Sonho: a Argentina não depende mais do dólar, agora pode usar o yuan para pagar a sua dívida.
Realidade: a Argentina vai lançar mão de um acordo de troca de moeda (swap) com a China para preservar suas reservas em dólares.
Muita festa está se fazendo entre os tuiteiros da esquerda com o fato de que o FMI está aceitando yuans para receber uma parcela do pagamento da dívida da Argentina com a instituição. Seria mais uma evidência de que o dólar está perdendo seu protagonismo e o yuan está em irreversível ascensão.
O FMI receber yuans é fácil. Difícil mesmo é um argentino receber yuans. Quando cambistas na calle Florida estiverem preferindo comprar yuans ao invés de dólares, aí poderemos dizer que a moeda chinesa ganhou curso internacional.
Tal qual uma criança que começa a descobrir o mundo ao seu redor, nosso presidente tem muitas perguntas. Por que a taxa de juros precisa ser tão alta? Por que o preço da gasolina não pode seguir os custos de produção local? Por que não podemos ter um banco de desenvolvimento que empreste sem condicionalidades?
A última pergunta que tem atormentado o presidente, a ponto de deitar-se com ela toda noite, trata da dominância do dólar no comércio global. Afinal, por que o comércio entre os países precisa passar pelo dólar?
A função do adulto é introduzir a criança no mundo a que ela foi convidada sem pedir. No mundo da criança, tudo é possível. Trata-se de um mundo mágico, em que as coisas acontecem “como deveriam ser”. O adulto, ao responder às questões da criança, descreve o mundo “como ele é”. O problema de Lula é que os que o cercam, incluindo os economistas, costumam ter o mesmo pensamento mágico.
No caso, o adulto explicaria que o dólar é emitido pelo maior país do planeta, com um banco central independente, e em que o sistema político, com seus pesos e contrapesos, evita a dominância de um homem ou de um partido. A China é grande sim, a segunda maior economia do planeta. Mas o fluxo de capitais e o câmbio são estritamente controlados por uma autoridade monetária (o Banco Popular da China) completamente subordinada a um ditador. Você compraria um carro usado de Xi Jinping?
Faça um teste. Peça a um amigo seu que esteja na China que lhe traga alguns renminbis na mala. Faça o mesmo com um amigo que esteja nos EUA, e lhe peça para trazer alguns dólares. Tente comprar alguma coisa aqui no Brasil com os renminbis e com os dólares. Qual será a tarefa mais fácil? Pois é. As pessoas guardam dólares em casa, não renminbis, sem que ninguém as obrigue a isso.
O Banco Central do Brasil investe as reservas internacionais em várias moedas. Cerca de 80% está em dólares e apenas 5% em renminbis, apesar de a China ser, de longe, nosso maior parceiro comercial. Vendemos US$ 90 bilhões anualmente para a China, mas somente US$ 15 bilhões das reservas estão na moeda chinesa. O BC raciocina com o mesmo cuidado que as pessoas que guardam o dinheiro em dólar, não em renminbi. Se Lula souber disso, arrumará mais um motivo para encrencar com o Roberto Campos, além da taxa Selic.
Há alguns anos, estive na China a trabalho. Nas várias reuniões de que participei, não falávamos em português ou mandarim. A língua usada era o inglês. Nem todos podem contar com um tradutor oficial, como Lula e Xi Jinping têm à disposição. Então, lançamos mão da língua franca global para nos comunicar. Talvez Lula pudesse pensar nisso também antes de dormir.
Olha, eu não sou tão expert quanto o presidente do BC, mas vou aqui dar uma dica quente para o presidente: envie ao Congresso um pacote de medidas que corte 5% do PIB em despesas permanentes a partir do ano que vem. E, obviamente, não coloque nada no lugar.
Leio hoje no Valor que Rússia e China aumentaram as transações em moeda local entre si. Agora, representam 24% do total do comércio exterior entre os dois países. O restante ainda é em dólar (46%) e Euro (30%).
Alguns poderiam se perguntar, afinal, por que essa dependência do dólar? Não poderiam as nações simplesmente transacionar em suas próprias moedas entre si?
A resposta a essa pergunta vai na forma de uma outra pergunta: se você fosse um empresário brasileiro e estivesse vendendo para a Argentina, você aceitaria o pagamento em pesos argentinos? Ou exigiria dólares?
Na última vez que fui à Argentina, em 2014, troquei todos os meus dólares por pesos argentinos, para poder pagar as coisas. O comércio de lá aceitava (e ainda aceita) dólares também, mas o câmbio não era muito favorável. Bem, no final da viagem sobraram alguns pesos. Só para testar, fui ao Banco de La Nacion do aeroporto de Ezeiza para tentar trocar os pesos por dólares. Obviamente não tive sucesso. Nem o banco estatal aceitava a moeda do país.
Moeda é, acima de tudo, confiança. Aquele papel pintado só vale alguma coisa porque por trás existe um governo confiável, suportado por um sistema jurídico que funciona. Você compraria um carro usado do Putin? E do Xi Jinping? Pois é.
Ok, você também não compraria um carro usado do Trump. Mas aí entra a força das instituições. Trump vai durar mais alguns meses ou, no máximo, mais 4 anos. Todos sabem disso, todos confiam que isso acontecerá. A dívida americana é gigantesca, mas todos confiam de que receberão o seu dinheiro de volta, se assim o quiserem. Aliás, receberão em dólares, o papel pintado que vale tanto quanto a dívida.
Mesmo no caso do Euro, a confiança é menor. Trata-se de uma moeda construída há menos de 30 anos, com uma governança que depende basicamente da Alemanha. Na verdade, a confiança no Euro é a confiança na Alemanha. Os detentores do Euro confiam que, se um dia a moeda desaparecer, poderão trocá-la por marcos alemães. Mas trata-se de um arranjo mais precário do que o dólar.
Assim, vejo essas notícias com um certo ceticismo. O repórter entrevista um professor de Harvard que credita ao dólar três vantagens: inflação baixa, mercado doméstico gigantesco e mercado financeiro enorme e sofisticado. É verdade, mas isso a Europa também tem. Então, o que determina a predominância é a confiança de que a poupança em dólar é mais segura. Não vejo isso mudando em um horizonte de tempo visível.