Mentiras sinceras não me interessam

Michael Bloomberg começou a sua campanha eleitoral. Ele promete criar os empregos de qualidade que Trump não criou (veja o seu artigo aqui). Suas credenciais? Ele já faz isso em sua empresa, onde 20 mil funcionários têm direito a licença parental (pai e mãe) remunerada de 6 meses, além de licença médica e o direito de se sindicalizar.

O que Bloomberg não conta é que sua empresa só consegue conceder esses benefícios porque vive de alugar terminais de US$1.500/mês para um setor, o financeiro, que pode pagar por isso. Sua mão de obra é altamente especializada, o que permite ter uma produtividade e valor agregado quase inigualáveis.

Se Bloomberg tentar replicar este mesmo modelo para o restante da economia, as empresas quebram. Ou começam a contratar trabalhadores informais. Conheço um país onde essa coisa de “modernizar” o contrato entre patrões e empregados, como ele diz, deu muito certo mesmo. Esse país tem um desemprego quase 4 vezes maior que o americano e os empregos não são exatamente “de qualidade”.

Bloomberg sabe como funciona a economia. Ele está mentindo, assim como ele acusa Trump de o ter feito. Mas Trump é um populista doido, enquanto Bloomberg é muito antenado com as últimas tendências do debate correto sobre as mazelas da economia. Sinceramente, prefiro Sanders ou Elizabeth Warren. Pelo menos, esses não mentem, eles realmente acreditam nas sandices que dizem.

Depoimento do repórter da Globo que cobriu a queda do Muro de Berlim, que completa 30 anos amanhã.

Conta de sua emoção de estar testemunhando a história, apesar de “outros muros ainda estarem sendo construídos hoje”.

É do balacobaco!

O sujeito quer comparar o Muro de Berlim com o muro do Trump entre EUA e México. É mais ou menos como comparar o muro de um presídio com o muro que certamente protege o condomínio onde o repórter mora. E essa comparação não é nem a ideal, pois os condenados estão cumprindo pena pelos seus crimes, enquanto os alemães orientais só tiveram o azar de cair no lado errado da história.

O repórter celebra a queda do Muro de Berlim como um “congraçamento dos povos”, o que justificaria a comparação. Nada de muros que dividem as pessoas!

Congraçamento meus ovo. A queda do muro foi a libertação dos alemães orientais de um regime opressor, com resultados econômicos pífios. Até hoje os alemães orientais são mais pobres que os ocidentais, apesar dos esforços hercúleos de integração.

A queda do muro de Berlim deixou desorientada a esquerda no mundo inteiro. Transformar este evento em um “congraçamento dos povos” é uma forma de atenuar o seu real significado: o fracasso do socialismo como sistema econômico e de governo. Assim como dizer que o socialismo soviético não foi o “verdadeiro socialismo”, trata-se de uma forma de lidar com uma realidade muito dura, que destrói convicções longamente formadas.

O socialismo caiu com o muro, mas ainda vive nos corações e mentes de muitos.

OCDE ou não OCDE, eis a questão

Já está claro que a carta de recomendação dos EUA não vetou o Brasil na OCDE, apenas recomendou Argentina e Romênia, provavelmente por uma questão de ordem cronológica do pedido de adesão.

O problema, portanto, não foi essa carta de recomendação. Os problemas são outros dois: 1) o fato dos governos petistas terem desperdiçado a chance de ouro do Brasil pleitear uma vaga na OCDE e 2) o governo Bolsonaro ter criado a falsa expectativa de que sua “amizade” com Donald Trump faria com que o Brasil “furasse” a fila.

Os governos Lula e Dilma nutriam pela OCDE o mesmo desprezo estampado hoje na entrevista de Rubens Ricupero, que reproduzi no post anterior. Para eles, o que importava era ter uma liderança no mundo pobre, ser uma espécie de “EUA dos miseráveis”. Foi um erro de leitura em dois sentidos.

Primeiro, países pobres querem ser ricos, não querem fazer parte de um “clube dos pobres”. Tirando talvez Cuba e Venezuela, “pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”, como dizia o imortal Joãozinho Trinta. Esse foi o erro geopolítico.

O segundo erro foi ideológico: uma certa prevenção contra os “ricos”, que não estaria de acordo com nossa vocação de pobre. Esta é a crítica de Ricupero e dos intelequituais de maneira geral. Ricupero diz que pertencer à OCDE não nos fará ricos. Sem dúvida, a simples pertença ao clube não faz de ninguém “rico”. Mas a OCDE tem regras rígidas de comportamento econômico, que “puxam” o país para cima. Pertencer à OCDE significa que o país tem a intenção de seguir estas regras, o que dá a seus membros um status diferenciado quando se trata de receber investimentos. Ricupero cita a Grécia como contra-exemplo, um país que quebrou mesmo fazendo parte da OCDE. Bem, a Grécia fraudou a União Europeia, o FMI e a OCDE com uma contabilidade falsificada (uma versão grega das “pedaladas”). Mas o fato de pertencer à Zona do Euro e à OCDE forçou a Grécia a fazer a lição de casa, algo muito mais dacroniano que o nosso teto de gastos. Isso é o que importa: ser forçado pelas instituições a dar um basta, e não continuar escorregando ladeira abaixo, como estão ainda fazendo Venezuela e Argentina.

Os governos petistas, portanto, foram os autores do erro original. O governo Bolsonaro, por sua vez, criou a expectativa de que o seu relacionamento com Trump poderia compensar este erro. Não contava que, relacionamento por relacionamento, o de Trump com Macri tem raízes muito mais profundas.

O Brasil pleiteou sua entrada na OCDE em 2017, um ano depois do pedido da Argentina. A expectativa criada foi a de que pudesse haver uma inversão dessa ordem. Poderia ter havido, mas não houve. O caso da Argentina será analisado antes e, provavelmente, não será aceito. Mas o Brasil ficou para depois, como era natural, dada a ordem cronológica. O problema foi a expectativa criada. O que se viu é que o Brasil continua sendo um parceiro a mais dos EUA, nada realmente especial, como quis vender o governo Bolsonaro.

Continuaremos a fazer a nossa lição de casa e, em alguns anos, entraremos na OCDE. Mas será no ritmo normal dessa organização, sem atalhos imaginários.

O ingresso na OCDE

Hoje finalmente os EUA confirmaram oficialmente o apoio à candidatura do Brasil à OCDE. Vi muito site de esquerda tripudiando o governo por conta da demora nessa confirmação, dizendo que Trump havia enganado o Bolso e coisa e tal. Precipitaram-se na comemoração da desgraça alheia e do Brasil. Golaço de Bolsonaro, que conseguiu transformar uma afinidade ideológica em algo útil, muito útil, para o Brasil.

Não nos esqueçamos também que foi o governo Temer que iniciou o processo, tentando recuperar um tempo miseravelmente perdido pelos governos do PT. Há 10 anos tínhamos muito mais condições de pleitear uma vaga na organização, em termos comparativos com outros países. Mas não adianta chorar o leite derramado, agora é bola pra frente. Que venha a admissão, daqui a dois, três ou cinco anos. O Brasil tem muito a ganhar.

Tosco

Trump é um homem de negócios. Quando ele compra um imóvel de alguém, ele considera que está “loosing money” só porque o dinheiro saiu do seu bolso?

Pois é exatamente isso o que ele sugere, ao confundir déficit comercial com prejuízo. Eu tento não achar o Trump um tosco, mas ele não colabora.

A maior ameaça à paz mundial

A respeito da prisão da herdeira da Huawei, Jeffrey Sachs conclui, em artigo na imprensa americana, que Donald Trump é, hoje, a maior ameaça à paz mundial.

No dia em que um professor de alguma universidade chinesa puder escrever um artigo, na imprensa daquele país, afirmando que Xi Jinping é a maior ameaça à paz mundial, voltamos a conversar.

Minando as bases do capitalismo

Uma das grandes virtudes da economia americana é a sua flexibilidade. Os agentes econômicos têm grande liberdade para decidir onde investir o seu capital, seja financeiro, seja humano. Assim, por exemplo, em poucos lugares do mundo se vê o número enorme de pessoas que mudam de cidade em busca de melhores condições de trabalho. O mesmo ocorre com os investimentos das empresas.

Esta flexibilidade permite que as empresas nos EUA possam responder rapidamente à demanda dos consumidores, que são, em última instância, aqueles que decidem quais empresas devem sobreviver e quais devem morrer. Não à toa, o desemprego nos EUA é o menor do mundo desenvolvido (não de hoje, mas estruturalmente) e sua produtividade é das maiores.

Donald Trump parece não concordar com nada disso. Para o presidente americano, as empresas americanas deveriam manter fábricas produzindo bens não desejados pelos consumidores com o objetivo de “preservar empregos”. Ao ameaçar a GM, Trump na verdade ameaça um dos pilares da economia mais dinâmica do ocidente: a liberdade dos agentes econômicos de escolherem o melhor destino para os seus recursos, de acordo com sua melhor avaliação da produtividade desses recursos. O que quer Trump? Que a GM continue produzindo carros que ninguém quer comprar?

É verdade que o governo americano interveio e “salvou” a GM na crise de 2008. Dinheiro dos contribuintes foi usado para salvar empregos e, de quebra, dar uma forcinha aos acionistas da empresa. Houve muita controvérsia a respeito: seria este o melhor destino para os impostos? Os governos Bush e Obama entenderam que sim, com o objetivo de preservar empregos.

Agora, Trump ameaça tirar os subsídios para os carros elétricos da GM. Qual o efeito de uma medida desse tipo a não ser obrigar a empresa a também fechar a planta de carros elétricos? Nesse caso, a situação dos empregos pioraria ainda mais. A única saída seria mais uma ajuda governamental, de modo a subsidiar a manutenção dos empregos. Será esta a solução? Em 2008, Bush e Obama pelo menos tinham como desculpa a maior recessão depois da Grande Depressão. Hoje, pelo contrário, os EUA vivem o que podemos chamar de pleno emprego. Faz sentido subsidiar empregos em um cenário de pleno emprego?

Talvez Trump esteja esperando que a GM rasgue dinheiro em nome de um sentimento de gratidão pelo país. A GM deve achar que o melhor retorno para o país é preservar sua própria saúde financeira. É uma questão de ponto de vista.

Ninguém aqui está negando o drama humano por trás de cada emprego perdido. O desemprego é sempre uma tragédia familiar. Mas não tenha dúvida: um emprego mantido artificialmente hoje significa mais desemprego no futuro, porque a economia se vinga quando fatores de produção são utilizados de maneira pouco produtiva. O Brasil deveria servir de exemplo: seguidos governos com cunho marcadamente social não conseguiram evitar taxas de desemprego muito superiores às dos EUA, país dos desalmados capitalistas.

O funcionário da fábrica da GM de Ohio é o típico eleitor de Trump. Ao buscar agradar sua base eleitoral, defendendo empregos que, em última análise, não têm mais sentido econômico, Trump mina os próprios fundamentos do capitalismo que tanto diz defender.

A utilidade da autonomia do BC

Imagine se Temer começasse a fazer comentários sobre a política monetária. Seria um Deus nos acuda! Mesmo Dilma, apesar de sua merecida fama de intervencionista, sempre teve muito cuidado com suas declarações em relação à atuação do Copom.

Mas Trump pode falar o que quiser. Pode falar porque o BC americano tem autonomia formal em relação ao governante de plantão. Seus diretores têm mandatos fixos, e só saem se quiserem. Além disso, o Fed tem algo que nenhuma legislação supre: credibilidade de mais de 100 anos de atuação independente.

Aqui, mesmo Dilma não fazendo declarações bombásticas como as de Trump, sempre ficou a desconfiança de que Tombini era apenas o executor da política monetária decidida no Palácio do Planalto. Nada mais natural, em um país onde o presidente da república, segundo a tradição certa vez verbalizada por Costa e Silva, acha-se o guardião último da moeda.

Claro que Trump não é um cidadão qualquer, e deveria cuidar melhor do que fala. Mesmo porque, pode estar dando a entender que vai usar de seu poder para contrapor a política restritiva do Fed, através de incentivos fiscais, o que seria um desastre.

Mas a sua fala é um bom exemplo de quão útil pode ser a autonomia formal do Banco Central em um país como o Brasil. Ainda mais com a perspectiva da eleição de um Bolsonaro, que tem toda a pinta de que vai se achar o guardião último da moeda, e que, assim como Trump, não tem papas na língua.

O cheiro de napalm pela manhã

O cheiro de napalm pela manhã – Folha de SP

O eleitor vota no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos – João Pereira Coutinho

Em 2016, pouco antes da eleição de Donald Trump, dizia-me um colega universitário: “Detesto Trump. Mas, se eu fosse americano, teria votado nele”.

Caí da cadeira. Ou quase. Ele explicou melhor: “Votaria nele só pelo prazer de criar confusão”. Registrei.

A partir daquele dia, nunca mais levei a sério as explicações clássicas para o chamado “populismo”. Sim, a crise econômica tem a sua importância. O desemprego também. E o medo do crime e da imigração irrestrita ajudam a festa.

Mas existe algo de infantil, de inconscientemente infantil, no eleitorado que gosta de votar no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos.

É o momento “Apocalypse Now”, em homenagem ao coronel do filme que amava o cheiro de napalm pela manhã. Há muitos eleitores que votam como votam só para sentir esse cheiro de vitória.

Um simples palpite meu? Longe disso. Li recentemente um estudo publicado no Journal of Social and Political Psychology (ver pormenores técnicos no fim) no qual os pesquisadores avaliaram o impacto do “politicamente correto” na vitória de Trump. Por “politicamente correto”, entenda-se: a imposição de restrições comunicacionais para não ofender grupos, minorias etc.

Os autores concluem que o “politicamente correto” tem um impacto positivo no curto prazo: a “moralização” do discurso faz com que a maioria se adapte às expectativas da sociedade. Exemplo: “Trump? Que horror!” E depois vem a longa lista de vícios do homem (racismo, homofobia, misoginia, mau gosto capilar etc.).

O problema é que o “politicamente correto” tem resultados desastrosos no longo prazo. Isso se deve a uma reação emocional dos eleitores: cansados das restrições impostas pelos sacerdotes do “politicamente correto”, os indivíduos reclamam a sua liberdade e votam no candidato que nunca se submeteu aos ditames da polidez. Mesmo que esse voto seja contrário aos melhores interesses da democracia.

Por outras palavras: Donald Trump não foi eleito apesar dos seus defeitos. Ele foi eleito por causa deles. Quando o presidente americano afirmava, com típica soberba, que podia matar qualquer pessoa na 5ª Avenida e ser eleito na mesma, ele não exagerava.

Aliás, podemos dizer mais: quanto maiores os defeitos, maior o apoio. Isso explica o motivo por que Trump, depois de eleito, não adotou uma postura mais “presidencial”.

Essa metamorfose seria o suicídio de uma carreira triunfal. Seria tão absurdo como Coutinho (o jogador de futebol, não eu) dar um tiro no próprio pé.

Mas não é apenas o “politicamente correto” que leva muitos eleitores a experimentar o cheiro de napalm pela manhã. Desconfio que a “sinalização da virtude” também tem um papel relevante.

A primeira vez que encontrei essa expressão foi num artigo de James Bartholomew para a revista The Spectator, corria 2015. Argumentava o autor que “ser virtuoso” é diferente de mostrar aos outros que somos virtuosos.

Pessoas virtuosas nunca publicitam as suas qualidades. E a virtude, nelas, exerce-se por meio de gestos anônimos e até sacrificiais (cuidar de um familiar doente; alienar uma carreira de sucesso para ajudar os mais pobres etc.).

A “sinalização da virtude” é uma corrupção da verdadeira virtude. É mera exibição de “bons sentimentos” para ganhar aplausos (ou likes).

Para usar a linguagem da economia, a “sinalização da virtude” procura transformar a virtude em “bem posicional” —algo que nos distingue dos demais e que nos traz vantagens (simbólicas, sociais, econômicas etc.).

O problema, argumentava Bartholomew, é que os “bens posicionais” despertam a concorrência e levam os outros a tentar suplantar o que era exclusivo em nós.

Exemplo: aquela estrela milionária de Hollywood não está propriamente aterrorizada com Trump. Mas ela sente necessidade de sinalizar o seu horror pelo presidente, em termos cada vez mais elaborados, para se promover como defensora do “bem”.

Esse moralismo militante, onipresente e sufocante cria a atmosfera perfeita para que o napalm seja jogado na cara do establishment.

Dizem os eruditos que o século 21 será o século dos populismos. Talvez tenham razão. Mas, para explicar o fenômeno, não bastam as teorias habituais.

É preciso mergulhar na psicologia das massas para encontrar um velho ditado: na política, como na vida, há momentos em que é preferível perder um amigo a perder a piada.

P.S.: O estudo citado intitula-se “Donald Trump as a Cultural Revolt Against Perceived Communication Restriction: Priming Political Correctness Norms Causes More Trump Support”, de autoria de Lucian Gideon Conway III, Meredith A. Repkea e Shannon C. Houck (Journal of Social and Political Psychology, 2017, Vol. 5 (1), págs. 244-259)

João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.