Compromissos insustentáveis

39% das cidades paulistas pagam aos professores menos do que o piso determinado por lei federal. Se isso acontece nos municípios de São Paulo, imagine nesse Brasilzão…

O papel aceita tudo. São muitas e boas as intenções dos legisladores quando aprovam uma lei. Só costuma ter um pequeno problema: não tem dinheiro para pagar por todas elas.

A reportagem não fala, mas uma boa parte dessa verba vai para pagar professores aposentados, que contam com regras generosas. Muito justo. Mas alguém está pagando por isso.

A reportagem mostra que essa desobediência à regra é mais grave nos municípios pequenos: dentre aqueles com menos de 10 mil habitantes, 55% não pagam o piso. No entanto, quando se fala de fusão de municípios inviáveis, várias vozes se levantam contra o que seria o “desatendimento” das populações mais vulneráveis. Ok.

Mas o que mais me chamou a atenção na reportagem foi o caso do município de Paulínia. Por força de lei, 25% da receita do município deve ser investido em educação. Tendo a sorte de ser sede de uma refinaria da Petrobras, Paulínia conta com uma alta arrecadação de impostos. Resultado: piso salarial de professores de R$ 8,8 mil, o que coloca os professores do município nos 5% da população brasileira que mais recebem renda. Muito justo e merecido, a não ser por um pequeno detalhe: perenidade.

O município de Paulínia assumiu o encargo perene de pagar excelentes salários aos professores com base em uma receita que pode não se repetir no futuro. Hoje a refinaria está lá, amanhã o negócio pode se inviabilizar economicamente. Vimos isso acontecer em vários municípios cariocas, que dependiam de royalties do petróleo. A receita está lá até não estar mais. Ocorre que os encargos, por força de lei, não podem ser diminuídos. Resultado: no futuro, deixarão de ser pagos. Não é uma questão de se, é uma questão de quando.

Efeito Orloff

Valor econômico de hoje. Leio em uma página sobre a “desconfiança” em relação ao governo argentino.

Eu pergunto: esperavam o que?

Na página seguinte, o editorial do Valor fala sobre o encaminhamento frustrante das PECs que deveriam equacionar o problema fiscal brasileiro.

Uma sensação de “efeito Orloff” toma conta da minha mente. Para os mais novos, o “efeito Orloff” se refere a uma propaganda da vodca de mesma marca, em que um sujeito, tendo vindo do futuro, conversava com ele mesmo, dizendo: “eu sou você amanhã”. A mensagem era que Orloff não causava ressaca no dia seguinte.

Será a Argentina o Brasil amanhã? Durante muito tempo foi assim. Mas, a partir do primeiro mandato do governo Lula, que espertamente manteve as políticas ortodoxas de seu antecessor, o Brasil se descolou de seu vizinho do sul. Nestor Kirshner, do outro lado do rio Iguaçu, optou por políticas heterodoxas, que levaram a Argentina ao ponto em que está hoje.

O paralelo, ou a sensação de efeito Orloff, no entanto, não está na comparação com os doidivanas dos Kishners. Este governo está cada vez mais se parecendo com o governo Macri.

Maurício Macri foi eleito na esteira do rotundo fracasso das políticas heterodoxas dos Kirhsners. Foi eleito para colocar ordem na casa. O que fez o presidente argentino? Caminhou na direção certa, mas a passo de cágado. Claro, sempre se pode dizer que caminhou na velocidade que as condições políticas lhe permitiram. Mas isso não serviu de desculpa. O fato é que fez muito pouco, muito tarde. Não ter criado as condições políticas para fazer o certo também pode ser debitado de sua conta.

É nesse sentido que o editorial do Valor lembrou-me o efeito Orloff, na medida em que escancara a falta de urgência com que o problema fiscal é tratado pelo governo e pelo Congresso. Como diz o economista para mercados emergentes da Goldman Sachs, Alberto Ramos, a respeito do governo argentino, “o mercado continua bastante desapontado com a falta de um plano de médio e longo prazo. Ou seja, muita conversa e pouco trabalho”. Poderia estar falando do governo brasileiro.

O moto-perpétuo da economia

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, nos brindou com um artigo no Estadão de 26/10/2020, em que defende que não há problema em um governo se endividar na própria moeda, pois não haveria risco de calote. Em outras palavras, comprar títulos de um governo na moeda local não teria risco.

A lógica é a seguinte: “um aumento de gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial”. O trecho segue abaixo.

Se perdeu? Eu explico: os gastos públicos vão, de uma maneira ou de outra, parar no sistema bancário (as empresas ou pessoas destinatárias dos gastos públicos acabam depositando esse dinheiro nos bancos). Os bancos não tem outra alternativa a não ser comprar títulos públicos com esse dinheiro, o que financiará os gastos do públicos. Fecha-se o círculo. Qual o problema com esse raciocínio?

O problema é que, se fosse assim, estaria inventado o moto-perpétuo. Como sabemos, o moto-perpétuo é aquele aparelho imaginário que funciona com a própria energia que gera. Por exemplo, um motor que gera energia elétrica e usa essa energia para o seu próprio funcionamento, não necessitando de fonte externa. Já imaginou? Seria o fim de qualquer crise de energia. Mas não, infelizmente o moto-perpétuo não existe.

Se os governos pudessem emitir dívida em sua própria moeda sem que houvesse o risco de calote, não haveria país pobre no mundo. Seria o “moto-perpétuo econômico”: o governo emite dívida, faz os gastos públicos, e esse mesmo dinheiro volta para os cofres do governo, que inicia novamente o processo. Onde está o furo?

O furo está em que os gastos do governo normalmente destroem valor. E é a criação de valor que gera crescimento econômico, não o dinheiro criado do nada pelo governo através da emissão de dívida pública. O lucro, no final, é que é a medida do valor criado.

Se os negócios obtêm menos dinheiro do que investiram para produzir o que quer que seja, se inviabilizam e morrem. O único ente que “não morre” é o governo. Os países não morrem porque podem emitir dinheiro e dívida e podem forçar o recolhimento de impostos. De modo que o prejuízo do governo é coberto pelo aumento do dinheiro em circulação (inflação), pelo aumento da dívida e pelo aumento dos impostos. Mas, toda vez que faz isso, na verdade o governo está distribuindo o seu prejuízo pela sociedade que o financia.

Poderíamos pensar no exemplo mais extremo de contratar operários para cavar buracos e depois tapá-los, mas vamos usar um exemplo mais real e indiscutível de gasto do governo: investimentos em educação. É óbvio que o investimento em educação é essencial. Mas é preciso que seja bem feito, de modo que o valor criado pela mão de obra formada seja maior do que o investimento realizado. Caso contrário, o governo terá prejuízo, da mesma forma que teria se tivesse remunerado pessoas para cavar buracos e depois tapá-los. E esse prejuízo será distribuído pela sociedade que financia o governo. Afinal, como sabemos, governos “não morrem”.

Voltando ao artigo, o autor se pergunta o que podem fazer os financiadores da dívida pública a não ser continuar financiando a dívida pública. Ao lembrar que os donos do capital podem simplesmente ir embora com o dinheiro, Assis considera que o câmbio flutuante seria um antídoto mais do que suficiente para evitar esta fuga. O câmbio desvalorizado funcionaria como um pedágio absurdamente caro para quem quisesse transitar por essa estrada que leva o dinheiro para o exterior. Afinal, quem iria retirar o seu dinheiro do país se tivesse que comprar dólar, por exemplo, a R$ 10,98? (Veja o trecho abaixo – aliás, este número está incorreto, pois não considerou a inflação nos EUA. O correto é corrigir pelo diferencial da inflação entre Brasil e EUA, o que daria algo próximo a R$ 7,60. Mas, segue o jogo.)

Esta é outra falácia. Se esta mesma pergunta fosse feita há um ano, usando R$5,00 como valor do dólar, certamente a resposta seria “haveria menos interesse” em enviar dinheiro para fora. No entanto, o capital continua saindo não com o dólar a R$ 5,00, mas a R$ 5,80. Ocorre que os investidores não querem saber o nível atual do dólar, mas se este nível vai ficar por aí ou vai subir ainda mais.

Estive na Argentina há quase 7 anos, quando o dólar estava sendo negociado a 10 pesos. Era o dólar Maradona. Hoje, o câmbio oficial está em 75 pesos e o paralelo está o dobro disso. Se os investidores avaliarem que R$ 10 é um nível daí para cima, vão continuar saindo do mesmo jeito. E, convenhamos, contar com o dólar a R$ 10 para evitar a saída de capitais é o mesmo que quebrar as pernas de um menino para que ele pare de correr. Se chegar nesse nível, é que muita coisa deu errado antes. E se continuar errado, não há motivo para achar que o dólar pare em R$ 10. Assim como não há motivo para achar que o dólar vai parar em R$ 5,80 se não fizermos a lição de casa.

Economistas como Luis Eduardo Assis põem a ênfase no crescimento econômico, e chamam de “fundamentalistas” os que estressam a questão fiscal. De fato, somos “fundamentalistas”, no sentido de que colocamos a ênfase nos fundamentos. Quando vamos construir uma casa, colocamos primeiro os alicerces. O equilíbrio fiscal é o alicerce da casa. A casa é o crescimento econômico. Assim como não há casa sem alicerce, não existe crescimento sem equilíbrio fiscal. Ninguém é maluco de achar que colocar os alicerces é o suficiente para ter uma casa. Nem ninguém são tentará construir uma casa sem alicerces. Uma coisa depende da outra. Essa dicotomia entre equilíbrio fiscal e crescimento econômico é simplesmente falsa.

O tamanho do sofrimento

A Moody´s é a agência de análise de risco que mantém o melhor rating para a dívida soberana brasileira, BB, dois níveis abaixo do grau de investimento. As outras duas agências, S&P e Fitch, atribuem rating BB-, três níveis abaixo. O que a Moody´s está dizendo é que pode se juntar às outras duas agências caso não se retome a trajetória de ajuste fiscal.

E daí?

As agências de rating são notoriamente atrasadas em relação à realidade. Elas sempre estão correndo atrás do prejuízo, sancionando aquilo que os mercados já sabiam faz tempo. A questão, portanto, é: as agências estão atrasadas em relação à melhora das condições brasileiras ou em relação à piora? A julgar pelo aviso da Moody´s, estão atrasadas em relação à piora. Ou seja, o mercado já está precificando uma situação muito pior, e as agências vão novamente correr atrás, rebaixando o rating soberano brasileiro.

Isso significa dinheiro mais caro para financiar o crescimento econômico. Não que o rebaixamento do rating vá tornar o dinheiro mais caro. O rebaixamento só vai reconhecer uma situação de fato. A solução? Fazer a lição de casa. O sofrimento causado pelo ajuste fiscal é muito menor que o sofrimento causado pelo desajuste. A escolha não é entre sofrimento e não sofrimento. A escolha é pelo tamanho do sofrimento. Vamos ver qual será a escolha do governo e da sociedade.

Quem quer, faz

Ain, porque o Congresso…

Ain, porque o Supremo…

Ain, porque a mídia…

Ain, porque as eleições…

O governo de SP apresentou um pacote de austeridade fiscal prevendo fim de estatais, corte de incentivos fiscais e demissão (voluntária) de funcionários públicos. Doria mobilizou sua base, negociou durante semanas, tirando os pontos mais polêmicos do pacote e enfrentando a ira das corporações. Ontem o pacote foi aprovado.

Quem quer, faz. Quem não quer, fica colocando a culpa nos outros.

O Deus-mercado

Márcio Bittar, o senador que pariu a jenial ideia de usar precatórios para bancar o Renda Brasil, pergunta onde estava o mercado nos governos do PT.

Eu respondo: estava no mesmo lugar em que esteve no final de 2018. Ou seja, acreditando nas promessas do governo. Até o momento em que deixou de acreditar.

O mercado não é um Deus. O mercado somos todos nós. O mercado não é onisciente, ele acredita em promessas, até o momento em que deixa de acreditar. Não adianta criticar o mercado, pedir patriotismo, essas coisas. O dinheiro é covarde, vai buscar o primeiro abrigo que encontrar ao menor sinal de fumaça. Mulheres e crianças ficam por último. É assim.

O governo pode ouvir o que “o mercado” está tentando dizer, ou pode continuar em sua desabalada carreira rumo a lugar nenhum. O mercado é apenas o termômetro que mede a febre. A infecção está em outro lugar.

A disputa para ver quem vai cortar mais gastos

– A minha PEC corta mais gastos!

– Não senhor, é a minha PEC que corta mais gastos!

– É a minha!

– A minha!

Governo e Congresso brigando pra ver quem patrocina o maior corte de gastos.

O Estado brasileiro está possuído pelo espírito de Milton Friedman!

Sai desse corpo que não te pertence!

Ataques ao Teto de Gastos

Trecho retirado do jornal Valor Econômico

Está se formando o ambiente para a revisão da Lei do Teto de Gastos. Economistas ortodoxos, como Fábio Gianbiaggi e Cláudio Adilson defendem alguma revisão buscando preservar investimentos. Na carona, economistas da escola “gasto é vida” esfregam as mãos.

O Teto de Gastos é o Plano Real da dívida pública. A lógica deveria ser a seguinte: se não dá para fazer investimentos, vamos reduzir os outros gastos para aumentar o espaço para os investimentos. Caso contrário, a dívida pública (de 80% do PIB!) não vai diminuir nunca. Na verdade, vai continuar aumentando.

Os dois economistas autores de um artigo publicado hoje no Valor (O retorno dos bonds vigilantes) defendem a tese de que tanto faz o tamanho da dívida, o que importa é o apetite dos investidores externos. Se o apetite for bom, os investidores virão, independentemente da situação fiscal. E, ao reverso, se o apetite for ruim, eles irão embora, mesmo que tenhamos feito a lição de casa.

Isso é verdade, mas só até certo ponto. Países que não fazem sua lição de casa sofrem mais em uma crise internacional do que aqueles que fizeram. Todos sofrem, é verdade, mas uns mais do que os outros. Como dizem, é na hora que a água baixa que vemos que está nadando pelado. Então, não é indiferente fazer ou não a lição de casa. A Argentina que o diga.

O Teto de Gastos é aquela promessa de afastamento total da bebida por parte do alcoólatra. “Beber só essa dose”, como propõem alguns economistas ortodoxos, é a receita para a recaída. Enquanto não nos convencermos de que enough is enough em termos de gastos públicos, vamos nos arrastar em meias soluções que não solucionam nada, e só criam mais problemas para o futuro.

Os precatórios e a dívida de São Paulo

Trecho extraído do jornal O Estado de São Paulo

Há alguns dias, publiquei um post sobre projeto de José Serra com o objetivo de desconsiderar o pagamento de precatórios como pagamento de dívidas. Segundo Serra, o precatório não seria uma dívida, porque o Estado paga quando pode, não tem uma data de vencimento, o que caracterizaria uma “dívida de verdade”. Brinquei até, dizendo que ia transformar todos os impostos que devo ao Estado em “precatórios”, e ia pagar quando eu “pudesse”.

Pois bem. Agora ficou clara a intenção de Serra: ajudar seu correligionário, o prefeito de São Paulo. A cidade bateu no teto do endividamento pelo critério de desembolso, e o pagamento dos precatórios da cidade comem uma boa parte desse limite. Solução? Dizer que pagamento de precatórios não é pagamento de dívida, e a mágica acontece: abre-se espaço para mais endividamento.

Serra, como economista, deveria saber que dinheiro não tem carimbo. Se o município desembolsa recursos para pagar precatórios, o dinheiro sai do caixa da prefeitura, qualquer que seja o nome que se dê a esse dinheiro. Essa discussão bizantina faz lembrar os embates sobre se a Previdência tinha déficit ou não: dependendo de como se carimbava receitas e despesas, a Previdência aparecia com déficit ou superávit. O que não mudava em nada o quadro de pura e simples falta de dinheiro.

A defesa que Serra faz dessa “reclassificação” dos precatórios lembra o “gasto é vida” de Dilma Rousseff. Aliás, Serra não passa de uma Dilma de calças em matéria macroeconômica. Ou vice-versa. Segundo Serra, o novo endividamento serviria para atender a tantas necessidades importantes da vida das pessoas. Nenhuma palavra sobre cortar gastos com salários, previdência, subsídios. Isso tudo é muito difícil. Mais fácil é reclassificar os precatórios e fazer mais dívida.

As necessidades da “vida das pessoas” são, por definição, infinitas. É como tentar colocar o mar em um buraco escavado na areia. Governos populistas vão aumentando gastos, aumentando, sempre prometendo atender todas as necessidades da vida das pessoas. É óbvio que isso não tem fim. Ou melhor, tem: o desastre fiscal que vivemos hoje, responsável pela maior recessão da história. Poderia ter terminado em hiperinflação também.

Se o projeto de Serra passar, aumentaremos ainda mais a dívida da cidade. Até, daqui a poucos anos, bater no teto novamente. Em algum momento, haverá um limite. E a solução será uma combinação entre corte de gastos e aumento de impostos. Prepare o seu bolso.