Hoje, o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, apresenta a campanha da fraternidade deste ano, sobre a fome, em artigo no Estadão. O articulista começa por constatar o óbvio, de que o problema da fome é um problema de renda. Se as pessoas não têm renda, como vão comprar alimentos suficientes, não é mesmo?
Mas gostaria de destacar uma fala do Papa Francisco, citada pelo arcebispo.
O papa lamenta que “o mercado” tenha transformado os alimentos em uma mercadoria “como outra qualquer”. Substitua “alimentos” por “saúde”, “educação”, “energia”, “água” e uma longa lista de etceteras que compõem as necessidades básicas dos seres humanos, e teremos essa condenação moral estendida a praticamente todos os bens transacionados no mercado, com a provável exceção de joias, iates e jatinhos particulares.
O primeiro passo para não resolver um problema é diagnosticá-lo de maneira incorreta. Tentar resolver o problema da fome demonizando os “mercados” é o caminho certo para piorar o problema, não para solucioná-lo. Vejamos.
Somos bilhões de almas ao redor do planeta. No Brasil, somos mais de duas centenas de milhões. Fazer chegar alimentos para cada um desses seres humanos é um problema econômico de grandes proporções. Trata-se de uma cadeia longa e delicada, que começa lá na produção de sementes, passando pela plantação e colheita, transformação industrial e comercialização na cadeia de varejo. Em cada uma dessas etapas, temos insumos de indústrias químicas, metalúrgicas e petroquímicas, que, por sua vez, dependem de insumos da siderurgia e mineração. Sem contar toda a cadeia logística envolvida em cada uma dessas etapas. Como é inimaginável que todo esse mecanismo trabalhe na base do escambo, é necessário um sistema financeiro que suporte as trocas comerciais em cada um desses elos da cadeia. É neste ponto que os alimentos se transformam em uma “mercadoria como outra qualquer”, sujeitos aos “humores do mercado”, que nada mais são do que respostas a perturbações em cada um dos elos da cadeia de produção.
Essa realidade pode causar um desconforto moral, como causou ao Papa, mas não deveria. É justamente esse mecanismo que permitiu o enriquecimento da humanidade ao longo dos últimos séculos, e que permite alimentar bilhões de pessoas, mesmo que somente uma diminuta fração delas se dedique à produção direta de alimentos. Qualquer tentativa de dotar esse mecanismo de “critérios morais”terá como consequência o inverso do pretendido, como há fartos exemplos na história.
Os governos podem tentar mitigar a situação, através de programas sociais. O orçamento do governo brasileiro totaliza, para 2023, gastos de aproximadamente R$ 2,3 trilhões. Isso dá mais ou menos R$ 50 por dia por cidadão brasileiro que está em “insegurança alimentar” (os 120 milhões da Marina Silva). Com esse montante, dá para comer relativamente bem. O fato de o Estado brasileiro gastar essa montanha de dinheiro e, ainda assim, não conseguir resolver o problema da fome, isso sim deveria ser motivo de indignação. (Sim, eu sei que há muitas outras prioridades que merecem ser destino para os gastos do governo, mas que prioridade é maior do que a fome?)
Nem exigir “moralidade” dos mercados, nem esperar que os governos “resolvam” o problema, irá acabar com o problema da fome no Brasil ou no mundo. Voltando ao início, fico com as sábias palavras de D. Odilo: o problema da fome é um problema de renda. Dizem que o povo não come PIB. No entanto, por algum estranho motivo, o problema da fome é menor onde o PIB per capita é maior. Talvez o povo coma PIB e não estejamos sabendo.