Ontem recebi um presente de aniversário inesperado: minha mãe me informou que havia passado no exame do Encceja – Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos. Trata-se de um exame que avalia o conhecimento da pessoa e, se uma nota mínima for atingida, o Ministério da Educação emite um certificado de conclusão do Ensino Fundamental ou do Ensino Médio, conforme o caso. Minha mãe só tinha o Fundamental, e prestou o Encceja para o Ensino Médio, tendo sido aprovada.
Já escrevi sobre minha mãe aqui, como ela nos inspirou, a mim e a meus irmãos, a adquirir o hábito da leitura, somente pelo exemplo. Apesar de não possuir educação formal, sempre tinha um livro na mão, e possuía a incrível habilidade de acompanhar a novela e ler ao mesmo tempo.
Agora com 77 anos de idade e o diploma do ensino médio nas mãos, minha mãe faz planos de fazer alguma faculdade. Está em dúvida entre História ou Filosofia.
Nas palavras dela, “se eu consegui passar, fico imaginando o nível de conhecimento do brasileiro médio”. Ela está se subestimando, claro, mas não está muito distante da realidade. De qualquer forma, minha mãe continua a ser uma inspiração para todos nós.
Em editorial, o Estadão comenta o fiasco das intitulações de ensino superior no Brasil, estampado nas notas do ENADE. Quase 30% dos alunos de ciências tecnológicas, administração, economia, direito e outras ciências humanas tiraram notas consideradas “ruins” ou “péssimas”. O diagnóstico do editorialista é de que é necessária uma reformulação do ensino superior. Eu já acho que o problema não tem nada a ver com o ensino superior. Se me permitem usar uma expressão chula, o buraco é bem mais embaixo.
A avaliação de alunos tem dois componentes: o conhecimento do aluno e o nível da prova. Se quase 30% não passaram no ENADE, mas, mesmo assim, se graduaram, isso significa que o sarrrafo das universidades é mais baixo que o do ENADE. O ENADE poderia mostrar resultados bem melhores se uma das seguintes duas coisas ocorresse: 1) a prova do ENADE fosse mais fácil ou 2) a exigência das universidades para que os alunos se graduassem fosse maior.
Se queremos excelência, a primeira alternativa, que é o pacto pela mediocridade, deveria ser descartada. Na segunda alternativa haveria menos graduandos, mas com notas mais altas, melhorando automaticamente a nota média do ENADE. O problema dessa alternativa é que esses 30% de alunos que tiveram notas ruins já pertencem aos 45% de alunos que ingressam no ensino superior e não desistem no meio do caminho, segundo o Mapa do Ensino Superior. Ou seja, descartar esses alunos significaria aumentar a evasão do ensino superior dos horríveis 55% atuais para escandalosos 70%.
Daí o meu diagnóstico de que o buraco é bem mais embaixo. É simplesmente utópico querer que as universidades desentortem um pepino que já vem torto do ensino médio e que, por sua vez, já vem torto do ensino fundamental. A verdade nua e crua é que grande parte dos brasileiros chega ao ensino superior analfabetos funcionais. A não ser que as faculdades cobrissem o currículo que deveria ter sido coberto nos ensinos fundamental e médio, não há muito o que fazer.
A nossa triste realidade é que há um pacto pela mediocridade em todo o sistema básico de ensino brasileiro, em que os alunos vão passando de ano tão facilmente quanto viram a folhinha, e o resultado na ponta é que, na real, 70% dos ingressantes no ensino superior sequer deveriam estar lá.
Não tenho os dados, mas sou capaz de apostar que os alunos que tiveram nota excelente no ENADE contaram com as melhores escolas nos ensinos fundamental e médio, tendo a faculdade uma influência marginal nessa nota. O próprio vestibular já é uma peneira que vai definir as melhores universidades, por selecionar os alunos que tiveram educação básica decente. As tão celebradas cotas em universidades públicas também selecionam os melhores alunos dentre os cotistas, normalmente vindos de escolas técnicas ou bolsões isolados de excelência no ensino básico. Comemoramos que metade dos alunos em universidades públicas vem de escolas públicas, quando essas escolas públicas capazes de colocar alunos em universidades públicas, mesmo com cotas, são a exceção, não a regra no Brasil.
A regra é que 70% dos alunos que ingressam no ensino superior vem de escolas públicas de péssima qualidade. Essa é a tragédia que continua o seu desenrolar trágico nos porões do ensino fundamental.
O exame internacional PIRLS, que mede compreensão de textos, foi aplicado pela primeira vez no Brasil. Ficamos na rabeira. Nenhuma surpresa, dados os resultados do PISA dos últimos 20 anos.
Não sou estudioso do assunto e nem trabalho na área. Portanto, não vou aqui chutar diagnósticos e soluções para o problema. Há muitos e bons especialistas por aí arrotando o que deveria ser feito. Meu particular ponto de vista é fruto da observação da realidade à minha volta em quase 6 décadas de vida. A respeito desse problema meu diagnóstico é o seguinte: a sociedade brasileira não está preparada para o sacrifício exigido para galgar o próximo nível. Minha solução: não há solução.
Para ilustrar meu ponto de vista, vou começar com um amigo meu, doutor em administração pela FEA, que foi fazer um posdoc na NYU. Isso faz mais de 20 anos, tanto que ele foi testemunha ocular do 9/11. Perguntei se ele pretendia continuar por lá. Sua resposta: nem a pau, não tem como competir com os caras aqui. Com isso ele queria dizer que o nível de exigência era acima daquilo que ele estava disposto a atingir.
Desde a mais tenra idade, somos condicionados a nos esforçar, mas não muito. Hoje é raro, raríssimo até, ver alunos repetindo de ano. A cultura da promoção automática impera, tanto no ensino público quanto no particular. Neste último, então, nem se fala. Experimente um colégio sugerir que vai repetir um aluno de ano, e verá pais furibundos indo até a escola para tirar satisfações. Se o aluno está indo mal, a culpa é do professor, da escola, do sistema, nunca do aluno.
Já contei esse caso aqui, mas vale a pena contar de novo dentro do contexto. Em uma viagem a trabalho para a Coreia, tive uma reunião em um grande banco internacional. Em determinado momento, nosso interlocutor fez um comentário lateral, dizendo que uma lei acabara de ser aprovada, proibindo que alunos ficassem nas escolas depois das 22:00. Eu pedi para ele repetir o horário, vai que o inglês coreano dele não tivesse caído bem nos meus ouvidos brasileiros. Sim, era isso mesmo, 22:00. Pouco exigente? Nessa mesma linha, lembro de um amigo que foi morar na China durante alguns anos pela empresa. Depois que eles voltaram, a esposa nos contou a experiência do filho em uma escolinha de natação, de como o professor era rude com os alunos, exigindo deles uma performance de atletas olímpicos, quando o objetivo era só que o filho aprendesse a nadar. Como eu disse, não estamos preparados para a exigência que o alto rendimento exige.
Isso não acontece somente na área acadêmica. Quando se tem clientes estrangeiros, nota-se o nível de exigência nos detalhes, vários degraus acima da dos clientes locais. Não se trata de preguiça ou de pouca formação. Trata-se de um estado de espírito: nós, como sociedade, simplesmente achamos que o sacrifico não vale a pena. Contentamo-nos em não sermos os últimos da turma. Acho que De Gaulle se referia a isso quando afirmou que o Brasil não era um país sério.
Seria esta uma visão pessimista da realidade? Não necessariamente. Quando se tem metas baixas, ou até mesmo não se as tem, é mais fácil alcançá-las. Os medíocres também podem ser felizes.
Todo dia pela manhã, caminho por cerca de uma hora pelo bairro do Jardim Europa, o mais rico de São Paulo. Não é incomum ser parado na rua por alguém pedindo informações. Hoje foram duas vezes.
Na primeira, um pedreiro mostrou-me um endereço em seu celular e perguntou-me como chegar naquela rua. Como sempre faço nessas ocasiões, saquei do meu próprio celular, coloquei o endereço no Google Maps e orientei o senhor da melhor maneira que pude. Na segunda, um rapaz alto, de chinelos, simplesmente me perguntou, quase sem parar de caminhar: “Posto Ipiranga?”. Parei, sem entender direito o que ele queria dizer com aquilo (seria uma viúva do Guedes?), e então ele voltou à carga: “o posto Ipiranga é para esse lado?”. Não conhecia nenhum posto Ipiranga na região, não tinha como ajudá-lo, simplesmente dei de ombros e segui meu caminho.
Normalmente, os que me param na rua são, provavelmente, faxineiras e pedreiros que vão começar serviços em casas novas no bairro. Muitos (a maioria), me mostram o endereço em um pedaço de papel ou no celular, uma clara demonstração de que sequer sabem ler, quanto mais usar o Google Maps para se orientar. Esta limitação não os impede de trabalhar e batalhar por seu pão, mas é difícil imaginar como poderiam sair do seu estado de pobreza, dado que seu único instrumento de trabalho é a força de seus braços.
Desde o “tudo pelo social” de Sarney, passando pelo enfoque no social dado pelos governos tucanos e petistas, até a “Pátria Educadora” do governo Dilma, o discurso tem sido o da inclusão de todos pela educação. Talvez essas pessoas que me param no bairro mais rico da cidade sejam de gerações passadas, que não foram atingidas pelas ações sociais dos governos da Nova República. Houve avanços inegáveis neste período, como a inclusão de todas as crianças na escola e o aumento dos anos de escolaridade. É muito, mas ainda é pouco.
Escrevo ainda impactado pela imagem do jovem que só conseguia balbuciar “posto Ipiranga”. Qual o seu futuro possível? “Educação” é um mantra entoado por qualquer governo. A baixíssima produtividade da mão de obra brasileira é a prova cabal de que se trata de um discurso vazio.
O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Brasileira) de 2021 foi divulgado em setembro. O Ceará está no pelotão da frente, com nota 4,4, ao lado de Pernambuco e São Paulo. Só perde para Paraná (4,6) e Goiás (4,5). É notória a experiência de Sobral, replicada em todo o estado, e que permite ao Ceará ombrear com estados muito mais ricos em efetividade do aprendizado no nível mais básico.
A nomeação de Camilo Santana e, principalmente, Izolda Cela, para o ministério da educação, dois nomes envolvidos na experiência educacional do Ceará, foi elogiada por think tanks respeitados, como o Centro de Políticas Educacionais da FGV e o Instituto Todos Pela Educação. Aliás, a crítica à nomeação de ambos veio por parte de setores mais à esquerda, que criticam justamente a parceria de ambos com institutos desse tipo.
Mas o melhor selo de qualidade dessas indicações veio por parte de um professor aposentado da Federal do Ceará, que criticou o fato de que o Ceará apenas “treina os alunos para irem bem no IDEB”, ao invés de receberem uma educação que permita “acesso à cultura e à vida cidadã”. Quer melhor testemunho de que o Ceará está no caminho certo?
O futuro governo Lula tem recebido aqui as mais duras críticas com relação às suas escolhas na área econômica. Mas é preciso elogiar quando fazem algo certo, como parece ser o caso. O último ministro da educação decente que tivemos foi José Mendonça Filho, no governo Temer, que patrocinou uma ampla reforma do ensino médio. Depois disso, o governo Bolsonaro parecia mais preocupado em fomentar colegios cívico-militares do que formular politicas públicas para a área. Sem contar que alcançou a façanha de ter nada menos que 5 ministros da educação em 4 anos, o que, por si só, já indica o caos em que se transformou o setor no governo que ora vai se encerrando.
O governo federal tem diretamente sob sua tutela apenas as universidades federais e as escolas técnicas federais. Mas é também responsável pelas grandes políticas públicas que serão seguidas pelas escolas estaduais e municipais. Serão essas políticas públicas, seguidas com perseverança ao longo de anos, que permitirão que a educação básica alcance os seus objetivos. É o que a experiência do Ceará parece demonstrar.
Reportagem de hoje no Valor destaca levantamento feito pela LCA Consultores com base na PNAD, e que indica que apenas um terço dos trabalhadores brasileiros recebe mais de 2 salários mínimos. Portanto, saiba que, se você ganha mais de R$ 2.500 por mês, você pertence ao terço mais bem remunerado do Brasil.
O diagnóstico unânime dos especialistas entrevistados é de que a produtividade da mão de obra brasileira não permite remuneração maior. Ou seja, o valor agregado pelo trabalhador brasileiro, em média, é baixo, não permitindo uma remuneração melhor. Lembrando que, para pagar um salário, o empresário precisa vender um produto ou serviço. E as pessoas estarão dispostas a comprar esse produto ou serviço se virem nele algum valor que compense o preço. Se o valor agregado é baixo, o preço será mais baixo e os salários serão mais baixos.
Para aumentar a produtividade do trabalhador brasileiro só há dois caminhos, complementares entre si: investimento em automação e processos e na qualificação da mão de obra. A reportagem aborda esse segundo ponto, que é uma especie de unanimidade nacional.
No entanto, gostaria de chamar a atenção para o caso do garçom destacado no final da matéria. Ganhando pouco mais de um salário mínimo, o garçom decidiu matricular o seu filho em uma escola particular. O exemplo de dedicação e visão de futuro é louvável, mas é outro ponto que me chamou a atenção: por que raios esse pai sentiu necessidade de pagar uma escola para o seu filho, se tem à disposição uma escola pública “de graça”?
A resposta é óbvia: a qualidade percebida. Certo ou errado, esse pai viu na escola particular mais qualidade do que na escola pública, a ponto de abrir mão de um benefício que o Estado lhe confere. Assim como as pessoas, quando podem, pagam um plano de saúde para não dependerem do SUS, na educação, pagam uma escola particular para não dependerem do ensino público.
O que é pior: muito provavelmente, a qualidade de uma escola barata de bairro não é substancialmente maior do que a de uma escola pública, se é que é maior. A diferença é que os professores não faltam, não tem greve e, principalmente, o pai é um cliente e tem com quem reclamar.
Mas, da forma como está a estrutura dos vestibulares das universidades públicas hoje, esse garoto estará em último lugar na fila se não conseguir entrar através de alguma cota racial. Isso porque as cotas sociais exigem que o candidato tenha cursado ensino fundamental e médio na escola pública. Portanto, o filho do garçom disputará vaga com jovens que cursaram escolas muitas vezes mais caras. Qual a chance? O mais provável é que este garoto tenha que pagar uma faculdade particular barata também de baixa qualidade, o mesmo que seu par da escola pública que não conseguiu entrar pelas cotas raciais/sociais. A sua produtividade continuará baixa.
Falei acima que educação é uma espécie de unanimidade nacional. Dilma Rousseff chegou a escolher como lema de seu governo “Brasil, Pátria Educadora”. Por que, então, com todo o investimento feito no setor (que não é pouco), não saímos do lugar? Por que é tão difícil elevar a qualidade do nosso ensino básico público? Com a palavra, os especialistas.
A Economist publicou uma pequena matéria sobre os efeitos do fechamento de escolas na América Latina.
Fui pesquisar algum dado público sobre fechamento de escolas no mundo. A Unesco mantém uma base de dados a respeito. O gráfico abaixo indica o número de semanas durante as quais as escolas de uma amostra de países ficaram parcial ou totalmente fechadas.
“Totalmente fechadas” significa todas as escolas do país fechadas 100%, enquanto “parcialmente fechadas” pode significar uma parte das escolas do país fechadas, ou 100% das escolas parcialmente fechadas, ou uma combinação dos dois. Como o período analisado vai de março de 2020 a outubro de 2021, temos cerca de 84 semanas. Portanto, este seria o número máximo de semanas em que as escolas poderiam permanecer fechadas.
Podemos observar que o Brasil está entre os países que mais tempo fechou suas escolas, total ou parcialmente. Está acompanhado basicamente de países da América Latina, daí a preocupação demonstrada pela reportagem da Economist com a região.
Mesmo países mais desenvolvidos, que aparecem próximos do Brasil, como Coreia do Sul e EUA, apresentam um número muito menor de semanas com as escolas 100% fechadas no país inteiro, indicando que fizeram um trabalho mais inteligente de seleção das escolas que fechariam. Os países da Europa, por outro lado, mantiveram suas escolas fechadas, em média, 28,6 semanas, sendo 12,2 semanas fechadas totalmente e 16,4 semanas fechadas parcialmente. Estes números para o Brasil são 78, 38 e 40 semanas, respectivamente. Ou seja, mantivemos as escolas totalmente fechadas o triplo da média europeia, e parcialmente fechadas 2,5 vezes mais que os países da Europa.
O artigo da Economist termina de maneira melancólica. Vou aqui traduzir o último parágrafo:
“As desigualdades aumentarão. Crianças pobres, com conexões de internet fracas ou inexistentes, sofreram desproporcionalmente. Antes da pandemia, os jovens de 15 anos na América Latina estavam, em média, três anos atrás de seus colegas da OCDE em leitura, matemática e ciências, de acordo com os testes internacionais do Pisa. Eles agora vão ficar mais para trás. Eles podem perguntar por que políticos, professores e pais não pressionaram para que as escolas reabrissem mais cedo”.
E, antes que coloquem 100% da culpa na turma do “fique em casa”, vale observar que este foi um fenômeno muito latino-americano, e o “fique em casa” foi global, com algumas poucas exceções, como a Suécia. Australia e Nova Zelândia, para não falar de China e Japão, tiveram políticas draconianas de isolamento. Nem por isso suas escolas ficaram fechadas durante tanto tempo, pelo contrário.
O problema, no meu entender, foi o velho descaso com a educação, que faz parte do DNA latino-americano. A pergunta sugerida pela Economist tem a mesma resposta à pergunta de porque a educação na América Latina é, em geral, uma lástima: políticos, professores e pais não estão realmente preocupados com isso.
No início da década passada, fui ao Japão algumas vezes profissionalmente. Uma coisa que me impressionou foi ver crianças pequenas (estimo com 7/8 anos de idade) andando desacompanhadas no metrô de Tóquio. Uniformizadas, estavam se dirigindo à escola. Anexei algumas fotos que eu mesmo tirei. Lembrei disso ao ler a notícia de que a Netflix vai reproduzir um reality show japonês que trata justamente desse assunto, a autonomia das crianças japonesas.
Em contraste, no mesmo jornal, reportagem sobre a “antiga” região da cracolândia, no centro de São Paulo, colhe depoimentos de moradores que reconquistaram o espaço. Um deles conta que agora pode deixar seu filho de 11 anos ir sozinho até a escola, que fica a UMA QUADRA da sua casa. Antes, ele precisava acompanhá-lo.
A surpreendente autonomia das crianças japonesas é uma questão cultural sim. Mas não se pode abstrair do fato de que vivem em uma sociedade muito mais segura, em que se espera que as crianças serão cuidadas e não abusadas pelos estranhos. Eu, particularmente, procurei ensinar meus filhos desde cedo a andarem sozinhos pela rua e a usarem o transporte público. Mas isso quando já estavam entrando na adolescência, não quando ainda eram crianças. Penso que deve haver um equilíbrio entre a neura da segurança (que é um problema real) e o dever de criar adultos autônomos. Em uma sociedade como a brasileira, trata-se de um equilíbrio difícil, mas necessário.
A manchete é bombástica: nada menos do que 66% foi o aumento de crianças entre 6 e 7 anos de idade que não são alfabetizadas, entre 2019 e 2021.
No entanto, o que realmente me chamou a atenção não foi o desastre causado pelas escolas fechadas durante dois anos, um verdadeiro crime. O que deveria saltar aos olhos de qualquer um, mas nem sequer foi tema da reportagem, é que entre 25% e 30% das crianças brasileiras entre 6 e 7 anos de idade, a depender do ano, não sabem ler e escrever. Este número saltou para 40% durante a pandemia, mas a verdadeira tragédia é o número inicial, aparentemente tomado como coisa normal. Não é.
Ao menos um quarto das crianças brasileiras chegam aos 7 anos de idade analfabetas. Esse início pouco promissor irá cobrando o seu pedágio nos anos seguintes, pois ao invés de avançar nos conteúdos, a escola vai precisar recuperar o atraso. No final da linha, teremos jovens que mal sabem interpretar um texto, quanto mais se adaptar a um mercado de trabalho que cada vez mais exige preparação.
Aprendi a ler e escrever com 6 anos de idade, no antigo pré-primário, hoje 1o ano do fundamental. Era uma escola estadual. Na verdade, já tinha aprendido muita coisa em casa, naturalmente, com meus pais. Tive a sorte de nascer em um lar em que minha mãe gostava de ler e incentivava os filhos a lerem. Coloca-se um peso grande na responsabilização do sistema de ensino, mas arriscaria dizer que uma parte importante desse fiasco educacional começa em casa, onde os filhos não herdam dos pais o que os próprios pais não tiveram, em um círculo vicioso difícil de quebrar. A nossa miséria é mais complexa.
Já contei aqui a história de minha filha que, com alguns colegas de colegial, teve a ideia de dar aulas de reforço em uma escola da periferia, para alunos que quisessem prestar o vestibulinho para entrar em alguma escola técnica, como a que ela estava cursando. Conseguiram o apoio do diretor de uma escola e, qual não foi sua surpresa, quando viu que apenas meia dúzia de gatos pingados se interessou pela oferta de aulas aos sábados. Essas crianças certamente tiveram o incentivo de seus pais, coisa que deve ter faltado à maioria.
Nunca se teve tanto dinheiro aplicado na educação, o Fundeb está fora do teto de gastos e, mesmo assim, o percentual de crianças analfabetas continua o mesmo nos últimos 10 anos, tendo piorado durante a pandemia. Os analistas repetem a obviedade de que “precisamos reduzir as desigualdades”. A educação é vista justamente como um passaporte para a redução dessas desigualdades, mas o que se vê é que a educação reproduz essas mesmas desigualdades. Se, apesar de todo o dinheiro investido, a educação continua insuportavelmente desigual, talvez precisemos de uma nova fórmula para endereçar o problema.