maneira didática como é calculado o PIB. O exemplo dado pelo Instituto é o do pão: se o trigo foi vendido a R$ 100, a farinha de trigo a R$ 200 e o pão a R$ 300, o PIB terá sido de R$ 300, que é o valor pago pelo consumidor final.

No entanto, como disse acima, gosto de pensar no PIB como valor agregado em cada uma dessas etapas. Vamos imaginar, apenas para fins didáticos, que o produtor de trigo não tenha tido custo na sua produção. Seu lucro foi, então, de R$ 100. O produtor de farinha de trigo comprou o trigo a R$ 100 e vendeu a farinha a R$ 200, tendo também um lucro de R$ 100. E o produtor de pão comprou a farinha de trigo a R$ 200 e vendeu o pão a R$ 300, tendo lucro de R$ 100. A soma dos lucros em cada passo (do produtor de trigo, do produtor da farinha e do produtor de pão, R$ 100 em cada etapa) perfazem o total do PIB.

Observe que este “valor agregado” em cada etapa está dividido entre lucro para o capitalista e salários. Funciona como se os empregados de cada empresa fossem, eles mesmos, capitalistas de si mesmos, obtendo “lucro” do aluguel de sua mão de obra. Chamamos esse “lucro” de salário. Assim, esses R$ 300 obtidos na venda do pão não são exatamente a soma dos lucros dos capitalistas ao longo do processo. Inclui também os salários pagos à mão-de-obra utilizada em cada etapa.

Ah, e o PIB inclui também os impostos. Afinal, é preciso que todo esse processo remunere também o nosso “sócio oculto”.

Então, como estava dizendo, o crescimento econômico, o aumento do PIB, é, no final do dia, um processo de agregação de valor. Pode não parecer para você, que é um consumidor insaciável, mas a coisa mais difícil que existe no mundo é tirar dinheiro do bolso de alguém. Este alguém só vai tirar dinheiro do bolso para comprar algo que lhe agregue valor. Este contínuo esforço para agregar valor ao longo de todo o processo produtivo até chegar no consumidor final é que produz o crescimento econômico. Por definição.

Este conceito é de extrema importância. Muitas vezes nos envolvemos em debates sobre o papel do Estado na economia, sobre como gastos do governo poderiam estimular o crescimento econômico e esquecemos esta verdade básica: não existe crescimento econômico permanente sem agregação de valor.

Hoje, o Estadão traz uma entrevista com o colunista do Financial Times, Martin Sandbu, que defende a ideia (e não está sozinho) de um novo consenso se formando, e que se destina a substituir o chamado “Consenso de Washington”. Neste “novo consenso”, o Estado tem um papel central no desenvolvimento econômico, ao investir em áreas ou em momentos que não interessam à iniciativa privada, mesmo que, para isso, tenham que aumentar as suas dívidas.

Martin Sadbu dá o exemplo da austeridade fiscal que corta investimentos em saúde. Investir em saúde resulta em uma mão-de-obra mais produtiva, o que impulsiona o crescimento econômico. Mas isto estaria sendo negligenciado pelas políticas de austeridade. Parece ser um bom argumento. Mas, vejamos.

Digamos que o governo invista 1.000 moedas em “saúde”. Este termo genérico, “saúde”, envolve escolhas. Muitas escolhas. O que é “saúde”? Mais ambulâncias? Mais hospitais? Salários melhores para os médicos e enfermeiros? Financiamento de um seguro-saúde? Como fazer com que essas 1.000 moedas sejam investidas de modo a realmente agregar valor para a economia como um todo? Lembre-se sempre: estamos procurando políticas que fomentam o crescimento econômico, e o crescimento econômico se alcança, no longo prazo, somente através da agregação de valor.

Digamos que o governo, que opera os recursos do Estado, tome as decisões corretas, maximizando o valor agregado do investimento em saúde. Ainda cabe a questão: este teria sido o melhor investimento para este dinheiro, tendo como objetivo o crescimento econômico? Note que não estamos fazendo considerações de outras ordens, como justiça ou distribuição de renda. A discussão, da forma como está colocada, se refere ao estímulo ao crescimento econômico. Voltando: terá sido este o melhor investimento para as 1.000 moedas? Será que se estas 1.000 moedas permanecessem nas mãos da iniciativa privada, este dinheiro não poderia ser melhor investido? Quem disse que o investimento em saúde é a melhor alternativa para agregar valor para a sociedade como um todo?

Para quem se choca com esse tipo de discussão (sim, eu sei, saúde é algo sério, discutir economicamente o custo de uma vida humana é chocante), vamos usar outro exemplo, aliás muito em voga: o investimento em infraestrutura.

Biden está patrocinando um megapacote de investimentos em infraestrutura. Estes investimentos poderiam ser feitos pela iniciativa privada, desde que o preço cobrado dos usuários permitisse remunerar o capital, tanto financeiro quanto humano. Lembre-se, esta é a medida de criação de valor. Como o Estado vai investir, depreende-se de que se trata de obras que não agregam valor suficiente para os seus usuários diretos, aqueles que deveriam pagar pelo uso. Portanto, o governo faz uma vaquinha, passando o chapéu entre todos os cidadãos, usuários ou não daqueles serviços, para pagar pela sua construção e manutenção. A ideia é de que aquele investimento agrega valor para todos, mesmo para aqueles que não usam diretamente os serviços. Uma estrada, por exemplo: se fosse cobrado pedágio, este custo seria cobrado dos consumidores finais dos produtos que passam por esta estrada. Como estes consumidores não estão dispostos a pagar por isso (não reconhecem o valor agregado), outros consumidores que não consomem estes produtos são chamados a pagar por eles. De alguma forma, estes outros consumidores estariam sendo, teoricamente, beneficiados pelo fato de estarem pagando, indiretamente, por produtos que não estão consumindo. Essa história de “externalidade positiva” é quase um ato de fé.

Veja: não estou negando que gastos governamentais estimulem o crescimento econômico no curto prazo. Todas aquelas obras, pessoas contratadas, gente trabalhando, e depois uma bela obra sendo utilizada, tudo isso “faz a roda da economia girar”, como dizem. O problema não é o curto prazo. O problema é o longo prazo.

Keynes, em resposta à crítica de que a solução de gastos públicos contra o desemprego levaria à inflação no longo prazo, dizia que, no longo prazo, estaríamos todos mortos. No entanto, esta afirmação de Keynes somente seria verdade se um meteoro atingisse a Terra extinguindo a humanidade. Neste caso, poderíamos gastar como se não houvesse amanhã, dado que não haveria mesmo. A verdade é que nem todos estaremos mortos. A dívida pública é uma transferência de renda intergeracional. A nossa geração estará morta no longo prazo, mas a dívida ficará para os nossos filhos e netos. Toda dívida é um saque a descoberto sobre a geração futura.

No longo prazo, é preciso que os investimentos feitos pelo governo agreguem valor. Somente dessa maneira o crescimento econômico será sustentável. Senão, é só fogo de palha, que se extingue rapidamente, deixando não mais que cinzas. Vejamos o que nos mostra a história.

O gráfico abaixo mostra uma série longa (desde 1947) de crescimento do PIB no Brasil e investimento público. As barras vermelhas são o crescimento do PIB em cada ano (escala da esquerda), enquanto a linha azul mostra o investimento público como percentual do PIB (escala da direita).

Podemos observar três momentos de elevação abrupta do investimento público. O primeiro não tem a ver com investimentos produtivos, mas com a construção de Brasília: os investimentos públicos passaram de 3% do PIB em 1956 para 5,5% do PIB em 1958. A ressaca deste que talvez tenha sido o investimento mais improdutivo da história (e olha que a concorrência é forte) veio a partir de 1963, quando o crescimento do PIB se desacelerou de maneira abrupta: de uma média de 9% de crescimento entre 1958 e 1962, o crescimento em 1963 foi de apenas 0,6%. Se alguém acha que o golpe de 64 não tem nada a ver com economia, talvez tenha que refazer seus conceitos. O crescimento no triênio 63-65 foi de apenas 2,1% ao ano, cerca de 7 pontos percentuais abaixo dos 5 anos anteriores. Ou seja, o crescimento do investimento público foi capaz de gerar crescimento de curto prazo, mas que não se sustentou com o tempo.

O segundo momento é a saída do milagre econômico do início da década de 70. Percebendo que o crescimento estava perdendo ritmo, e sem querer admitir o fim da festa, o governo de Ernesto Geisel pisou fundo no acelerador dos investimentos públicos, de uma média de 7% do PIB na primeira metade da década para uma média de 9,5% no triênio 76-78. Até conseguiu sustentar algum crescimento no curto prazo, mas depois o país mergulhou na crise da dívida externa, dando origem à década perdida dos anos 80.

O terceiro momento é a saída do “superciclo das commodities”, causado pelo crescimento acelerado da China. No quinquênio 2004-08, o Brasil cresceu a uma média de 4,8% ao ano. Com a grande crise financeira de 2008, o governo colocou o pé no acelerador dos investimentos públicos para levantar o PIB, elevando de uma média de 2,5% do PIB nos cinco anos anteriores para 4,5% em 2010. A recuperação do crescimento foi rápida no curto prazo, mas a ressaca foi grande, dando origem à década perdida dos anos 10.

O problema desses ciclos de investimentos públicos é justamente encontrar atividades que agreguem valor e que, por algum motivo, não atraem o investimento privado. Haja externalidade positiva!

Mas não é só de investimentos públicos que vive a expansão de gastos públicos em busca do santo graal do crescimento econômico. Como afirmou o colunista Martin Sandbu, os investimentos sociais, que não entram nessa conta de investimentos públicos, agregam valor ao longo do tempo. A austeridade seria, então, contraproducente.

Bem, talvez o colunista do Financial Times não esteja familiarizado com a questão brasileira. Nós  aderimos, de corpo e alma, ao novo consenso que está desbancando o Consenso de Washington. Vejamos o gráfico a seguir, em que mostramos a evolução dos superávits primários e da dívida pública nos últimos mais de 20 anos:

Observe como, a partir de 2014, começamos a produzir déficits primários, depois de 15 anos produzindo superávits. Primeiro, de maneira envergonhada, varrendo os números pra debaixo do tapete da contabilidade criativa. Depois, em plena luz do dia. E a dívida pública, como não poderia deixar de ser, cresceu desde então. Em 2020 produzimos a espetacular marca de 9,5% do PIB de déficit primário, de longe o maior número entre as economias emergentes e somente comparável ao déficit dos EUA entre os países desenvolvidos. Ou seja, já estamos muito à frente de todo mundo nesse “novo consenso”, em que os gastos do governo devem sustentar o crescimento econômico.

Mas este gráfico tem outro trecho interessante: observe o crescimento da dívida entre 1998 e 2002, apesar da produção de superávits primários. Por quê? Simples: a taxa de juros, na época, era gigantesca. O menor nível da Selic nesse período foi de 15,25%, mas foi comum convivermos com taxas acima de 20% ao ano. Então, mesmo produzindo superávits primários, os juros pagos sobre a dívida faziam aumentar essa mesma dívida. Este é o risco que corremos agora, com a dívida acima de 90% do PIB: se a taxa de juros subir, o gasto com juros será muito maior, dificultando a estabilização da dívida.

Perguntado sobre o que nós, um país altamente endividado, deveríamos fazer para nos juntar ao “novo consenso”, o colunista do Financial Times sacou o seguinte:

Em primeiro lugar, temos muito espaço para melhorar como o governo gasta o dinheiro público. Puxa, isso sim é uma descoberta, como não havíamos pensado nisso antes. Basta gastar o dinheiro melhor! Fácil.

Mas o último conselho é que vale ouro: o Brasil deveria encontrar modos de fazer empréstimos de forma segura, com prazos longos, para que não tenha de se refinanciar de repente quando as taxas de juros subirem. Uau, isso é que é conselho! Claro, basta fazer encontrar financiadores de longo prazo para que possamos aderir ao “novo consenso” de “maneira segura”.

Estou sendo sarcástico, claro, mas quando colocados diante do problema concreto, aquele que os gestores públicos enfrentam, todos esses palpiteiros não conseguem se sair com nada mais do que platitudes desse tipo. Quer outro exemplo? Na mesma edição de hoje, o ex-diretor do Banco Central, Luís Eduardo Assis, em sua coluna, também prescreve gastos públicos como a solução de todos os seus problemas. E, óbvio, o abandono do teto de gastos. Mas é o conselho final que vale a pena ler:

Sim, é tempo de pensar em soluções inteligentes e criativas. Estamos esperando. Em todo o artigo que leio criticando o teto de gastos, fico ansioso por encontrar soluções inteligentes e criativas que substituam esse burro e sem imaginação teto de gastos. Saio sempre de mãos vazias.

Resumindo alguns pontos para encerrar este artigo:

1. Crescimento econômico não se improvisa. Crescimento econômico é fruto de produtividade, agregação de valor para o consumidor final. Quanto mais valor se agrega com menos recursos, mais a economia cresce. A destruição de uma economia se dá pelo desperdício de recursos em atividades que não agregam valor.

2. A austeridade não é um fetiche. Quem não gosta de gastar, não é mesmo? O problema está na sustentabilidade da dívida gerada pelo gasto governamental. Se o gasto fosse investido em atividades que agregassem valor, o crescimento econômico resultante pagaria a conta. Mas isto requereria um grau de clarividência dos governos muitas vezes acima do que normalmente observamos. Além disso, parece pouco provável que só o governo encontre atividades que agregam valor, vendo oportunidades onde a iniciativa privada não vê. As externalidades positivas são de difícil mensuração e, como a história mostra, normalmente não compensam o gasto.

3. Este “novo consenso” não tem nada de novo. É o bom e velho keynesianismo, que levou à estagflação da década de 70. O articulista do Financial Times, perguntado sobre a diferença deste “novo consenso” para o keynesianismo, respondeu o seguinte:

O “novo consenso”, portanto, ultrapassaria o keynesianismo por incluir a desigualdade e a desregulamentação financeira como obstáculos ao crescimento econômico. Ou seja, não basta o governo gastar. Precisa gastar distribuindo renda e amarrando as mãos do sistema financeiro, limitando o crédito. Junto com uma boa política de fomento a determinados setores escolhidos pelo seu “efeito multiplicador” (política industrial sofisticada), a mistura disso tudo resultaria em agregação de valor para o consumidor final. Bem, quem sou eu para dizer que vai dar errado.

4. A austeridade não é garantia de crescimento econômico. Nem tem a pretensão de ser. A austeridade é apenas o alicerce da casa, não a casa em si. Seria néscio achar que somente o alicerce resolve. Assim como seria igualmente néscio tentar construir a casa sem o alicerce. Vimos que esse tipo de estrutura não se sustenta. O articulista do Financial Times insiste, em vários pontos de sua entrevista, que a austeridade diminuiu o crescimento econômico no curto prazo e, por isso, foi uma política equivocada. O que ele está sugerindo, no fundo, é trocar o alicerce por uma casa construída sobre areia.

O vírus chinês

Bolsonaro deu vazão mais uma vez, ontem, a uma de suas teorias da conspiração de estimação: a China declarou guerra “química, bacteriológica e radiológica” ao mundo. A evidência? O país foi o que “mais cresceu o seu PIB”. Mais evidente que isso, só as provas insofismáveis de que a Terra é plana.

Vamos lá. A China vinha crescendo a mais de 6% ao ano antes da crise. Em 2020 cresceu apenas 2%. Perdeu, portanto, 4 pontos percentuais de PIB em 2020. O Brasil crescia 1% ao ano antes da crise. Decresceu 4% em 2020. Perdeu, portanto, 5 pontos percentuais de PIB. Reforçando: a China perdeu 4 pontos percentuais de PIB e o Brasil, 5. Não parece ser uma grande diferença, não é mesmo?

Além disso, a resposta da autoridades chinesas ao vírus foi muito mais violenta. Se aqui estamos reclamando da “perda das liberdades”, é porque não vivemos na China. Lockdown lá é lockdown, não esse arremedo que temos aqui. Resultado: números de infectados e óbitos muito menores do que no mundo ocidental. É até provável que os chineses estejam escondendo os números reais, mas a diferença é tão gritante que, mesmo o número real deve ser muitas vezes menor que o que vimos na Europa e Américas. Aliás, os números chineses estão em linha com os de outros países do Sudeste Asiático e mesmo Japão, Austrália e Nova Zelândia, que, igualmente, implantaram medidas draconianas de controle da pandemia. O resultado: a China e estes outros países puderam voltar antes a uma vida mais ou menos normal.

Por fim, em um mundo globalizado, não parece ser uma tática muito inteligente acabar com seu mercado consumidor e fornecedor. Crescimento econômico não é um jogo de soma zero, em que o meu crescimento depende do decrescimento do outro. Crescimento econômico é um jogo cooperativo de criação de valor. O vírus, que claramente destrói valor, só é instrumento de crescimento econômico na cabeça de paranóicos.

Como toda teoria da conspiração, a tese do “vírus chinês” é plausível à primeira vista, assim como a sensação de que a Terra é plana quando se olha para o horizonte. Mas, como toda teoria da conspiração, não para em pé diante de argumentos nem tão sofisticados.

Sim, a China é uma ditadura. Sim, a China tem aspiração a ser uma potência hegemônica. Mas eles não chegaram aonde chegaram sendo idiotas a ponto de atacarem seus principais parceiros comerciais.

Quem é o culpado pelo aquecimento global?

Não tive tempo de comentar essa coluna ontem, quando foi publicada no Valor Econômico. Mas merece comentário, pois foi um dos raros momentos de realismo nesse debate sobre as mudanças climáticas.

Humberto Saccomandi, editor de internacional do jornal, manda a real sobre o tema: o controle sobre a emissão de gases de efeito estufa significa “uma economia com produtos mais caros e menos consumo”. É isso.

O colunista não ataca agenda ambientalista, pelo contrário. Diz ser muito necessária. Mas coloca o problema no seu enquadramento correto, que vocês já devem ter lido por aqui nas vezes que abordei o tema: não se trata de um problema restrito a governos insensíveis e empresas malvadonas. Trata-se, antes de tudo, de um problema de demanda. Os indivíduos, eu, você e a Greta, queremos o máximo conforto pelo menor preço possível. A indústria simplesmente oferece o que nós desejamos.

Dentro do capitalismo, a forma de induzir comportamentos é através da precificação, afirma corretamente o colunista. Por isso, combustíveis fósseis deveriam ser mais caros, de forma a induzir a diminuição de seu consumo. Claro que combustível mais caro significa produtos mais caros. E mais caros para todos, ricos e pobres. Humberto cita o caso das usinas nucleares: por apresentarem um grave problema de descarte de lixo nuclear, várias normas foram editadas, tornando a produção de energia nuclear em usinas novas economicamente inviável para a iniciativa privada, o que afastou investidores. Sim, o lucro é ainda um driver importante do sistema capitalista.

Para resolver essa charada, o colunista lança mão do conceito de “economia doughnut”, ou “rosquinha”, proposta pela economista britânica Kate Raworth. Segundo esse conceito, a humanidade precisa reaprender a viver entre os limites de um mínimo de conforto e um máximo de consumo ambientalmente sustentável. Obviamente, é mais fácil falar do que fazer. Procure no discurso de Biden algum trecho dizendo que os americanos precisam se acostumar com menos conforto. Boa sorte.

E este conceito leva a outro nó, também apontado pelo colunista: o mundo é um só, mas obviamente as populações dos países pobres vivem muito abaixo do limiar mínimo de conforto aceitável. As populações dos países ricos, portanto, deveriam não só diminuir o seu nível de conforto por questões ambientais, mas, adicionalmente, para também abrir espaço de consumo para as populações dos países pobres. Como diz o colunista, “um processo de difícil aceitação”.

Aqui termina a coluna de Humberto Saccomandi e começa a minha conclusão. Paul Kruger afirma em sua coluna do New York Times, traduzida hoje no Estadão, que o custo de produção da energia solar caiu 89% desde 2009 e o da energia eólica, 70% no mesmo período. Impressionante, não é mesmo? Mas, no capitalismo, tudo é uma questão de preço. Vocês podem ter certeza de que, no dia em que as energias solar, eólica e todas as outras fontes renováveis de energia forem mais baratas que a energia derivada de combustível fóssil, não teremos mais Cúpulas do Clima. A indústria se converterá espontaneamente para essas fontes, sem necessidade de políticas governamentais. Afinal, lucro é ainda um driver importante do capitalismo.

Vida digna

“Precisamos garantir vida digna para os brasileiros!”

Com pequenas variantes, este é, de modo geral, o discurso dos políticos brasileiros. E não somente dos políticos. Também é o discurso de todos os que, de uma forma ou de outra, acham que têm a solucionática para toda a problemática brasileira, como dizia o inesquecível Odorico Paraguaçu.

Mas, o que é uma “vida digna”?

Arriscaria dizer que “vida digna” é aquela em que o ser humano tem acesso a todos os bens essenciais à sua sobrevivência. O diabo nessa definição está em definir o que é “essencial”. O que é essencial para mim pode não ser para você, e vice-versa. Além disso, o ser humano tem a incrível capacidade de se acostumar com o seu padrão de vida, de modo que várias coisas se tornam “essenciais” ao longo do tempo. Quem já experimentou uma redução abrupta em sua renda sabe do que estou falando.

Assim, a definição de “vida digna” é algo fluido, que depende da definição do que é “essencial”. No entanto, não por isso vamos deixar de abordar o tema. A propósito, lembro de um caso que ficou famoso na Suprema Corte dos EUA.

Em 1964, o dono de um cinema apelou à Suprema Corte contra uma condenação por exibição de material obsceno. A apelação se baseava na ideia de que é impossível definir a linha que separa o obsceno da nudez artística. O juiz Potter Stewart, embasando seu voto a favor da apelação, saiu-se com a frase que até hoje é considerada o resumo daquilo que não conseguimos definir, mas conhecemos muito bem: “Eu reconheço quando eu vejo” (I know it when I see it), referindo-se a material pornográfico.

Vida digna é difícil de definir. Mas vida indigna é facilmente reconhecível quando se vê.

Em busca de uma definição do que seria essa tal “vida digna”, bati à porta do Dieese, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Se tem alguém que entende de vida digna são os sindicatos, pensei. Eles não param de defender “vida digna” para os trabalhadores.

O Dieese calcula um “Salário-Mínimo Necessário”, com base, segundo a metodologia, na Constituição de 1988, que define o salário-mínimo como aquele “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas (do trabalhador) e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.

Ok, mas como definir os gastos mínimos em cada um desses itens, de modo a garantir a tal “vida digna” ao trabalhador? Como isso é muito difícil, para não dizer impossível de se fazer, o Dieese usa uma metodologia reversa: calcula o valor de uma cesta básica mínima de alimentos e supõe que esta cesta ocupe um percentual dos gastos totais da família. Vale a pena dar uma olhada nos detalhes.

Para calcular a cesta básica de alimentação, o Dieese usa o Decreto Lei no 399, de 30/04/1938. Sim, você não entendeu errado: o Dieese considera a cesta básica de alimentação definida por uma lei de 1938, a que estabeleceu o salário-mínimo no tempo do Estado Novo. Tem até banha, espertamente substituída por óleo. Mas ok, são detalhes. O que importa vem agora.

Para calcular o “Salário-Mínimo Necessário”, o Dieese considera que o gasto com essa Cesta Básica representa 35,71% do total de gastos do trabalhador. Esse percentual, assim, tão preciso, vem de uma Pesquisa de Orçamento Familiar feita pelo próprio Dieese em 1994. Ou seja, quase 30 anos atrás! Então, ficamos assim: a vida digna do Dieese é calculada com base em uma cesta de alimentos de 1938 e uma pesquisa de orçamento familiar de 1994.

O último valor divulgado desse “Salário-Mínimo Necessário” é de fevereiro/2021: R$ 5.375,05. Este seria o montante necessário para que uma família de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças, tivesse uma “vida digna”. Uma renda per capita de R$ 1.343,76. Abaixo disso, a vida no Brasil seria indigna.

De acordo com um trabalho do IBRE-FGV, com base nos microdados da Pnad contínua do IBGE, cerca de 70% dos brasileiros recebiam abaixo deste montante em 2019. Portanto, cerca de 70% dos brasileiros tinham uma vida indigna, segundo o Dieese. Será que é isso mesmo?

Sempre que pensamos em vida indigna, associamos com a vida nas comunidades (antigas favelas). No entanto, segundo levantamento do IBGE, apenas 8% dos domicílios brasileiros encontravam-se no que o IBGE classifica como Aglomerados Sub-Normais (favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas – segundo definição do IBGE). Mesmo que esses domicílios tenham em média o dobro dos moradores dos domicílios normais, estaríamos falando de 16% da população brasileira. Restariam, portanto, 54% da população que não mora em domicílios “sub-normais”, mas, mesmo assim, levaria uma “vida indigna”, segundo o Dieese.

Os moradores de domicílios “sub-normais” têm claramente uma vida não digna, segundo os padrões comumente aceitos. E o restante? O que caracterizaria a “não dignidade”?

Podemos elencar alguns pontos:

  • Pegar ônibus/trem lotado, duas horas para ir, duas horas para voltar do trabalho;
  • Esperar anos por uma vaga para fazer cirurgia no SUS;
  • Colocar os filhos em uma escola onde é certeza que sairão sem saber o mínimo necessário de português e matemática para enfrentar um mercado de trabalho extremamente competitivo;
  • Jogar o esgoto na rua ou diretamente no rio (segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 47% da população brasileira não tinha tratamento de esgoto em 2018; ou seja, muito mais do que os 16% que supostamente moram em domicílios “sub-normais”).

Note que todos esses pontos ou são “de graça”, ou são oferecidos pelo Estado ou seu preposto em troca de uma tarifa. Saúde e educação são “deveres do Estado e direitos do Cidadão”, dizem. E esgoto e ônibus/trem só tem quando o Estado constrói (ou deixa construir) a rede de coleta ou a rede de transporte.

Portanto, a tal “vida digna” não depende só da renda da pessoa. Depende de que o Estado forneça aquilo que prometeu fornecer. Afinal, o Estado brasileiro arrecada 33% do PIB em impostos, a grandessíssima parte, direta ou indiretamente, daqueles que não tem uma “vida digna”.

Os R$ 1.343,76 do Dieese devem ser gastos com saúde (convênio) e educação (escola particular) para garantir a “vida digna” do cidadão. Obviamente não é possível. Sem contar que nem que a pessoa fosse milionária conseguiria construir uma rede de coleta de esgoto em casa ou colocar um trilho de trem. Este papel do Estado é insubstituível.

Por outro lado…

Existem hoje, no Brasil, cerca de 228 milhões de linhas de telefone celular. Ou seja, mais do que uma para cada habitante. Ok, há pessoas com mais de uma linha. Mas, vamos combinar que grande parte dos brasileiros, mesmo aqueles que vivem em domicílios “sub-normais”, dispõe de um celular. Difícil defender que celular faça parte da cesta da dignidade humana.

Você entra em qualquer domicílio “sub-normal” e vai encontrar uma TV. Segundo dados de 2018, somente 2,8% dos domicílios brasileiros não contavam com pelo menos uma TV. Uma penetração muito maior do que a coleta de esgoto, por exemplo.

O que isto significa?

Significa que uma parte relevante da “vida digna” depende não do salário, mas de serviços prestados pelo Estado. Aqueles elementos da “vida digna” que dependem da iniciativa privada, bem ou mal, chegam para a maioria dos brasileiros, mesmo considerando a renda atual média do brasileiro.

Vejamos novamente a definição de salário-mínimo de acordo com a Constituição:

Art 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

….

IV –  salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educaçãosaúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Note que destaquei os itens “educação” e “saúde” como necessidades que devem ser bancadas pelo salário-mínimo. Há aqui uma contradição em termos: nos artigos 196 e 208 da mesma Constituição lê-se o seguinte:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 208.  O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

      I –  educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Portanto, se o Estado deve ser o garantidor último da educação e da saúde, não haveria por que os incluir como gastos a serem cobertos pelo salário-mínimo. Até parece que o legislador anteviu o fiasco do Estado como provedor de serviços sociais…

Poderíamos testar dois modelos alternativos, de modo a tentar aumentar a dignidade do brasileiro:

  1. Aumentar a carga tributária para custear melhores serviços sociais ou
  2. Diminuir a carga tributária, aumentando a renda disponível para a população, e deixar que a iniciativa privada forneça serviços sociais

A primeira alternativa conta com casos de sucesso e fracasso. Entre os casos de sucesso sempre mencionados estão os países escandinavos: com uma carga tributária próxima de 45% do PIB, esses países são modelos de bem-estar social. Difícil dizer que seus habitantes não levam uma “vida digna”.

Por outro lado, os países socialistas são, em geral, exemplo do fracasso da centralização estatal no fornecimento de serviços sociais. Os fãs de Cuba não concordarão, e dirão que sua população vive uma “vida digna”. Recomendo que assistam o documentário da Netflix, Cuba e o cameraman, do cinegrafista Jon Alpert, que se tornou amigo pessoal de Fidel Castro. Tudo está lá, de modo que cada um poderá tirar suas próprias conclusões.

O segundo modelo tem menos fãs no Brasil, porque, em geral, somos viciados em Estado. Um simples estudo de viabilidade de terceirização de algumas atividades de postos de saúde se transformou no escândalo da “privatização do SUS”, com direito a comentários furibundos de vários formadores de opinião. De qualquer modo, temos exemplos de países com menor carga tributária onde a população tem, em geral, vida mais “digna” que a do brasileiro. Estados Unidos é um exemplo, onde a carga tributária de 24% do PIB não impede a “vida digna” de seus cidadãos.

Note que há um ponto em comum entre os países escandinavos e os EUA, apesar da grande diferença de carga tributária: trata-se de países ricos. E ricos aqui, ao contrário da tal “vida digna”, é um conceito muito concreto: alta renda per/capita. Será, então, que o que determina a “vida digna” da população é a riqueza do país e não o quanto o Estado recolhe dos cidadãos para lhes dar uma “vida digna”? Vejamos.

Rodei duas regressões utilizando o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano como proxy da “vida digna” dos cidadãos. Este índice é formado por três componentes: 1) renda/capita (riqueza), 2) número de anos em que as crianças ficam na escola (educação) e 3) expectativa de vida ao nascer (saúde). Como a renda/capita é um dos componentes do IDH, é natural que encontremos uma correlação positiva e bem significativa entre IDH e renda/capita, como podemos ver no gráfico abaixo:

Este gráfico nos mostra que, para cada US$1.000 de aumento da renda/capita, o IDH aumenta em 0,048. Guarde esta informação.

Como há esses dois outros componentes do IDH (educação e saúde), haverá diferenças devidas a políticas públicas nessas áreas. A questão é saber se a carga tributária tem algo a ver com esses ganhos em educação e saúde. Em outras palavras: se conseguirmos achar uma correlação entre a carga tributária e o IDH ex-renda/capita (o IDH considerando apenas os dois outros componentes), podemos dizer que vale a pena aumentar a carga tributária para aumentar o IDH. É o exercício que faço no gráfico abaixo:

Neste gráfico, correlaciono a diferença entre o IDH real e o IDH hipotético se fosse apenas função da renda/capita de cada país, que calculo usando a equação da regressão do gráfico anterior. Apesar de a correlação ser baixa, o coeficiente tem significância estatística a menos de 1% (p-value = 0,00014%), o que significa que, de fato, aumentando a carga tributária, temos uma tendência de melhora do IDH além daquele dado simplesmente pela renda/capita. Esta melhora é de 0,0015 a mais no IDH dado pela renda/capita para cada ponto percentual adicional na carga tributária.

Mas, não vamos perder a perspectiva. O gráfico anterior havia mostrado que, para cada US$1.000 de aumento na renda/capita, há um aumento do IDH de 0,048. E, no segundo gráfico, observamos um aumento adicional de 0,0015 ao IDH para cada ponto percentual de aumento na carga tributária.

Podemos observar, entretanto, que o aumento da renda/capita é muito mais importante para o aumento do IDH do que o aumento da carga tributária. Cerca de 30 vezes (0,048/0,0015) mais importante. Pode-se melhorar um pouquinho a dignidade do cidadão aumentando a carga tributária e oferecendo serviços, mas aumenta-se muito mais se conseguirmos elevar a renda/capita. O IDH sobe de escada com a carga tributária e de elevador com a renda/capita.

E nem vou aqui entrar no mérito se o aumento da carga tributária atrapalha ou não o crescimento da renda/capita. Vou dar de barato que não atrapalha. Mesmo assim, muito mais esforço se deveria dispender no aumento da renda/capita do país do que no estabelecimento de um Estado de bem-estar social com base em uma alta carga tributária. Os ganhos para o IDH seriam muito maiores. Em outras palavras: a vida do brasileiro seria muito mais “digna” se nos dedicássemos mais a enriquecer do que em montar uma rede de proteção social sem dinheiro suficiente. Mesmo porque, este modelo não parece ter dado lá muito certo.