A minha tese para o ocaso da democracia brasileira

Hoje o Estadão traz uma extensa reportagem sobre regimes democráticos que descambaram para o autoritarismo. Tem um bom histórico do que ocorreu na Venezuela, vale a pena ler.

Mas vou aqui destacar a entrevista do cientista político Yascha Mounk, autor de “O Povo Contra a Democracia”. Destaco o trecho abaixo, em que o alemão atribui à incapacidade das democracias liberais de distribuir renda a causa das aventuras populistas. Claro que Bolsonaro aparece como a ilustração perfeita da tese.

É uma pena que a realidade simplesmente não converse com a tese.

Tivemos, no Brasil, 6 governos ditos “democráticos”. Durante esses governos, a distribuição de renda melhorou, não piorou. Segundo a propaganda petista, inclusive, nunca na história do Brasil os pobres foram tão incluídos, de várias formas e maneiras.

Então, de repente, esses esquecidos pelo sistema capitalista liberal se revoltaram e votaram em Bolsonaro, mesmo tendo sido incluídos pelos governos petistas. Uma contradição em termos.

Eu tenho uma outra tese, mesmo não sendo um aclamado cientista político alemão: o povo se revolta quando as elites do país são coniventes com a roubalheira e as ditas instituições democráticas servem para manter na rua pessoas que deveriam estar atrás das grades. O povo se revolta contra a injustiça, mas não a econômica. O povo se revolta contra a injustiça moral.

Isso explica porque em lugares como EUA, Inglaterra e outros países onde a justiça funciona e a lei é realmente igual para todos, a democracia liberal continua em pé, não caindo refém de aventureiros populistas. Ou, pelo menos, não de maneira definitiva, como a derrota de Trump mostrou nos EUA.

A miséria é, sem dúvida, uma chaga. Deveríamos todos trabalhar para diminuir este problema em nosso país. Mas as pessoas não se revoltam porque falta pão. As pessoas se revoltam quando constatam que ser honesto é coisa de otário. E, quando isso acontece, escolhem o primeiro aventureiro que afirma que vai acabar com essa pouca vergonha. Foi o que aconteceu no Brasil. Essa é minha tese. Mas não sou cientista político alemão. Então, posso estar enganado.

Uma ditadura ao gosto do freguês

Lula deu uma entrevista estupefaciente ao jornal chinês Guancha.

Não leio chinês, por óbvio, então tasquei um Google Translator. A entrevista é longa e repleta das mistificações próprias do demiurgo de Garanhuns. Vou destacar apenas três trechos, somente corrigindo a gramática em algumas passagens. Se alguém souber chinês a ponto de ler no original, poderá eventualmente corrigir algumas imprecisões. Mas o sentido, vocês verão, é absolutamente claro. Faço comentários às respostas de Lula ao longo da entrevista.

A primeira pergunta do entrevistador refere-se à sua prisão:

– É uma história incrível e perturbadora. O que aconteceu com o judiciário em seu país? Na sua opinião, seu caso sofreu interferência de países estrangeiros?

– Lula: O Departamento de Justiça dos EUA orientou os procuradores dos EUA a participar do processo contra mim. Eles vieram ao Brasil para se reunir com o Ministério Público brasileiro, e os juízes e promotores foram aos EUA para discutir minha condenação. Gravamos um depoimento que mostrou promotores dos EUA comemorando minha prisão. A única explicação que encontro é que o Brasil está se tornando um importante player internacional.

Essa acusação aos EUA não é nova. Tudo sempre é interferência duzamericano. O que me chama a atenção é que a Lava-Jato começa em 2014, ainda no governo Obama. Ou seja, Lula acusa o ministério da Justiça de Obama (e, depois, de Trump) pela sua prisão. Como alguém quer ser presidente da República fazendo esse tipo de acusação a um país dito amigo? Qual será a sua relação com os EUA durante o seu governo? É o mesmo que querer aliados no Congresso depois de chamar os congressistas de golpistas. Criticamos Bolsonaro por ser ofensivo em relação a um grande parceiro comercial como a China. Onde estão as críticas a Lula por fazer acusações tão sérias aos EUA?

A entrevista continua:

– Quando a globalização começou nos anos 1990 e início dos anos 2000, todos esperávamos que se seguíssemos uma prescrição específica de desenvolvimento, todos os países em desenvolvimento se tornariam países desenvolvidos. Mas, décadas depois, é claro que a China conseguiu muito mais. A maioria dos outros países em desenvolvimento e a maioria dos países do BRIC, incluindo o Brasil, estagnaram e não conseguiram progredir. Então, o que há de errado com os países em desenvolvimento? Por que só existe uma China? Como podemos mudar isso?

– Lula: […] Mas por que a China pode fazer isso? Porque a China tem um partido político. A China foi o produto de uma revolução liderada pelo presidente Mao em 1949, e seu partido político tem o poder e um governo forte que o povo respeita quando toma decisões. Isso é algo que não temos no Brasil, e tivemos o impeachment da nossa presidente, Dilma Rousseff, por uma mentira. Indiscutivelmente, a elite financeira do nosso país muitas vezes se intromete na política, e precisamos enfrentá-los para mostrar-lhes o importante papel que o governo deve desempenhar. Muitas das políticas sociais que o povo precisa só podem ser alcançadas quando o governo é forte, e somente quando o governo tem o comando. Foi lamentável que o papel dos governos tenha se enfraquecido nos países latino-americanos e do terceiro mundo, com cada vez mais empresas estatais privatizadas e cada vez mais funções governamentais privatizadas. A China, por exemplo, é capaz de combater o coronavírus tão rapidamente porque tem um partido político forte e um governo forte porque tem controle e comando. O Brasil não tem isso, assim como outros países. […] Portanto, acho que a China deu um exemplo de desenvolvimento para o mundo inteiro e é um modelo para o mundo inteiro. Espero que outros países possam aprender com a China, para que todos possamos ser ricos, fortes, distribuindo mais riqueza, mas também ter um mundo mais humano.

Bem, Lula elogia nada mais, nada menos, que a ditadura mais bem sucedida do planeta. Alô, FHC. Alô, Eugênio Bucci. Alô, intelectuais democratas do Brasil. Este é Lula, aquele que vai salvar a democracia brasileira. Um partido forte. Um estado forte. Uma ditadura do bem. Precisa dizer mais alguma coisa?

Continuando:

– Muita coisa aconteceu na América Latina, Colômbia e Peru, e agora há algo incomum no Brasil. A situação está mudando, como você acha que você, seu partido e as “forças do sul” devem influenciar essas mudanças?

– Lula: Venho dizendo que a mídia teve um grande papel na América Latina, especialmente no Brasil, nos golpes no Brasil, na derrota eleitoral da argentina Cristina Kirchner há quatro anos, e na Bolívia contra Evo Morales.

A mídia! O que “a mídia” está fazendo nessa resposta? O que Lula pretende fazer com “a mídia”? Bolsonaro agride jornalistas. Lula também não gosta da mídia, mas seus métodos para controlá-la são, digamos, mais eficazes. Seria a China um exemplo aqui também?

Estão aí, em três respostas, os pendores democráticos de Lula. Ok, ele está falando a um jornal chinês, não poderia deixar de ser elogioso ao país. Mas, depois de 14 anos de governos do PT, depois do mensalão e do petrolão, não parece restar dúvidas sobre a visão de mundo de Lula e do PT a respeito das instituições democráticas. Criticar a falta de credenciais democráticas de Bolsonaro sem fazer o mesmo com Lula é escolher uma ditadura a seu gosto. Desde que seja “do bem”, vale qualquer coisa.

Democrata até a página 2

George Bush venceu as eleições americanas no ano 2000 por pouco mais de 500 votos na Flórida, o que lhe garantiu um mísero voto adicional no Colégio Eleitoral. Depois de um mês de batalha na justiça pela recontagem e uma decisão contrária às suas pretensões na Suprema Corte por 5 a 4, Al Gore reconheceu a vitória de Bush. A palavra “fraude” não foi mencionada pelo candidato derrotado.

Mário Vargas Llosa, que, como já vimos, virou cabo eleitoral de Keiko Fujimori, afirma, desde a “distante Madrid”, como ele mesmo diz, que houve fraude nas eleições peruanas.

Notícia no mesmo jornal nos informa que a primeira instância da justiça eleitoral peruana e observadores internacionais enviados para supervisionar o pleito não encontraram indícios de fraude.

Vargas Llosa insiste que a justiça não fez direito o seu trabalho e que os observadores aceitaram os resultados “por diplomacia”.

Em qualquer jogo, a última autoridade é o juiz. Podemos não concordar com a decisão, podemos xingar a mãe do juiz, mas é ele que manda. Caso contrário, instala-se o caos. Imagine se, a cada lance, os jogadores precisassem discutir entre si o que aconteceu.

Quando do impeachment de Dilma, o PT insistiu na tese do “golpe”. O impeachment seria um golpe porque não haveria crime de responsabilidade, segundo os petistas. No entanto, quem decide se houve ou não crime é o juiz. E, neste caso, os juízes eram os 513 deputados. Pode-se não concordar com a decisão, mas essa é a regra do jogo democrático. Chamar a decisão dos deputados de “golpe” é anti-democrático.

Claro que estamos falando de democracias minimamente funcionais, onde os poderes são independentes entre si. Na Venezuela, por exemplo, Legislativo e Judiciário são apêndices do Executivo, e observadores internacionais não são bem-vindos durante as eleições. Neste caso, a fraude eleitoral é estrutural.

Isso é uma coisa. Outra coisa é contestar o veredito dos juízes em uma democracia. Trump fez exatamente isso: não parou de falar em fraude mesmo depois de várias instâncias da justiça terem afirmado que as eleições haviam sido limpas. Uma postura claramente anti-democrática, digna de república bananeira. Aliás, a invasão do Capitólio foi somente a tradução em imagens dessa postura.

Aqui no Brasil, Bolsonaro está convicto de que as eleições de 2014 e 2018 foram fraudadas. É só uma convicção, não há provas. Mas isso não o impede de investir contra o juiz da partida, a exemplo do que fizeram os petistas por ocasião do impeachment.

Claro que sempre se pode dizer que todo o “sistema” está viciado, que vivemos em uma democracia de fachada, cujo único objetivo é proteger o establishment. Esse era o discurso do PT, de Trump e, agora, de Bolsonaro. Pode até ser. O problema é a alternativa a esse sistema falho. Se não for isso, é o autoritarismo do “bem”. Que só é bom para quem está do lado do “bem”.

As credenciais democráticas de Mário Vargas Llosa estão acima de qualquer suspeita. Ou, pelo menos, estavam. Duvidando da palavra dos juízes eleitorais e de observadores internacionais, Vargas Llosa demonstra que ele até pode ter saído da América Latina, mas a América Latina não saiu dele.

PS.: a votação no Peru se dá em cédulas de papel. Isso não impediu as denúncias de fraude, mesmo depois de os juízes eleitorais afirmarem que não houve fraude. O voto impresso é só mais um espantalho útil para quem não tem convicções democráticas.

FHC vs. Vargas Llosa

O trecho destacado abaixo é o início de um artigo publicado hoje no Estadão.

O autor diz que a imprensa estrangeira atribui atrocidades a Bolsonaro, além de ter Lula como o seu queridinho e, se pudesse votar, Lula já estaria eleito. Mas, por outro lado, afirma que o povo brasileiro sabe o que Lula fez no verão passado.

Quem é o autor? Será um bolsonarista de quatro costados, como Augusto Nunes ou JR Guzzo? Ou mesmo alguém mais crítico a Bolsonaro, mas que também não lambe a bota de Lula, como William Waack?

Nada disso. O autor é ninguém menos do que Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura e ex-candidato a presidência da República contra Alberto Fujimori. Vargas Llosa pode ser considerado o FHC do Peru: um intelectual que enveredou pela política, com ideias modernas sobre economia.

Bem, pelo menos era isso que eu pensava. Vargas Llosa está fazendo campanha por Keiko Fujimori, filha de Alberto, contra o professor Pedro Castillo nas eleições de hoje no Peru. Para fazer um paralelo: imagine que Bolsonaro, dois anos depois de eleito, tivesse dissolvido o Congresso e o STF e tivesse governado por mais 8 anos de maneira ditatorial, até renunciar ao cargo. Vinte anos depois, seu filho Eduardo se candidata e chega ao segundo turno contra Guilherme Boulos. Nesse contexto, quem FHC iria apoiar?

Enquanto FHC assina notas conjuntas com Lula (falarei sobre essa nota conjunta em outro post), Vargas Llosa apoia Fujimori. Cada país tem o FHC que merece.

Errando o alvo por muito

Estou longe de ser um especialista em marketing eleitoral. O que vou escrever a seguir pode estar completamente errado, porque me faltam conhecimentos. Mas é o que intuo sendo um observador da cena política nacional.

Tendo dito tudo isso, vamos lá: o posicionamento mercadológico de Doria é um desastre.

Diante da “ameaça” de Bolsonaro usar o exército para acabar com o toque de recolher, Doria faz um arrazoado “pela democracia”! Caraca! Como pode errar o alvo assim, tão longe???

É óbvio – não, é muito óbvio – que Bolsonaro não tem a mínima condição de fazer o que ele está dizendo que vai fazer. O quê? Ele vai jogar o exército contra as PMs? Provocar uma guerra civil? O Bolsonaro? Espera aí que eu vou gargalhar ali no canto e já volto.

É claro que a agenda de Bolsonaro é outra: ele está procurando cevar a narrativa de que o buraco econômico em que nos metemos é culpa dos governadores, não dele. Afirmar que “vai usar o exército” é só uma forma de dizer que vai “tomar providências” e, como bônus, agradar a sua grei mais fanática, que realmente acredita que o mito tem o poder de “acabar com essa bagunça”.

Responder que Bolsonaro tem “devoção pelo autoritarismo e alergia pela democracia” pode fazer sucesso nos círculos bem-pensantes da imprensa e da intelectualidade tupiniquim. Mas, para o povão, o que importa é ter meios de colocar comida na mesa. Democracia é um luxo que vem depois. Onde Doria quer chegar com essa mensagem? Talvez nos 5% que ele já tem em intenções de voto. Com esse tipo de discurso insosso, vai ser difícil sair daí.

Como ele poderia ter respondido? Na minha humilde opinião, colando na testa do presidente a palavra “incompetente”. Autoritário é um adjetivo abstrato, poucos sabem e muitos menos dão importância a isso. Agora, incompetente todo mundo sabe o que é. A resposta poderia ser algo na linha:

– Esse Bolsonaro é um fanfarrão. Está tentando esconder a sua incompetência para lidar com a pandemia e o desemprego por traz de uma ameaça ridícula”.

Ou, melhor ainda, alavancando no seu grande ativo, a Coronavac:

– Ao invés de ficar fazendo ameaças ridículas, o presidente poderia se esforçar um pouco mais para acelerar a vacinação. Se dependesse da incompetência do Bolsonaro, teríamos somente 20% das vacinas que temos hoje.

E não pensem que é só João Doria que se perde nesse lenga-lenga de democracia. Todos os chamados “candidatáveis” de centro cometem o mesmo erro. Vê se Lula gasta sua saliva falando de ameaça à democracia. No seu discurso no sindicato, a primeira coisa que fez foi desancar a incompetência do governo Bolsonaro no trato da pandemia e da economia. Esse entende do riscado.

O chamado “centro” precisa urgentemente de um João Santana que ajuste o discurso. Ops, parece que já foi contratado.

A democracia dos EUA sobreviverá a Donald Trump

O que estamos vendo acontecer no Congresso norte-americano é inaceitável. Donald Trump passou de qualquer limite do razoável em seu direito de contestar os resultados eleitorais. Trump perdeu em todas as instâncias políticas e jurídicas possíveis e imagináveis sobre suas alegações de fraude eleitoral. As instituições americanas falaram. Trump e seus seguidores mais fanáticos fizeram questão de não ouvir. Isso é mais do que uma vergonha. Isso é um desafio à mais antiga e estável democracia do planeta.

A democracia americana passou, nos últimos 230 anos, por 44 transmissões de poder, das quais 24 entre presidentes de partidos diferentes. Todas elas de maneira pacífica, servindo de farol para o mundo livre. Esta seria a 45a transmissão de poder, e a 25a entre presidentes de partidos diferentes. Trump quebrou essa tradição, em nome de sabe-se lá o que.

Donald Trump dirá que não tem nada a ver com a invasão do Capitólio. Claro, ele não deu a ordem direta. Mas fez comício colocando gasolina na fogueira. Esperava o quê?

Alguns dirão que, se não for assim, não se mudará o tal “sistema”. Cada um tem uma ideia de um “mundo melhor”. Sabemos como terminam as experiências de imposição de um “mundo melhor” por meio da força.

Os EUA são a prova histórica e palpável de que a democracia representativa, com todos os seus defeitos evidentes, é o melhor sistema para conciliar visões diferentes do que vem a ser o tal “mundo melhor”. Ou, como dizia Churchill, o pior sistema, com exceção de todos os outros.

A democracia dos EUA sobreviverá a Donald Trump.

A importância dos partidos políticos

Um total de 1.216 candidatos concorreram nas eleições presidenciais norte-americanas: Joe Biden, Donald Trump e mais 1.214 candidatos independentes.

Surpreso com essa informação? Pois é. Quem está acostumado a ver apenas dois candidatos disputarem as eleições nos EUA, não imagina a quantidade de maluco que acha que pode ser presidente fora das máquinas partidárias dos partidos Democrata e Republicano.

Quem quer concorrer de verdade à cadeira no Salão Oval, submete-se ao escrutínio interno de um desses dois partidos, para, assim, poder contar com a máquina partidária trabalhando a seu favor. Uma campanha eleitoral do tamanho da americana envolve centenas de milhões de dólares, sem os quais não dá nem para começar a pensar em concorrer.

Pensei nisso quando vi as articulações entre Huck e Moro com vistas às eleições de 2022. Nenhum dos dois pertence a qualquer partido. E, mesmo assim, não são vistos como um dos 1.214 malucos que querem chegar à Casa Branca de forma independente. Pelo contrário: suas pretensões são levadas à sério pelos políticos e pela mídia.

Bolsonaro chegou ao poder em um partido de aluguel, ao qual não está mais afiliado. Nunca teve vida partidária, sempre foi um lobo solitário. A operação Lava-Jato desnudou um esquema de corrupção de tal envergadura, entranhada de tal forma nas máquinas partidárias e no financiamento eleitoral, que a ideia mesma de partido político tornou-se sinônimo de falcatrua. Bolsonaro surfou essa onda.

A questão de fundo, no entanto, é a seguinte: existe democracia sem partidos políticos fortes? Observando-se a experiência das maiores e mais estáveis democracias ocidentais, a resposta é um rotundo não. Ou, por outra: não temos experiência de democracias estáveis sem partidos políticos fortes.

O que é um partido? Um partido é um agrupamento de pessoas com ideias semelhantes e que trabalham de forma mais ou menos unida para chegar ao poder e implementar essas ideias. Um sistema de poder sem partidos fica refém de personalismos: o líder carismático, cuja palavra se torna lei.

No Brasil, temos dezenas de partidos políticos, assim como nos EUA, onde existem 52 partidos além dos democratas e republicanos. Apesar dessa miríade de partidos, somente alguns poucos realmente podem ter a pretensão de chegar ao poder máximo da República.

Um partido político não serve apenas para eleger o presidente. Há um sem número de cargos executivos e legislativos que formam a teia de sustentação de uma candidatura presidencial. Quer dizer, além do dinheiro, estamos falando também de apoio político para a campanha.

O fenômeno Bolsonaro foi único, em um momento particular da história brasileira. Pode até ser reeleito em 2022, com base em seus atributos pessoais, mas dificilmente fará o seu sucessor se não montar uma máquina partidária digna do nome. As dificuldades em montar o Aliança não autorizam muito otimismo nesse campo.

Achar que a democracia brasileira será uma exceção à regra das democracias ocidentais é uma ilusão. Aqui os partidos políticos continuarão a formar a infraestrutura do poder político. Bolsonaro já reconheceu esse fato implicitamente, ao liberar espaços para o Centrão em seu governo.

Huck e Moro, portanto, antes de pretenderem alguma coisa, precisarão encontrar partidos políticos que lhes deem base para a sua pretensão. Como disse acima, o fenômeno Bolsonaro foi único em um momento muito particular da história brasileira. Muito difícil se repetir, a não ser que outro fenômeno do porte da Lava-Jato ocorra novamente.

Aceitando a derrota

Os apoiadores de Donald Trump têm lembrado a injunção que Al Gore fez na Suprema Corte para a recontagem dos votos na Flórida, responsável pela apertadíssima margem da vitória de George Bush no ano 2000. Trump estaria apenas exercendo o seu direito de espernear, como Gore fez em 2000 e Aécio fez em 2014, quando também pediu auditoria dos votos.

Não concordo.

Trump está fazendo algo completamente diferente. O presidente dos EUA está colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral inteiro, ao usar a palavra “fraude”. Gore e Aécio pediram recontagem e auditoria em pleitos muito apertados. A diferença na Flórida foi de apenas 537 votos! Trump vem dizendo que o próprio processo eleitoral estaria viciado criminosamente pelo partido adversário. E vem dizendo isso mesmo antes do pleito começar.

Ir em busca de direitos é prerrogativa de qualquer cidadão que se sinta prejudicado. Isso é uma coisa. Outra coisa é envenenar o ambiente democrático, colocando em dúvida a lisura do próprio processo.

Al Gore aceitou a determinação da Suprema Corte pela não recontagem dos votos. Não saiu da disputa dizendo que havia sido vítima de uma fraude. Vamos ver se Trump acusará a Suprema Corte de conivência com uma fraude eleitoral.

O PT não é um partido democrático

Poucos ficaram sabendo, mas o PT lançou um programa de governo . Chama-se nada menos que “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”. A pretensão não é modesta, como se vê.

Destaco abaixo um trecho do preâmbulo que, para mim, deslegitima o PT como uma força a mais no jogo democrático.

O PT não é um partido democrático. Pelo menos, não no sentido em que entendemos esse regime nas democracias ocidentais. Lembremos, por exemplo, que o nome da Alemanha Oriental era República Democrática Alemã, mesmo sendo uma ditadura feroz.

O trecho diz o seguinte: “A reconstrução do Brasil exige fortalecer a democracia, traumatizada pelos processos do golpe de 2016 e da cassação da candidatura Lula em 2018,…”Em qualquer democracia, um processo de impeachment faz parte do jogo. Richard Nixon seria impichado se não renunciasse, e Bill Clinton escapou por um triz de ser impichado. Aqui no Brasil, Fernando Collor foi impichado. A nenhum deles lhes ocorreu chamar o processo de golpe. Ao desqualificar como golpista um processo conduzido, do início ao fim, dentro das regras estabelecidas no jogo democrático, o PT coloca-se fora do jogo. Simples assim.

O mesmo ocorre com a dita “cassação” do direito de Lula se candidatar em 2018. Lula estava PRESO. Havia sido condenado em duas instâncias da justiça (não somente por Sergio Moro) por corrupção passiva e outros crimes. Pode-se discutir a sentença, a suspeição do juiz, o que for. O que não se pode é chamar isso de “cassação”. Isto está fora do jogo democrático. O PT exclui-se do jogo ao desqualificar um instituto absolutamente de acordo com o que vai na Constituição.

Outro dia, teve início um movimento que perguntava se já não estava na hora de “perdoar o PT”. Ora, só se perdoa quem pede perdão, quem está arrependido do que fez. Este documento deixa claro que o PT não está pedindo perdão. Pelo contrário.

Em qualquer democracia avançada, como Alemanha ou Japão, se o partido no poder fosse pego em um centésimo do que foi feito na Petrobrás, seus dirigentes teriam caído no ostracismo há muito tempo, quando não estariam enjaulados. No caso do Japão, talvez até rolasse um harakiri em rede nacional. Aqui, o partido se acha no direito de dizer que é o único realmente democrático. O documento em si pouco importa. Trata-se de um amontoado de baboseiras escritas como se o PT nunca tivesse sido governo, como se o desastre Dilma nunca tivesse existido. Até combater a corrupção eles prometem, vejam só! Bater no conteúdo de um documento que parece ter saído de debates de centros acadêmicos é perda de tempo.

O PT, hoje, é um morto-vivo que vive à sombra de dois políticos: Lula e Bolsonaro. Lula é o salvador, enquanto Bolsonaro é a encarnação do mal. Deus e o diabo na terra do sol, em uma dança que somente interessa aos dois. O PT, ao lançar este documento, dá sobrevida a Bolsonaro, lembra a todos porque, afinal, Bolsonaro está no poder.

Ciro Gomes hoje, em entrevista ao Valor Econômico, resumiu o ponto: “não é mais possível disfarçar que o bolsonarismo boçal é consequência do colapso moral e econômico da governança do PT.” Óbvio que Ciro tem interesse em herdar o espólio do PT, mas seu diagnóstico não deixa de ser verdadeiro.

Bolsonaro tem uma retórica muitas vezes incendiária, que beira o golpismo. Mas, pelo menos por enquanto, está a anos-luz de distância do que o PT fez para solapar a democracia, enquanto fazia um discurso “fofo”. Não, o PT não faz parte do jogo democrático. Nunca fez. E não vai ser diferente agora.