O professor Rodrigo Zeidan publicou um curto artigo na Folha, citando uma série de artigos acadêmicos que embasariam o desastre do governo Bolsonaro na administração da pandemia no país.
À parte o tom virulento do artigo, que o torna mais um panfleto partidário do que uma análise fria da situação, as citações do professor Zeidan são de difícil localização. Quer dizer, deve ser minha falta de jeito para procurar artigos acadêmicos. Dos artigos citados, só consegui achar um até o momento, More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic, de Ajzenman, Cavalcanti, Da Mata, analisando o efeito do discurso do presidente Bolsonaro em 15/03/2020 sobre o distanciamento social, achando um menor distanciamento após o discurso nos municípios onde Bolsonaro havia recebido mais votos.
Eu já conhecia este paper, e o seu problema, como todos os outros citados pelo autor do artigo, é ligar este fato (falta de distanciamento ou discursos do presidente) com o real aumento dos óbitos. Há, mais entre os bolsonaristas do que em outros grupos da população, dúvidas sobre a real eficácia do distanciamento social, do uso de máscaras e de vacinas como medidas para o combate à transmissão do vírus da Covid-19. Ligar o Bolsonarismo à não adoção de distanciamento social, ou da máscara ou de vacinas, portanto, é chover no molhado. O que realmente importa, no final do dia, é se morreram mais pessoas por conta deste fato. Ainda não vi nenhum artigo que fizesse essa ligação direta. Estamos em julho de 2022, já nos estertores da pandemia, e temos dados mais do que suficientes para fazer este tipo de estudo. Resolvi então, eu mesmo, armado de uma poderosa planilha Excel, tentar concluir algo com os dados até o momento.
A pergunta que este despretensioso artigo tem o objetivo de responder é a seguinte: teriam os bolsonaristas chegado a óbito em maior número do que a média da população durante a pandemia? Notem que não vamos entrar no mérito sobre medidas de prevenção, vacinas, discursos do presidente. Nada disso. A coisa é a mais simples possível: analisando o perfil dos óbitos, é possível tirar alguma conclusão?
Metodologia
Para identificar os bolsonaristas, usarei a mesma metodologia do paper citado acima: verificarei, município por município, a votação de Bolsonaro. Temos dados de óbitos por município, temos as suas populações e temos a votação. Basta procurar identificar se há alguma correlação positiva entre essas votações e o número de óbitos por Covid-19 nesses municípios.
Vamos a um exemplo numérico teórico para entender o conceito. Digamos que tenhamos 3 municípios com os seguintes números de óbitos acumulados até o momento (por milhão de habitantes):
- Município A: 2.000
- Município B: 2.375
- Município C: 3.625
Agora, vamos verificar a votação dos 4 principais candidatos nestes 3 municípios:
Para compatibilizar esta tabela de votação com os óbitos dos municípios, precisamos estimar coeficientes que expliquem os óbitos (nossa variável dependente) com as votações recebidas pelos candidatos (nossas variáveis independentes). Podemos representar essa estimação pela equação a seguir:
Óbitos = a(votos Ciro) + b(votos Alckmin) + c(votos Haddad) + d(votos Bolsonaro)
As nossas incógnitas são os coeficientes a, b, c e d, que serão estimadas por uma regressão linear (mínimos quadrados) no Excel. Em nosso exemplo, para que a conta feche, os valores dos coeficientes devem ser os seguintes: a=30, b=15, c=5 e d=50. Veja:
- Município A: 30 x 20 + 15 x 10 + 5 x 50 + 50 x 20 = 2.000 óbitos
- Município B: 30 x 15 + 15 x 15 + 5 x 40 + 50 x 30 = 2.375 óbitos
- Município C: 30 x 15 + 15 x 5 + 5 x 20 + 50 x 60 = 3.625 óbitos
Note que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro representou 50 óbitos/milhão, enquanto cada ponto percentual de voto em Haddad representou apenas 5 óbitos/milhão. Este é apenas um exemplo teórico, montado para a conta dar exata. Mas veremos que seus resultados não são somente teóricos.
Base de Dados
Para fazer esse exercício, vamos usar a base de dados da Covid-19 do Ministério da Saúde e, para a votação nos municípios, vamos usar a base de dados do TSE. Além disso, como vamos controlar pelo PIB/Capita dos municípios, vamos usar também a base de dados do IBGE.
Resultados
A primeira regressão, usando o total de óbitos de cada município e a votação dos 4 principais candidatos no 1º turno, resultou nos seguintes coeficientes (aproximados):
- Ciro: 30
- Alckmin: 16
- Haddad: 7
- Bolsonaro: 48
Rodei a regressão forçando o intercepto a zero, para repetir, da maneira mais fidedigna possível, o exemplo dado acima.
Para os econometristas de plantão, estes resultados têm p-value próximo de zero. Ou seja, são robustos, dentro dos limites do método utilizado. No final, vou sugerir alguns ajustes que não faço aqui por falta de instrumentos.
O resultado é muito próximo quando se controla pelo PIB/capita dos municípios. Tomei esse cuidado porque houve claramente uma clivagem de renda nas eleições de 2018, e talvez a regressão pudesse estar contaminada por esta clivagem.
Podemos observar que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro resultou em 48 óbitos durante a pandemia, contra apenas 7 no caso de votos em Haddad. Ou, cada ponto percentual de votos em Bolsonaro significou 7 vezes mais óbitos, em cada município, do que cada ponto percentual de voto em Haddad.
Vamos à interpretação correta desse resultado: na média, considerando todos os municípios do Brasil, aqueles que tiveram mais óbitos foram aqueles com maior votação em Bolsonaro. O número em si NÃO SIGNIFICA que as pessoas morreram PORQUE votaram em Bolsonaro. Não há aqui nenhuma relação de causalidade, há apenas uma correlação. Vamos, mais à frente, gastar um tempo investigando possíveis interpretações para este resultado. Antes disso, vamos explorar algumas variações desse resultado.
Uma outra forma de vermos o mesmo resultado é rodarmos duas regressões separadas, uma com a votação de Bolsonaro e outra com a de Haddad, obteremos os seguintes resultados:
Agora não forçamos o intercepto a zero. Os números acima representam o seguinte: no caso da votação de Bolsonaro, o número-base de óbitos, na média, começa em 1.038/milhão, e cada ponto de voto em Bolsonaro significa 38 óbitos/milhão adicionais. Já no caso de Haddad, o número de óbitos começa em 3.907/milhão, e diminui em 34 óbitos/milhão a cada ponto percentual de voto em Haddad.
É interessante fazer recortes temporais e geográficos neste número.
Para um recorte temporal, segmentei esse coeficiente de Bolsonaro em semestres, conforme a tabela a seguir:
Podemos observar que a influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos começa a ganhar força a partir de 2021. Para entender melhor, vamos comparar com a segmentação temporal do número de óbitos na pandemia.
Na última coluna da tabela, podemos observar que, em 2020, ocorreu 29% do total de óbitos até o momento na pandemia. No entanto, apenas 13% dos óbitos relacionados com o voto em Bolsonaro ocorreu em 2020. Algo começa a ocorrer a partir de 2021 para acelerar esse processo. E esse algo, na minha opinião, é a vacina. Mas vamos deixar as conclusões para a sessão de conclusões.
Do ponto de vista geográfico, também é interessante observar que os números de Bolsonaro diferem de estado para estado. É o que podemos ver na tabela abaixo, em que apresentamos o coeficiente de Bolsonaro DENTRO de cada estado:
Observe que em estados como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, o coeficiente do Bolsonaro é muito menor que o da média nacional, indicando que, nesses estados, não houve tanta influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos. Por outro lado, em estados como Goiás, Minas Gerais, Ceará e Bahia, o coeficiente é bem maior, indicando uma influência maior do voto no número de óbitos. Difícil explicar por que isso acontece. Tentei fazer alguma correlação com a votação de Bolsonaro em cada estado (terceira coluna) ou o desvio-padrão da votação entre os municípios do estado (quarta coluna), mas não há como se concluir nada.
Conclusões
Todos os estudos citados pelo professor Rodrigo Zeidan no início deste post procuram, de alguma maneira, ligar o presidente Bolsonaro a comportamentos supostamente deletérios para o controle da pandemia. Na minha opinião, trata-se de uma abordagem fraca, por dois motivos:
- Apesar de praticamente haver unanimidade científica em relação à efetividade de certos comportamentos (distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo) para evitar a piora das condições epidemiológicas, esta não é uma unanimidade social. Há, principalmente entre os bolsonaristas, mas não somente entre eles, sérias dúvidas sobre este tipo de conduta. Relacionar a falta dessas condutas ao aumento de óbitos é um passo não aceito por todos.
- Ligar as falas e atitudes do presidente ao comportamento de seus eleitores é algo que necessita de um aparato econométrico de difícil obtenção. O paper citado no início tem o seu mérito nesse sentido, mas ainda se trata de um pre-print sem revisão de pares, mesmo dois anos depois de sua primeira publicação, o que demonstra a dificuldade.
Por tudo isso, acho muito mais simples simplesmente ligar o número de óbitos diretamente à votação de Bolsonaro (e dos outros candidatos) nas eleições. Essa metodologia ultrapassa as duas dificuldades colocadas acima:
- Estamos analisando diretamente o número de óbitos por Covid-19, independentemente do que levou à sua ocorrência, se foi falta de distanciamento, máscara, vacina, ou nenhuma dessas hipóteses. A morte é o resultado menos desejado por todos, bolsonaristas ou não, de modo que se trata de algo inconteste. E, com relação ao sempre citado problema da sub ou supernotificação (a depender de que lado se está), isto é irrelevante para este estudo, dado que estamos comparando Brasil com Brasil. A não ser que suponhamos que cidades mais bolsonaristas superestimaram o número de óbitos, o que não orna com a narrativa geral do próprio presidente e seus seguidores.
- Não precisamos estabelecer relação causal entre as falas e atitudes do presidente com certos comportamentos de seus seguidores. Não importa o comportamento, o fato objetivo é que morreram mais pessoas em municípios que votaram mais em Bolsonaro.
É neste ponto que vem a parte mais importante deste post. Preste atenção.
Até o momento, o que fizemos foi um exercício de econometria básica. Não há, de maneira alguma, com base nesse exercício, como estabelecer relação de causalidade entre as falas e atitudes do presidente com o comportamento de seus eleitores. A única relação que se estabeleceu foi entre o voto em si e os óbitos posteriores. Pode ser que os eleitores de Bolsonaro sigam cegamente o que ele fala, mas há outra hipótese.
Em econometria, chamamos de variável oculta uma que não conseguimos medir, mas que influencia os resultados das variáveis que estamos medindo. Assim, encontramos uma relação entre as variáveis que estamos medindo, mas uma não causa necessariamente a outra. Há uma variável oculta que influencia o comportamento das duas. A hipótese aqui é que o eleitor de Bolsonaro escolheu Bolsonaro pelo mesmo motivo que escolheu adotar outros comportamentos que, no final, levaram ao óbito mais pessoas durante a pandemia. Existe um mindset por trás dessas escolhas, uma mistura, talvez (e aqui, assumo, já estou extrapolando as linhas desse pequeno estudo) de teorias da conspiração, desconfiança da mídia tradicional e da ordem institucional que tão bem caracterizam Bolsonaro e seu entorno. O ponto é que não precisava Bolsonaro ter falado em máscaras, distanciamento social ou vacinas. Estes foram temas recorrentes para este tipo de mindset, e Bolsonaro, digamos, foi apenas um catalisador dessa corrente. Serviu como um reforço pelo cargo que ocupa, mas longe de ser a origem do problema.
Enquanto se tratava de máscaras e distanciamento, a coisa estava mais para folclore do que algo realmente decisivo para os rumos da pandemia. O jogo começou a virar com a vacina. Aqui temos o erro fundamental de Bolsonaro e do bolsonarismo.
Como vimos na tabela 3 acima, os coeficientes que relacionam a votação de Bolsonaro aos óbitos são negligíveis em 2020. Ou seja, aparentemente não houve, neste primeiro ano, realmente nenhuma influência de seu discurso sobre o que interessa, o número de óbitos. A partir de 2021, no entanto, a coisa muda de figura. E a grande virada chama-se VACINA.
Aqui não se trata somente do discurso do presidente, aquela história de “liberdade” e “não vamos obrigar ninguém a tomar uma vacina experimental”. É que esse discurso encontrou uma forma peculiar de ver o mundo por parte dos seus eleitores mais fieis. É possível que, entre os eleitores de Bolsonaro, esteja a maioria dos que se recusaram, no início, a tomar a vacina. Pelo menos, é o que se deduz dos números acima. Assim, o discurso do presidente não prejudicou o país como um todo, mas somente aqueles que já pensavam como o presidente.
Bolsonaro fez exatamente o que seus eleitores mais fiéis esperavam que ele fizesse. De uma coisa não se pode acusar o presidente, de não ser fiel ao seu modo de pensar o mundo, compartilhado com seus eleitores. O triste é que, no caso das vacinas, isso aparentemente custou vidas.
Um esclarecimento final: quando comecei o exercício acima, não sabia o que ia encontrar. Estabeleci um compromisso comigo mesmo de publicar o que encontrasse, fosse o que fosse. Aí está.
Post Scriptum
Reconheço que este é um estudo limitado, produzido com as ferramentas disponíveis no Excel. Seria interessante que alguém que entenda de econometria pudesse pegar esses dados e fazer algo mais refinado em um software dedicado, tomando cuidados técnicos como efeitos fixos de municípios e estados, além de usar outras metodologias que não o de mínimos quadrados, que não é das mais robustas.