O país onde as regras se desmancham no ar

Estamos muito pessimistas. Esta é a conclusão de um economista da IIF, uma instituição internacional que reúne bancos de todos os países, e da qual a Febraban faz parte.

Segundo o economista, o “novo teto” proposto pelo governo ainda segura bem as despesas e, em 2022, ainda estaremos gastando menos que em 2019. Parece a história do sujeito que caiu do 10o andar de um prédio e, ao passar pelo 5o andar, um morador pergunta se está tudo bem, ao que o homem responde: “tem um vento me incomodando, mas até aqui, tudo bem”. Acho que, da mesma forma, o economista não entendeu a natureza do problema criado pela mudança da regra do teto.

A regra do teto de gastos foi inscrita na Constituição brasileira. Essa foi uma novidade potente, que convenceu os agentes econômicos de que aquilo era para valer. A regra da geração de superávits primários, que era a regra anterior, foi cumprida durante 15 anos mesmo não estando escrita em lugar algum. Mas foi facilmente abandonada quando as receitas deixaram de crescer na mesma velocidade que as despesas. Agora não! Com a regra do teto, tínhamos algo oficial, que obrigava os dirigentes políticos a andarem na linha.

O mercado caiu na ilusão de que as leis modificam o comportamento dos agentes políticos. Modificam sim, mas até certo ponto. Em determinado momento, no limite, muda-se a lei. Temos um exemplo dramático na Argentina, quando se estabeleceu a paridade de 1 para 1 entre o Austral e o Dólar. Aquela paridade sobreviveria se houvesse disciplina fiscal. Entre a indisciplina e a paridade, escolheu-se a indisciplina. O resto é história.

O teto de gastos não sobreviveu à indisciplina fiscal. E não adianta dizer, como o faz o economista do IIF, que, por enquanto, tudo bem. Sabemos (o mercado sabe) que, entre a indisciplina e uma moeda estável, a escolha sempre será pela indisciplina. Mesmo que a regra esteja inscrita na Constituição. A coisa poderia funcionar se, daqui por diante, todos os brasileiros se dessem as mãos, e prometessem não pegar nem mais uma latinha de cerveja na geladeira. “Ninguém larga a mão de ninguém” não costuma ser uma regra crível.

O grande mal dessa mudança atabalhoada na regra do teto foi demonstrar que lei, no Brasil, não passa de um arranjo provisório. O que vale é a “boa intenção” do governante, do Congresso e do STF de plantão. Como as necessidades sociais em um país pobre como o Brasil serão sempre muito maiores do que a capacidade de arrecadação, a dívida pública sempre será pressionada. A única forma de conter a dívida, nesse contexto, é a inflação, como vimos neste ano: a dívida só está abaixo de 90% do PIB porque a inflação fez crescer o PIB nominal. Quem perdeu foram os detentores da dívida, como bem sabe qualquer investidor em renda fixa.

É por isso que, para se protegerem de “truques” desse tipo, os detentores da dívida estão pedindo taxas de juros muito mais altas. O problema não é a dívida hoje ou os gastos do ano que vem, como sugere o economista do IIF. O problema é que ficou claro que as regras se desmancham no ar, ao sabor das necessidades do momento. O próximo presidente terá muita dificuldade em reconquistar a confiança dos credores da dívida pública.

Com um pé no acelerador e o outro no freio

“Não podemos tirar 10 no fiscal e zero no social”. Com essas palavras, o ministro da economia enterrou a disciplina fiscal.

Imagine por um momento que o comunicado do Copom de ontem trouxesse uma frase desse tipo: “Não podemos tirar 10 na inflação e zero no social”. Já imaginou?

Estamos em um carro em que o governo está com um pé no acelerador e o BC está com o outro pé no freio. Quanto mais o governo acelera de um lado, mais o BC precisa apertar o freio do outro, caso contrário, o carro vai entrar acelerado na curva da inflação e capotar. O resultado é um carro instável na pista.

Se o BC tivesse a “consciência social” do nosso ministro da economia, não estaria acelerando a alta dos juros agora. No entanto, Campos Neto e seus companheiros de Copom sabem que o principal programa social é evitar a inflação, que é o imposto mais perverso, pois acaba com a renda dos mais pobres.

Ao abrir mão de “tirar 10” no fiscal, o governo forçou o BC a aumentar mais as taxas de juros, para “tirar 10” na inflação. No final, alguns milhares de empregos deixarão de ser criados por causa da desaceleração adicional da atividade econômica, causada pela subida adicional dos juros. Mas, tudo bem, o auxílio eleit… quer dizer, o auxílio emergencial será pago, dando uma ajuda para os pobres que nem sabem o quanto foram prejudicados para obter essa mesma ajuda. E, de quebra, vai sobrar um dinheirinho para reforçar as emendas parlamentares e o fundo eleitoral, que ninguém é de ferro.

O alheamento de Brasília

O filme “Procura-se um amigo para o fim do mundo” é interessante, entre outras coisas, porque mostra as diversas atitudes que as pessoas podem ter em relação ao fim da vida. Uma das mais interessantes é o completo alheamento, representado pela faxineira mexicana que faz a limpeza semanal da casa do protagonista.

Uma vez tendo conhecimento do meteoro que iria chocar-se contra a Terra, o protagonista diz para a faxineira que ela estava dispensada. Afinal, que sentido havia limpar uma casa a duas semanas do fim do mundo? Ao ouvir que estava dispensada, a faxineira muda o semblante, mostrando tristeza e decepção. Estava sendo despedida! Por que? O serviço não estava agradando? O protagonista, então, percebe que ela não estava sabendo de nada. Sua vida continuava como antes. Para não decepciona-la, ele concorda em manter o serviço. Ela sai toda contente da casa e efetivamente volta na semana seguinte, como se nada estivesse para acontecer.

Nos últimos dias, a bolsa despencou, os juros e o dólar subiram, mas as pessoas continuam nas ruas, em suas rotinas, como se nada estivesse acontecendo. Às vezes, podemos ter a impressão de que o mercado é uma espécie de ente à parte, formado somente por especuladores em busca do lucro, divorciados da realidade das pessoas. Nada mais longe da realidade. O mercado financeiro é uma espécie de pele sensível, que sente antes de todo mundo os problemas econômicos. É o dinheiro de todos nós, empresas e pessoas, buscando proteger o seu poder de compra.

O mercado antecipa os meteoros. No final do livro Big Short (não me lembro se esta cena está também no filme A Grande Aposta), um dos protagonistas observa as pessoas na rua, andando despreocupadas, como se nada estivesse para acontecer, e pensa como a vida dessas pessoas vai virar de cabeça para baixo por causa da crise do subprime. De fato, o mercado estressou em 2008, mas a grande recessão econômica ocorreu somente em 2009.

O mercado está nervoso, muito nervoso, avisando que tem um meteoro vindo em direção ao Brasil. Mas, em Brasília, os políticos continuam cuidando da faxina da casa como em um dia qualquer.

A ponta do iceberg

As manifestações de 2013 começaram com um aumento das passagens dos ônibus em São Paulo. O aumento havia sido de apenas R$0,20, e parecia um exagero protestar contra algo tão irrisório. Por isso, o mote que marcou as manifestações foi “não é pelos vinte centavos”.

Os R$0,20 foram a gota d’água que fez transbordar o balde da insatisfação popular. Insatisfação contra os péssimos serviços públicos oferecidos em troca de uma carga tributária escorchante. Insatisfação contra as corporações que tomaram conta do estado brasileiro, e dele extraem benefícios negados ao restante dos cidadãos. Insatisfação contra a corrupção em todos os níveis do governo. Enfim, os R$0,20 eram de fato muito pouco, mas o suficiente para acender uma reação épica. Com o mercado está acontecendo mais ou menos a mesma coisa. Os R$30 bilhões que o ministro Guedes pediu licença para gastar são uma gota d’água no oceano. Afinal, o que são R$30 bilhões para ajudar os pobres em um país tão rico?

Mas não é pelos R$30 bilhões, assim como não era pelos R$0,20. Esses R$30 bilhões são a gota d’água que transbordou o balde da paciência do mercado. Não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para as emendas parlamentares. Não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para os 2 meses de férias no judiciário e para mais um TRF. Não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para pagar universidades públicas para os filhos da classe média. Não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para pagar aposentadorias para pessoas que sequer completaram os 50 anos de idade. Não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para pagar pensões para filhas solteiras de militares. Não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para subsidiar empresas que têm o lobby mais forte em Brasília. Enfim, não tem dinheiro para o bolsa família, mas tem para manter essa máquina balofa e ineficiente chamada Estado brasileiro.

O mercado, ao contrário das pessoas, não sai às ruas para protestar. O seu protesto (o nosso protesto) é vender os ativos que vão ser corroídos pela inflação. No limite, quem pode vende todos os seus ativos e envia o dinheiro para países onde a moeda é respeitada pelo governo. Na prática, a moeda do país torna-se um mero papel pintado, e as pessoas só confiam na moeda estrangeira. Não chegamos lá ainda, mas estamos caminhando perseverantemente na direção do desastre. Nessa toada, é uma questão de “quando”, não uma questão de “se”.

Não é pelos R$30 bilhões. Essa é apenas a ponta do iceberg.

O dia da marmota do subdesenvolvimento

Vamos para o 3o ano com o chamado “auxílio emergencial”. O governo já poderá pedir música no Fantástico.

Só relembrando: o auxílio emergencial foi aprovado para suplementar a renda daqueles que, por força da pandemia, não podiam sair de casa para trabalhar. Hoje, com a economia praticamente toda aberta e funcionando totalmente, perde o sentido. Mas aí começam as justificativas: “o desemprego está alto!”. “A inflação está alta!”. Quer dizer, enquanto tivermos desemprego e inflação “altos”, vamos continuar pagando o tal do auxílio emergencial. Estou tentando lembrar alguma época em que o desemprego não fosse alto no Brasil. Foram raros os momentos em que tivemos desemprego abaixo de 10%. O que seria um desemprego “baixo” que dispensasse o auxílio emergencial?

Alguns poderão dizer: “ah, pra você é fácil ficar ditando regras, você está empregado e tem 5 refeições por dia! Queria ver você na situação desses necessitados!”. Pois é, os pobres (“invisíveis”, na nova nomenclatura) são sempre o escudo usado para deixar tudo como está. Afinal, quem é o desalmado que vai negar esse auxílio aos mais necessitados? São só R$ 40 bilhões em um orçamento de R$1,6 trilhões.

O problema é essa maldita regra do Teto de Gastos. Os tais R$ 40 bilhões não cabem. Precisa ser por fora. E, assim, usando os pobres como escudo, mantém-se intactos os outros R$ 1,6 trilhões de gastos federais, como se fossem gastos determinados no Monte Sinai pelo próprio Deus e não pudessem ser discutidos. O auxílio emergencial é só mais um na longa lista, construída em décadas, de “gastos sociais” do governo. Na verdade, cada real dos R$ 1,6 trilhões gastos anualmente se justificam como uma ação para minorar a desigualdade de renda no país. Afinal, saúde gratuita, educação gratuita, justiça gratuita, tudo isso custa dinheiro. O fato é que, gastando 1/3 do PIB nas 3 esferas do governo para prover serviços gratuitos para a população, ainda assim temos uma das piores distribuições de renda do mundo. Quanto mais precisaremos gastar para sermos um país mais “igualitário”?

Como o governo não cria dinheiro, os recursos para pagar o auxílio emergencial e todos os outros R$ 1,6 trilhões de gastos só podem ter duas fontes: impostos e dívidas. Hoje, o governo federal arrecada cerca de R$ 1,45 trilhões em impostos e toma R$ 150 bilhões em dívida para fechar as contas. Aliás, desde 2014 precisamos nos endividar para pagar as contas. Quem empresta o dinheiro, tem confiança de que, em algum momento do futuro, terá seu dinheiro de volta. Se a confiança diminui, cobrará mais caro para se proteger do calote. E “calote”, neste caso, significa inflação. Inflação alta e juros altos levam a crescimento baixo, o que torna mais difícil a tarefa de diminuir o desemprego. Mas nada que um novo “auxílio” não resolva. E assim, vivemos o nosso dia da marmota do subdesenvolvimento.

A estrada do desastre é longa mas, com perseverança, um dia se chega lá

A comparação da economia de um país com as finanças de uma família tem suas limitações, mas, às vezes, é muito útil para compreender o que está acontecendo.

Para uma família que vive acima do limite de seu orçamento, sem reservas e que só consegue manter o seu padrão de vida endividando-se, uma grande despesa inesperada cai como uma bomba. Pode ser um acidente de trânsito ou uma doença, que exigirá ainda mais desembolsos de um orçamento que já não consegue pagar nem as despesas correntes.

Esta é a situação do Brasil, hoje. O orçamento já apertado foi atingido, no dizer do ministro da Economia, por um meteoro: precatórios no valor de R$ 90 bilhões, a serem pagos no ano que vem.

Vamos voltar um pouco no tempo para entender o imbróglio. Em 2016, ao assumir o governo, a primeira medida que o então presidente Temer patrocinou no Congresso foi o chamado Teto de Gastos. Com a morte dos superávits primários no governo Dilma, os credores da dívida pública exigiam algum outro mecanismo para garantir que a dívida não estava em trajetória explosiva e, portanto, impagável. O Teto de Gastos foi esse mecanismo, que permitiu o controle da inflação mesmo com taxas de juros bem mais baixas do que nos governos anteriores.

Quando aprovado, o Teto permitia uma folga no orçamento para o pagamento das chamadas despesas “não obrigatórias”, ou seja, aquelas que não estão cravadas na Constituição. O grosso das despesas obrigatórias são, basicamente, o pagamento de aposentadorias e dos salários dos funcionários públicos, além dos precatórios. As não obrigatórias incluem desde investimentos em estradas, passando pelo bolsa família, até chegar nos serviços de limpeza das universidades federais, na verba para o censo e no papel para imprimir passaportes.

Como funciona o teto? Simples: as despesas do setor público no ano de 2016 são o limite de gastos do governo federal, com algumas poucas exceções, como a capitalização de empresas estatais e o Fundeb, que não entram nesse cálculo, A cada ano, esse limite é reajustado pela inflação do ano anterior. Qual o problema? As despesas obrigatórias crescem, a cada ano, acima da inflação, diminuindo o espaço para as despesas não obrigatórias.

Vamos colocar isso em números. O último valor que vi do IFI (Instituição Fiscal Independente) para o valor mínimo das despesas não obrigatórias de modo que o governo não entrasse em shutdown era de R$ 100 bilhões. Com uma folga no orçamento do ano que vem de R$ 120 bilhões, ainda sobrava uns trocos para dar uma turbinada no bolsa família e aumentar o fundo eleitoral dos partidos. Estava todo mundo feliz. Até que detectaram o meteoro dos precatórios vindo em direção a Brasília, com gastos de R$ 40 bilhões além do previsto. Parece mentira que, em um orçamento de R$ 1,6 trilhões, não se encontre espaço para esses R$ 40 bilhões adicionais. Mas é verdade. O nosso orçamento é tão amarrado, são tantos os interesses envolvidos, que a única saída parece ser não pagar esses R$ 40 bilhões. É essa a proposta do ministério da economia, ao sugerir o parcelamento e a criação de um fundo de privatizações dedicado ao pagamento dessas despesas, que ficariam fora do teto de gastos. Aliás, aparentemente, essa proposta libera até mais do que os R$ 40 bilhões, o que permitirá turbinar o bolsa família e as emendas parlamentares. A felicidade volta a Brasília.

Mas tem alguém que não está nada feliz com essa história: o credor da dívida. As taxas dos títulos públicos de vencimentos mais longos já ultrapassaram 10% e o câmbio já encosta nos R$ 5,50, apesar de um Banco Central que promete subir a Selic sem dó. O motivo é simples: essa manobra está sendo vista como um drible no teto de gastos. Parafraseando o famoso “não é pelos R$ 0,20”, o mercado está dizendo “não é pelos precatórios”, mas pela sinalização de que, quando a coisa aperta, Brasília vai tentar encontrar uma forma criativa de manter tudo como está, sem sacrificar nenhum de seus interesses. E o pior: desta vez, quem está patrocinando o furo do teto é, em tese, o guardião da cofre. Quando nem o ministro da economia defende a regra fiscal vigente, o credor fica pendurado na brocha.

O Brasil é um país com imensas necessidades. Quanto o governo deveria gastar para atendê-las, se R$ 1,6 trilhão não é suficiente? R$ 2 trilhões? R$ 3 trilhões? Podemos eliminar logo de uma vez essa regra do teto e satisfazer essas necessidades. Claro que os credores da dívida cobrariam um preço por isso. Teríamos juros altos, câmbio desvalorizado e, no final da linha, inflação. Basta dar uma olhada na Venezuela para entender onde essa estrada termina.

Alguns dirão que estou exagerando. Ninguém está propondo o fim da regra do teto, é só uma adequação de uma despesa inesperada. Sim, essa é a desculpa da família que vive no limite da responsabilidade. O desabamento de edifícios normalmente não ocorre por causa de terremotos. Os edifícios desabam porque, durante anos, se negligenciou a sua manutenção. A estrada que leva ao desastre é longa, mas, com perseverança, um dia se chega lá.

A natureza dos precatórios e o teto de gastos

Para quem vive com o orçamento apertado, qualquer garoa causa enchente. Esta é a situação do governo, vivendo dentro do espartilho do teto de gastos e precisando pagar todos os desejos da Porta da Esperança.

A última garoa foi a surpresa com a previsão do pagamento de precatórios para 2022, cerca de R$ 30 bilhões adicionais ao que se esperava. O espaço no teto de gastos aberto pela inflação deste ano, que seria usado para anabolizar o Bolsa Família, foi comido por essa surpresa. O que fazer? A criatividade foi chamada em socorro das boas intenções do governo: uma parte dos precatórios será parcelada em 10 suaves prestações e outra parte será paga por fora do teto de gastos, usando os recursos de privatizações e dividendos pagos por estatais.

O que pensar? Vamos por partes.

Houve uma primeira discussão sobre a natureza dos precatórios, fazendo um paralelo com a dívida pública. Como o pagamento da dívida pública está fora do teto de gastos, também os precatórios deveriam estar. Nada mais errado.

Em comum com a dívida pública, os precatórios só têm o nome, dívida. De resto, precatórios têm natureza completamente diversa da dívida mobiliária, aquela que o Tesouro emite para pagar as contas. Enquanto os títulos públicos são comprados voluntariamente pelos credores do Tesouro, os precatórios são instrumentos não voluntários. Os titulares dos precatórios não escolheram investir em precatórios, são apenas as pobres vítimas da falta de pagamento de um direito líquido e certo. Entre esses direitos estão aposentadorias, salários, desapropriações, tributos. A dívida representada pelo precatório, portanto, é tão dívida quanto a sua origem: não pagar aposentadorias ou salários de funcionários públicos é tão grave quanto não pagar precatórios. É a mesma coisa.

Sendo a mesma coisa, não há justificativa para tirar o pagamento de precatórios do teto de gastos. Seria o mesmo que tirar aposentadorias e salários. O precatório é apenas o reconhecimento, pela justiça, de que se deve pagar essas coisas. Não sendo nada mais do que isso, não se justifica a sua excepcionalidade. No limite, tudo é dívida do governo. Inclusive, os críticos do teto de gastos dizem que o governo tirou os gastos com a dívida pública do teto, mas mantém o espartilho na chamada “dívida social”, que é muito mais grave.

Outra é a natureza da dívida mobiliária. Como dissemos acima, os detentores dessa dívida concordaram livremente em emprestar dinheiro para o governo. Não pagar os juros ou o principal dessa dívida configura calote. Enquanto podemos dizer que o não pagamento de precatórios ou de aposentadorias ou de salários também se configura em calote, dado que há um contrato perfeito entre as partes, as consequências do não pagamento de um e outro são completamente diferentes.

Se o governo não paga precatórios, aposentadorias ou salários (como tem acontecido com frequência pelo Brasil afora), o máximo que pode enfrentar são protestos ou greves. De modo geral, os instrumentos de pressão sobre o governo são fracos. Já com a dívida mobiliária é diferente: um leve movimento de sobrancelha sugerindo que o governo está pensando em não pagar juros ou o principal de sua dívida já é o suficiente para os credores exigirem taxas de juros mais altas. No limite, esses credores, pelo fato de serem voluntários, podem simplesmente se recusar a continuar financiando o governo. E é aí que está a grande diferença em relação aos precatórios.

Imaginemos, por um momento, que o governo desse calote em toda a dívida pública. O que aconteceria? Não haveria mais a quem recorrer para tapar o buraco do orçamento. O governo precisaria fazer superávit primário se quisesse continuar pagando os seus compromissos. Só para lembrar, o governo não faz superávit primário desde 2014, e não há previsão de voltarmos a fazer superávit primário até pelo menos 2024. Auxílio emergencial na pandemia? Esquece, não teria como, a não ser cortando outros gastos. Claro, no limite, o governo pode lançar mão daquela maquininha mágica de imprimir papel colorido, mas isso daria um alívio apenas de curto prazo, como vem nos ensinando Venezuela e Argentina.

Portanto, o governo não tem alternativa a não ser pagar a dívida mobiliária. Por isso, esse pagamento não pode estar dentro do teto de gastos. A natureza da dívida mobiliária é diferente da de todas as outras dívidas. A dívida mobiliária nasce da necessidade de o governo antecipar e expandir os seus gastos além daquilo que arrecada. Se o governo vivesse sempre dentro de suas posses, não existiria dívida pública. Ora, o pagamento da dívida pública dentro do teto limitaria a própria capacidade do governo de se endividar e pagar todas as suas outras “dívidas”, incluindo as sociais. Talvez não fosse má ideia, ainda que inexequível.

Este raciocínio é válido mesmo para o caso de pagamento dos precatórios com dinheiro de privatizações e dividendos de estatais. No final do dia, estamos carimbando um dinheiro que, de outra maneira, serviria para abater dívida ou pagar outras despesas por dentro do teto de gastos. Tirar despesas do teto, mesmo que tenha fonte carimbada, tem como consequência o aumento da dívida pública além daquilo previsto pelo teto de gastos. O teto existe justamente para controlar o aumento da dívida. Se começarmos a tirar despesas do teto, mesmo carimbando receitas para pagá-las, o resultado será o aumento do descontrole da dívida pública. A não ser que a receita somente existisse para pagar aquela despesa, e não existisse se a despesa também não existisse. Mas não é o caso aqui: continuaremos fazendo privatizações e as estatais continuarão a pagar dividendos, independentemente se os precatórios estão dentro ou fora do teto. O gasto que saiu do teto dará espaço para outros gastos por dentro do teto (alô Bolsa Família anabolizada!), aumentando a dívida.

Em resumo: a classe política brasileira tem uma imensa, gigantesca dificuldade em conviver com limites de orçamento. Estão sempre pensando em fórmulas para driblar estes limites. Temos um histórico ruim como devedores e, por isso, qualquer movimento no sentido de ludibriar os credores é visto com desconfiança. Pagamos o preço por não sermos um país sério no trato da coisa pública. E movimentos como esse dos precatórios só fazem piorar a situação.

Identificar a natureza dos precatórios é o de menos

No dia 31/12/2018, último dia do governo Temer, o título prefixado com vencimento em 2027 estava pagando 9,18% ao ano. Ontem, o mesmo título fechou em 9,48% ao ano.

Este título prefixado é suficientemente longo para podermos analisá-lo como uma proxy do humor geral dos credores da dívida pública. Essa taxa de juros mistura a expectativa de inflação no longo prazo e a probabilidade de algum tipo de calote (lembrando que a inflação é um tipo de calote). Quanto maior essa taxa, maior é a incerteza dos investidores em relação a essas questões.

Antes de analisar o impacto dessas discussões a respeito dos precatórios e teto de gastos (destaco a fala do deputado Fernando Bezerra abaixo), vamos a um breve histórico das taxas de juros desse título prefixado com vencimento em 2027.

No dia 15/01/2016, primeiro dia de negociação desse título, a taxa era de 16,36% ao ano. Estávamos em meio ao caos do fim do governo Dilma, sem nenhuma garantia de que a dívida pública estava sob controle, dado que o governo estava produzindo déficits fiscais crescentes. Essa taxa de juros veio caindo ao longo de 2016, primeiro com a perspectiva do impeachment e, depois, com a aprovação da lei do teto de gastos. No dia do impeachment na Câmara, a taxa do prefixado 2027 já tinha caído para 12,90% ao ano e, no dia da aprovação da lei do teto de gastos em segundo turno no Senado, a taxa do mesmo título chegou a 11,96%.

A aplicação disciplinada da lei do teto de gastos, outras reformas ao longo do governo Temer e um banco central dedicado a combater a inflação permitiram que a taxa desse título recuasse, nos dois anos seguintes, para os 9,18% ao ano mencionados no início desse post.

O governo Bolsonaro, com suas promessas de políticas pró disciplina fiscal e a aprovação da reforma da Previdência, viu a taxa do janeiro 2027 recuar até a mínima de 5,87% ao ano no dia 03/08 do ano passado, ou seja, há um ano. A partir de então, vimos a escalada até atingir 9,48% ao ano ontem. Esse movimento comeu todos os ganhos da primeira metade do governo Bolsonaro e voltamos ao ponto pré-reforma da Previdência. O que aconteceu?

Aqui entra essa questão dos precatórios e do teto de gastos. Na verdade, aqui entra a resistência a fazer a reforma do Estado necessária para fazer cabê-lo dentro do orçamento.

Há um ano, estávamos discutindo a reforma administrativa, o passo seguinte após a aprovação da reforma da previdência. Nada avançou. Desde então, sempre que surge alguma necessidade adicional de gastos (e os precatórios são apenas o mais recente, mas não o último), começa-se a discutir formas, digamos, criativas para acomodar os gastos adicionais. Foi o que aconteceu no início do ano com as emendas parlamentares, é o que está acontecendo agora com o aumento do Bolsa Família e, para agregar à confusão, chegou o meteoro dos precatórios, para usar a linguagem do ministro da economia.

A criatividade não tem limites. Guedes propõe o parcelamento dos precatórios, usando a frase de todo caloteiro, “devo não nego, pago quando puder”. Agora, o deputado Bezerra propõe algo ainda mais criativo: simplesmente tirar o pagamento dos precatórios do limite do teto de gastos.

Aqui, trata-se de escolher entre morrer na frigideira ou no forno. Parcelar a dívida é somente empurrar o problema com a barriga. O governo está parcelando a dívida do cartão de crédito como se isso resolvesse o problema. Não, o problema só vai crescer no futuro. Além disso, dá até arrepios ao lembrar que o governo não deve somente para os detentores de precatórios, mas também para os detentores de dívida pública. Se está parcelando a dívida para uns, por que não para os outros…

As situações só não são idênticas porque, hoje, os precatórios estão sob o teto de gastos, enquanto os juros e a rolagem da dívida pública não estão. Então, para pagar a dívida, o governo simplesmente emite mais dívida, não tem limite para isso.

Aí é que entra a proposta de Fernando Bezerra, de tirar o pagamento dos precatórios do teto de gastos. Ele faz o paralelo com a dívida pública: afinal, se a dívida pública não está sob o teto, por que os precatórios deveriam estar? Não é tudo dívida? Então…

Não vou aqui nem entrar no mérito das diferenças entre uma e outra. O problema é começar a fazer interpretações “livres” do que seja dívida, e começar a ter ideia de tirar coisas de debaixo do teto. Por exemplo, o Bolsa Família serve para pagar uma “dívida social”, tão ou mais importante quanto a dívida com os investidores. Se não há limite para pagar a dívida com os credores, por que deveria haver para pagar a dívida com os pobres e desvalidos da sociedade? O governo tem uma dívida contratual com os aposentados e com os funcionários públicos. Por que o contrato com os credores da dívida pública é mais importante do que o contrato com os aposentados e com os funcionários públicos? E assim vamos. Não é à toa que muita gente é contra o teto de gastos: trata-se de uma grande “injustiça”.

O problema é que o Brasil, hoje, produz déficit fiscal de mais ou menos R$ 140 bilhões. No momento em que o governo resolvesse não pagar os credores do dívida, este déficit precisaria ser resolvido no segundo seguinte, pois não haveria mais ninguém disposto a financiá-lo. Dinheiro para pagar auxílios? Pode buscar no orçamento, não teria mais ninguém disposto a bancar. Só sobrariam duas alternativas: aumentar os impostos ou cortar gastos. Não seria mais necessário um teto formal de gastos: o governo só poderia gastar o tanto que arrecadasse, por construção. O teto de gastos seria, assim, natural. A lei do teto de gastos só existe hoje porque o governo pode se endividar. Se não pudesse, o teto seria dispensável.

As taxas de juros subiram de um ano para cá porque os credores do governo perceberam que o governo brasileiro (as 3 esferas do governo) não está disposto a viver dentro do teto de gastos de maneira séria. O resultado é que fica cada vez mais caro rolar a dívida pública, piorando a situação. Um círculo vicioso.

A solução, por óbvio, não depende só do presidente, mas em um regime presidencialista, é ele que lidera (ou deveria liderar). Bolsonaro já demonstrou, em mais de uma ocasião, que não quer mexer nesse vespeiro. Quem sabe a partir de 2023 tenhamos um presidente que entenda o problema e lidere os esforços para vivermos dentro das possibilidades do orçamento, sem chicanas.

O nível certo de inflação

A coluna de Alex Ribeiro, ontem, no Valor, traz a visão do ex-diretor do Banco Central, Sérgio Werlang, a respeito da meta de inflação de 3%. Segundo Werlang, esta meta seria muito baixa, incompatível com o problema fiscal brasileiro. Outros países emergentes, que adotam a mesma meta, não teriam o nosso nível de dívida e déficit, e uma inflação mais alta seria a maneira de “queimar” essa dívida. Na verdade, Werlang fala explicitamente em reduzir os salários dos funcionários públicos via inflação, uma vez que é constitucionalmente ilegal reduzir salários no Brasil.

Bem, esse raciocínio está errado de três maneiras.

A primeira e mais óbvia é encontrar o nível de inflação que seja suficiente para sustentar o nosso déficit. Afinal, por que, digamos, 4,5% seria uma inflação melhor do que 3%? Por que não 6% ou 10%? Werlang acusa o governo de ter reduzido a meta de inflação sem mostrar um estudo convincente sobre a adequação da meta. Pergunto: onde está o estudo que demonstra o nível “ótimo” de inflação no Brasil?

Pra falar a verdade, esse nível é até fácil de calcular. Tudo o mais constante, se o déficit hoje é de 2% do PIB e precisamos gerar um superávit de 1% para estabilizar a dívida, uma inflação de 3% resolveria o problema, desde que todos os gastos do governo permaneçam congelados.

Aí é que está o problema, e que nos leva à segunda falha no raciocínio. A inflação resolve o problema do déficit no primeiro momento. Como se trata de um jogo continuo, os agentes econômicos (funcionários públicos incluídos) aprendem e exigem a reposição da inflação em seus ganhos no momento seguinte. Assim, seja a inflação de 3%, 4,5%, 10% ou 100%, se permanecer constante neste nível, já não tem efeito sobre a dívida pública, pois os gastos do governo acompanham a inflação.

Qual o truque então? Produzir surpresas inflacionárias. Uma inflação que os agentes econômicos não estavam esperando. Assim, o que queima dívida pública de maneira permanente não é a inflação, mas uma sucessão de surpresas inflacionárias.

Poderíamos recordar os tempos da hiperinflação brasileira para ilustrar o ponto. Naquele tempo, a inflação não só era altíssima, como dava saltos de tempos em tempos. Era a única forma de queimar o déficit público. Mas não precisamos ir tão longe. A gestão de Tombini frente ao BC nos deu um exemplo mais próximo de como isso funciona. Na época, a meta de inflação era de 4,5%, a qual, segundo Werlang, seria mais adequada para um país como o Brasil. No entanto, a condução leniente da política monetária fez com que a inflação ficasse constantemente acima da meta, sempre próxima do teto de 6,5%. No início, quando o BC tinha alguma credibilidade, o truque funcionou. Inflações mais altas eram verdadeiras surpresas em relação à meta que supostamente estava sendo perseguida pelo BC. Com o tempo e a repetição do jogo, os agentes aprenderam que aquela meta era fake e ajustaram as suas expectativas para cima. Resultado? Foi necessária uma inflação ainda mais alta para surpreender os agentes. Em determinado momento, a inflação explodiu na cara de todo mundo, ultrapassando de longe o teto da meta. Esta é a lógica do jogo, independentemente da meta de inflação.

Portanto, o nível da meta pouco importa. Se o problema da dívida e do déficit públicos não forem resolvidos, qualquer inflação será sempre insuficiente. Aliás, causa-me espécie que economistas bem formados ainda advoguem pela inflação como “solução” para o déficit público. Inflação não é solução para nada, é apenas a febre que indica a presença de uma infecção.

Isto nos leva à terceira falha no raciocínio. A surpresa inflacionária não somente “queima” déficit público. Ela serve também para desorganizar a vida da sociedade e dificultar investimentos, prejudicando o crescimento econômico no longo prazo. Muitas pessoas pensam que um pouco mais de inflação é justificável para manter o crescimento econômico e a criação de empregos. Apesar de esta relação ser verdadeira no curto prazo (são os ciclos econômicos), no longo prazo o controle da inflação permite um crescimento maior e mais estável.

E não custa lembrar que a inflação é o mais pernicioso dos impostos, tributando os mais pobres (que não têm como se defender) para transferir recursos que financiam o déficit do governo. O controle do déficit público que permite uma inflação mais baixa ao longo do tempo é o programa mais potente de distribuição de renda. O resto é populismo barato (ou caro).