O que têm em comum os primeiros ministros Viktor Orbán, Boris Johnson e Benjamin Netanyahu com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Os quatro representam a direita em seus países. O que os distingue? Os líderes de Hungria, Inglaterra e Israel fizeram questão de liderar pelo exemplo as campanhas de vacinação em seus países. Bolsonaro, não.
De nada adiantou dizer que “quem quis se vacinar teve vacina”, o que é verdade. Disponibilizar vacinas é muito, mas longe de ser o suficiente. Um líder lidera pelo exemplo, e uma campanha de vacinação começa com o exemplo que vem de cima.
Ao jogar a vacinação para o campo ideológico (a direita que defende a liberdade contra a esquerda totalitária que quer impor o que você deve fazer), Bolsonaro se desligou do que queria a maioria da população, que era simplesmente se livrar o quanto antes do vírus. Líderes de direita do mundo inteiro entenderam isso. Bolsonaro, não.
Lula, obviamente, se deixou fotografar sendo vacinado durante a campanha nacional e, ontem, novamente. Não precisa ser muito esperto politicamente para sacar que esse é o contraponto por excelência em relação a Bolsonaro. O ex-presidente perdeu a eleição para um ex-presidiário por meros 1,8% dos votos. Não tenho dúvida de que, se Bolsonaro tivesse seguido o exemplo de seus pares Orbán, Johnson e Netanyahu, a história teria sido diferente. A Covid foi o grande eleitor dessas eleições.
Neste artigo, procuramos analisar, de maneira o mais imparcial possível, as principais denúncias de fraude referentes ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que, mesmo a fraude sendo tecnicamente possível, ela requer uma tal cooptação de funcionários do TSE que se torna bastante arriscada: em primeiro lugar, seria preciso identificar as pessoas chaves, incluindo as que cobrem todas as etapas da fraude; em seguida, seria preciso comprá-las uma a uma. Qualquer falha pode ser fatal, ou para a pessoa que desnuda o esquema ou para todo o processo de fraude, se for a público. Aliás, este é um ambiente perfeito para chantagens polpudas… E não nos esqueçamos que Brasília deu uma vitória folgada a Bolsonaro. Ou seja, não devem faltar bolsonaristas no TSE dispostos a denunciar um esquema desse tipo, caso existisse.
Além disso, a votação paralela (processo de auditoria que simula uma votação real com urnas sorteadas, no mesmo horário da votação real) confere bem o processo da votação verdadeira, conforme explicamos neste artigo, exceto por uma “pequena” grande falha: não é possível simular a biometria, pois não se consegue voltar dos dados codificados para o dono da digital, ou seja, fica impossível simular um eleitor chegando com as suas digitais para o sistema eleitoral. Portanto, bastaria o processo fraudado se limitar a adulterar urnas em que aparece pelo menos um voto com biometria.
A boa notícia, é que esse ano, pela primeira vez, foi realizado um teste paralelo com biometria, em pequena escala, envolvendo eleitores reais, tornando a fraude bem mais difícil de se implementar, pois envolve complexos algoritmos de inteligência artificial, virtualmente impossíveis de serem feitos ou, no limite, o vazamento da identidade de todos esses eleitores.
A despeito de que a fraude seja difícil de acontecer na prática, parece claro que algum processo de transparência no sistema de urnas eletrônicas seria desejável, para transformar a segurança real, mas invisível, em uma segurança efetiva, com uma camada adicional que proporcione uma sensação de segurança para o cidadão leigo.
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Dentre as teorias disseminadas nos últimos dias, é possível destacar 5 vertentes, sendo as duas primeiras mais prevalentes (e assim, objetos de uma análise mais detalhada). Para tal, baixamos o resultado de todas as 472.027 urnas, incluindo o modelo de cada uma.
1 – Há mais de 100 urnas em que Bolsonaro não tem votos
De fato, houve 143 urnas sem votos para Bolsonaro e 4 urnas sem votos para Lula (duas delas em Caracas!).
Contexto da suposta fraude
A princípio, isto parece altamente intrigante. No entanto, só a princípio. Ao se examinar com mais detalhes, a razão fica cristalinamente clara.
Antes de refutarmos a fraude, vamos procurar nos colocar no lugar do fraudador, que desenha um algoritmo para simular votos em uma urna. O que você faria? Se o interesse é manipular e, ao mesmo tempo, passar despercebido, zerar votos de uma urna é, obviamente, a forma menos esperta de fazer isso. Primeiro, porque uma urna zerada chama a atenção de todos (aliás, não estaríamos escrevendo sobre isso se não houvesse urnas zeradas). E, em segundo lugar, porque uma urna zerada é o ambiente perfeito para uma auditoria informal: basta encontrar alguém com nome e CPF que tivesse votado naquela seção no candidato com zero votos, e que estivesse disposto a denunciar a fraude. Por incrível que pareça, até o momento, nas 143 urnas, que somam 11.858 votos para Lula, não se encontrou nenhuma boa alma que viesse a público para denunciar a fraude.
Convenhamos que este é um risco que um fraudador minimamente esperto não precisaria correr. Seria muito mais inteligente fazer uma redução percentual dos votos de Bolsonaro (na casa de uns 5%) e transferi-los para Lula, poupando as urnas onde Bolsonaro aparece com poucos votos. Isso tornaria o processo de detecção da fraude, apenas olhando para os boletins de urna, uma tarefa praticamente impossível. Só esse processo aumentaria a diferença a favor de Lula em torno de 10 pontos percentuais, o que seria mais do que suficiente para garantir a vitória em uma eleição apertada.
Refutação da fraude
Mesmo assim, vamos analisar em maior profundidade essa “denúncia”:
Em primeiro lugar, separamos estas urnas sem votos para Bolsonaro em duas categorias:
Urnas com 100 votos válidos ou mais: 66
Urnas com menos de 100 votos válidos: 77
Fizemos esta divisão porque é menos provável que uma urna com mais votos seja unânime do que uma urna com menos votos. Por isso, o grupo 1, de 66 urnas, foi examinado em grande detalhe, observando e pesquisando os locais de votação: 42 destas urnas estão em locais indígenas, 19 em locais quilombolas e uma em um assentamento do MST, em município com altíssima votação pró-Lula. Das 4 urnas restantes, todas estão em ambiente rural de cidades bem pequenas do sertão nordestino, no Maranhão, Ceará e Piauí, e com mais de 85% de votos para Lula.
Apenas para ilustrar, uma dessas urnas do grupo 1 está em Charrua – RS, onde, em uma seção com 302 votos válidos, Lula obteve a unanimidade. Este caso chama a atenção, porque a votação no município ficou praticamente dividida, com Bolsonaro recebendo 51,5% dos votos e Lula, 48,5%. No entanto, o caso deixa de ser estranho quando se examina de perto o perfil étnico do município. Segundo o site infosanbas (uma das fontes que usamos para esta pesquisa), o município de Charrua está praticamente dividido ao meio em termos de perfil étnico, como podemos ver no gráfico abaixo, retirado do site:
Esta divisão entre “brancos” e “indígenas” provavelmente explica a votação dividida entre Bolsonaro e Lula no município, e é provável que os indígenas tenham votado, todos, no Ginásio Municipal da cidade, onde estão as três seções em que Lula obteve a esmagadora maioria dos votos.
O grupo 2 foi examinado com menos detalhe, procurando deduzir pelo nome do local de votação e mirando municípios com quilombolas oficialmente estabelecidos. Isto resultou em 7 urnas em locais indígenas, 39 em locais quilombolas, 11 em presídios, 18 em ambiente rural e 2 no exterior (Havana, em Cuba e Puerto Iguazú, na Argentina).
Das 18 seções em ambiente rural, 15 estão no Nordeste (com alta votação em Lula), uma está em uma comunidade remota e rural de Teresina e duas estão em comunidades remotas de cidades pequenas: Novo Cruzeiro, MG (77% votaram em Lula em uma seção com 71 votos) e Juruti, PA (59% votaram em Lula, em uma seção com 30 votos).
Com relação à votação em zonas indígenas e quilombolas, a baixa votação em Bolsonaro é compreensível. Bolsonaro referiu-se mais de uma vez de forma depreciativa aos quilombolas e territórios indígenas, referindo-se às demarcações e outras questões. Então é uma seara onde Bolsonaro deve ter tido mesmo muito pouco voto, ainda mais se levando em conta as lideranças fortes neste tipo de comunidade. No entanto, mesmo assim, há várias seções em quilombolas e aldeias indígenas onde Bolsonaro teve votos!
Com relação às zonas rurais, vamos fazer uma análise probabilística. Considere uma seção que tenha recebido 95% dos votos válidos para Lula. Qual a chance de uma urna com 99 votos válidos não ter nenhum voto em Bolsonaro? Cerca de 1 para 160 (0,9599). Fizemos um exercício em que levantamos todos os municípios em zonas rurais em que Lula recebeu mais de 50% dos votos e, nesses municípios, as seções com menos de 100 votos. Encontramos 3.687 seções com essas características. Para cada uma destas seções, usamos a fórmula acima para calcular a probabilidade de que Bolsonaro tenha recebido zero votos em cada uma das seções consideradas. Somando todas essas probabilidades, chegamos a aproximadamente 16 urnas em 3.687 seções. Portanto, o número de 18 urnas em zonas rurais com zero votos em Bolsonaro parece compatível com uma análise básica de probabilidades.
No grupo 1, temos 4 urnas em zonas rurais, sendo 3 com até 119 votos, o que diminui a chance para 1 em 448. Apenas uma urna, no sítio Ponta da Serra, que é uma comunidade agrícola, teve mais de 119 votos (159, para ser mais exato). Não se pode descartar, neste caso, compra de votos e/ou uma liderança forte.
2 – Urnas antigas “não-auditadas” foram fraudadas
Contexto da Suposta Fraude
Essa tese, segundo a qual Lula teve desproporcionalmente mais votos em urnas antigas, o que não condiz com uma distribuição aleatória dos votos, começou a ser difundida pelas redes sociais a partir do texto do argentino Fernando Cerimedo, publicado no canal do YouTube via o periódico “La Direcha Diario”. Esta não pode ser considerada uma fonte imparcial, porque o autor é assumidamente bolsonarista, tendo, inclusive, se encontrado com Eduardo Bolsonaro pouco antes do 2º turno.
O TSE desmentiu a tese do argentino, reforçando que os modelos antigos de urnas passaram por rigorosos testes antes de 2020, e em 2020 testou-se apenas o hardware novo, porque os modelos anteriores já haviam sido escrutinados. O modelo novo conta com um processador bem mais rápido, tela colorida, bateria mais possante, melhorias no teclado e na biometria e software embarcado do sistema operacional mais seguro. Reparem que não se trata do software eleitoral, mas do ambiente operacional, sobre o qual o software eleitoral roda. É como o Windows, que serve de base para todos os softwares que rodamos em nossos computadores. Uma versão nova do Windows não faz com que o Excel, por exemplo, seja diferente.
O ponto é que, obviamente, o software eleitoral é rigorosamente igual para todos os tipos de urna. Se o software fosse fraudado, ambas os tipos de urnas seriam alvos de fraude e não apenas as urnas mais antigas. Afinal, a urna, independentemente do modelo, não detectaria se o software foi fraudado ou não.
Cerimedo declarou que diferenças em um determinado log (registro em arquivo de todas as operações feitas em um determinado computador, e os resultados e mensagens exibidos) provaria que o software é diferente entre o modelo novo e os modelos antigos. Isto não faz o menor sentido, porque estas diferenças podem ser devidas simplesmente à própria diferença entre as urnas (hardwares diferentes causam logs diferentes em sua inicialização), o que não tem nada a ver com o software das urnas em si.
Desenvolver dois softwares diferentes e manter isso incógnito seria uma conspiração rocambolesca e virtualmente impossível, é muito mais fácil fraudar um software único, com uma lógica só.
Refutação da Suposta Fraude
Já publicamos um artigo refutando essa tese do ponto de vista da localização dos municípios que receberam urnas novas e antigas (veja aqui). Em resumo, as urnas não foram distribuídas aleatoriamente, o que é condição inicial para qualquer análise probabilística. Em geral, foram as capitais e alguns municípios limítrofes que receberam urnas novas, enquanto os municípios do interior do país receberam as urnas antigas.
Então, quando se separa os resultados das urnas novas e antigas, na verdade está se separando os resultados das capitais e do interior. No Nordeste, onde Bolsonaro recebeu proporcionalmente mais votos nas capitais do que no interior, fica a impressão de que isso é devido à “idade” da urna, quando, na verdade, a diferença de votos se explica pelo perfil do eleitor. Esse é o efeito de uma distribuição não aleatória das urnas.
Além disso, há alguns outros problemas conceituais com a análise realizada:
Considerar apenas o tamanho do município como critério para apontar as ditas diferenças a favor de Lula, nas urnas antigas;
O nível socioeconômico do eleitor é muito mais relevante que o tamanho do município onde ele mora;
Comparações de municípios de mesmo tamanho entre estados diferentes, geralmente, são completamente espúrias. No mapa abaixo, observa-se que, mesmo dentro do mesmo estado, existem diferenças regionais muito relevantes, ainda que os municípios tenham tamanho similar.
Essa eleição está me fazendo lembrar do filme Carrie, a Estranha. Depois do banho de sangue que é o filme, o final parece calmo, até idílico, quando, de repente, a personagem central ressurge, dando um dos sustos mais assustadores do cinema. Por aqui, as eleições acabaram, Bolsonaro autorizou a transição, tudo parecia correr dentro dos conformes, quando, de repente, teorias de fraudes ressurgem para assombrar o cenário político.
A teoria da fraude foi levantada por um estudo de um argentino amigo dos Bolsonaros, que elaborou um extenso material para provar que os resultados das urnas anteriores a 2020 têm resultados consistentemente a favor de Lula se comparadas com as urnas de 2020. O estudo, na superfície, tem uma aparência bastante técnica, inclusive com o cálculo do p-value de uma regressão dos resultados das urnas contra o seu modelo (2020 ou anterior), concluindo ser virtualmente impossível que as diferenças encontradas sejam aleatórias. Ou seja, as urnas anteriores a 2020, supostamente não auditadas, teriam sido manipuladas para dar a vitória ao candidato 13.
O problema é que o argentino calcula médias e faz regressões considerando que as urnas foram distribuídas de maneira aleatória pelo país. O problema é que não foram! Por algum motivo logístico, as urnas de modelo mais recente foram distribuídas para a capital e adjacências. E, no Nordeste (foco principal do trabalho), as capitais votaram mais em Bolsonaro do que em Lula em relação ao interior, levando a uma correlação espúria entre modelo de urna e resultado da votação.
Vejamos o caso de Alagoas, por exemplo. Nesse estado, apenas 15 cidades, de 165, receberam urnas 2020. Já por este número pequeno de cidades já dá para perceber que qualquer estudo estatístico tem sérias limitações. Mas, sigamos. As cidades que receberam essas urnas foram a capital, Maceió, e outras 14 que estão em um raio de, no máximo, 60 km da capital: Jequiá da Praia, Atalaia, Barra de São Miguel, Capela, Coqueiro Seco, Marechal Deodoro, Pilar, Roteiro, Santa Luzia do Norte, São Miguel dos Campos, Satuba e Rio Largo. Dessas 15 cidades, Bolsonaro ganhou em 5 e teve votação acima da média alagoana em outras 5. A inclusão de Maceió na regressão, onde Bolsonaro teve 57,18% dos votos, e que representa 40% das seções eleitorais do estado, por si só já distorce a estatística, dado que a cidade contou com 100% de urnas 2020.
Mas o autor do estudo, supostamente, quis tirar o efeito “capital”, computando os votos somente das cidades com menos de 50.000 eleitores. No caso, somente Maceió e Rio Largo ficaram de fora. O problema é que esse corte não resolve nada, dado que ainda temos o problema geográfico. Ou seja, a região deu mais votos a Bolsonaro, na média, em relação ao restante do estado, e isso acontece também, em média, nos outros municípios limítrofes a Maceió, que são pequenos. Ao fazer o cálculo para “cidades com menos de 50.000 eleitores”, o autor quer passar a impressão de que isso vale para TODO o estado, o que não é verdade, pois somente os municípios listados acima receberam as urnas 2020.
Uma outra forma de ver o problema é comparar a votação nesses municípios em 2022 e 2018. Na tabela abaixo, podemos observar que, grosso modo, o padrão de votação por município se repete nas duas eleições, o que parece de monstrar uma coerência geográfica intertemporal independentemente do modelo de urna utilizado.
Cidades 2022 2018
Jequiá da Praia 50.19% 45.28%
Atalaia 36.12% 31.73%
Barra de São Miguel 51.54% 50.57%
Capela 40.26% 38.29%
Coqueiro Seco 38.91% 38.56%
Marechal Deodoro 55.52% 56.66%
Pilar 44.34% 46.77%
Roteiro 39.39% 33.55%
Santa Luzia do Norte 38.01% 38.73%
São Miguel dos Campos 49.14% 51.13%
Satuba 51.70% 51.04%
Rio Largo 47.98% 49.72%
Maceió 57.18% 61.63%
ALAGOAS 41.32% 40.08%
Não tive tempo de repetir o mesmo estudo acima para os outros estados do Nordeste, onde a diferença entre urnas se repete, mas creio que o resultado deve ser semelhante, uma vez que as capitais tendem a votar mais em Bolsonaro do que o interior nesses estados.
Enfim, dá a impressão de que o argentino foi contratado para torturar os números e encontrar algum padrão que pudesse demonstrar algum tipo de viés. O problema é que como as urnas não foram distribuídas de maneira aleatória, qualquer estudo precisa considerar o padrão de distribuição das urnas, o que não foi feito.
Na tabela abaixo, mostro as diferenças entre os votos recebidos por Bolsonaro em “urnas 2020” e nas outras. Podemos observar que o “problema” concentra-se na região Nordeste e no Amazonas, onde somente a capital, Manaus, recebeu “urnas 2020”. E, como sabemos, Bolsonaro ganhou em Manaus e perdeu nas outras cidades. Podemos inferir que esta questão geográfica se repete em todos os estados da região Nordeste. Aliás, há vários estados onde ocorre o inverso, ou seja, há mais votos para Bolsonaro em urnas anteriores a 2020. Fica a questão: por que a manipulação se daria somente em alguns estados, principalmente no Nordeste?
O presidente deu o ar da graça ontem, finalmente, após quase 48 horas do anúncio do resultado da eleição. Não admitiu explicitamente a derrota, mas autorizou, segundo o seu ministro da Casa Civil, o início da transição de governo.
Em sua curtíssima manifestação, Bolsonaro levantou apenas um ponto: a injustiça do resultado eleitoral e o direito de manifestação de seus apoiadores, ainda que tenha condenado seus métodos.
Já escrevi ontem sobre os “métodos” de manifestação usados pelos bolsonaristas, e não precisa o presidente vir dizer que eles têm “direito” a se manifestar. O direito de manifestação é garantido pela Constituição. Vou me ater, portanto, ao ponto da “injustiça”.
O presidente não especificou porque considerou “injusto” o resultado eleitoral. Podemos apenas, portanto, elocubrar sobre as suas razões. Consigo pensar em três: 1) O STF ter permitido que Lula concorresse ao levantar as suas condenações, 2) O TSE ter agido de maneira parcial durante a campanha, apoiando implicitamente o seu adversário e 3) Ter havido fraude na apuração dos votos.
Começando pelo terceiro ponto, é de se notar que a palavra “fraude” sumiu do discurso de Bolsonaro e das redes bolsonaristas. O ministério da defesa (órgão do Poder Executivo) foi destacado para fazer uma “auditoria paralela”, e até agora não se manifestou. Ou seja, para aqueles que, como eu, achava que a carta da fraude seria usada, foi uma surpresa positiva. Ao menos essa questão mais, digamos, técnica, foi descartada. Sobraram as duas hipóteses iniciais, que são políticas.
Antes de comentá-las, vou trazer aqui de volta o gráfico que, para mim, mostra tudo e não esconde nada: a popularidade líquida dos governos (ótimo/bom menos ruim/péssimo).
Nos pontos em vermelho, temos a popularidade líquida de cada governo no mês da eleição. Observem que, em todos os casos em que houve a reeleição do incumbente (1998, 2006 e 2014) ou a eleição do sucessor do mesmo partido (1994 e 2010), a popularidade líquida estava positiva. Se Bolsonaro fosse eleito, seria a primeira vez que um incumbente seria reeleito com popularidade líquida negativa. Ele quase chegou lá, porque sua popularidade melhorou com a campanha eleitoral e com as “bondades eleitorais”, mas não foi o suficiente para ultrapassar essa barreira.
Qualquer outra explicação para a derrota eleitoral do presidente precisaria justificar porque a maioria dos eleitores deveria reconduzir ao cargo um presidente impopular. Eu mesmo, que acabei votando em Bolsonaro, acho seu governo, no máximo, com muito boa vontade, regular. Na área econômica, conquistas como a Reforma da Previdência, a independência do BC e o marco do saneamento são ofuscadas pela depredação do teto de gastos e pela sabotagem da Reforma Tributária ampla que estava sendo discutida no Congresso. Sem contar a sabotagem da privatização do Ceagesp, coisa atravessada na garganta dos paulistanos. E olha que estou deixando de fora questões não econômicas, como a vacinação contra a Covid, em que Bolsonaro fez de tudo para desacreditar a campanha, inclusive fazendo questão de não se vacinar.
Acima estão percepções que construí ao longo dos últimos 4 anos. Cada um terá as suas próprias, e o resultado final estará no gráfico acima. Bolsonaro colheu o que plantou, e isso não tem nada a ver com o STF ou com o TSE.
O STF devolveu os direitos políticos a Lula, e isso pode ou não ter sido justo. O ponto é saber o quanto isso influenciou nas eleições. Pode ser, inclusive, que um outro candidato que não Lula tivesse um resultado ainda melhor. Quem sabe? Em 2018, no auge do antipetismo, com Lula na prisão e Bolsonaro ainda uma promessa, Haddad obteve 45% dos votos válidos. O fato é que, por mais que tenha sido injusta a ação do STF (e “injustiça”, neste caso, é um termo relativo, porque, para muitos, a prisão de Lula é que tinha sido injusta), é realmente difícil relacionar este evento com o resultado das eleições.
Com relação ao segundo ponto, penso que um teórico “apoio” do TSE ao candidato Lula teria efeito muito limitado sobre a votação. O caso das inserções transferidas para Lula como direito de resposta, por exemplo, ignora todo o resto, inclusive a campanha nas redes sociais, que foram o motor da vitória de Bolsonaro em 2018. O problema de Bolsonaro não foi não ter o tempo de TV, foi não ter o que mostrar no tempo de TV, a não ser denegrir o seu adversário. Portanto, mesmo que o TSE tenha implicitamente apoiado Lula, avalio que este “apoio” teria um efeito muito limitado sobre o resultado final da campanha.
Como todo time que perde campeonato, são muitas as teorias levantadas para justificar o mau resultado, inclusive o pênalti não dado pelo juiz. O fato nu e cru, no entanto, está no gráfico acima: Bolsonaro não tinha popularidade suficiente para se eleger. O resto é desculpa de perdedor.
Bom dia, amigos! Pousei ontem depois de duas semanas de férias no Japão (um post a respeito da viagem está a caminho!). Hoje, depois de uma noite de sono reparador e recuperado de dois voos intercontinentais seguidos e 12 horas de diferença de fuso, volto para falar daquilo que interessa.
O Estadão está, hoje, lamuriento. Sua manchete chama a atenção para a polarização que tomou conta do país, seu editorial clama por um “pacificador” e entrevista do cientista político Bolívar Lamounier, tucano clássico, transpira pessimismo por todos os poros em relação à capacidade do próximo presidente de “unir” o país.
Vou falar o óbvio: só existem duas opções, e vivemos em um sistema político em que “the winner takes all”. Ou seja, literalmente metade do país será governado por alguém visto como intragável. Aliás, mais da metade, se considerados os votos nulos e as abstenções. Este é o sistema em que vivemos e a única “solução” seria uma guerra civil seguida pela secessão do país.
Qualquer dos dois candidatos disponíveis não será capaz de unir o país. Em primeiro lugar, porque ambos vivem da demonização do outro. E, em segundo lugar, porque essa é uma utopia que não ocorre em nenhuma democracia. Unanimidade em torno de um projeto político somente é possível em regimes autoritários, em que o lado discordante é calado. Portanto, vamos deixar de lado as utopias e lidar com a realidade mais rasteira: Bolsonaro ou Lula será o nosso presidente nos próximos 4 anos, em um ambiente beligerante, em que o outro lado não deixará de fazer oposição feroz.
Uma pequena digressão antes de continuarmos. Ontem pousei em Guarulhos às 6 da manhã e, antes de voltar para casa, passamos por uma padaria famosa aqui em São Paulo para tomar um café. Foi triste. O serviço foi péssimo. O despreparo da mão de obra era evidente. Havia muitos empregados fazendo o serviço que poderia ser feito por muitos menos se houvesse mais eficiência. Estava clara ali a tragédia nacional. Eu estava vindo de um país com renda per capita 3 vezes maior do que a do Brasil. Isso significa que cada japonês consegue produzir 3 vezes mais do que cada brasileiro. Ou, de outra forma, cada japonês faz o serviço de 3 brasileiros. Na padaria japonesa, se existisse, seriam necessários 3 vezes menos funcionários para oferecer o mesmo nível de serviço. Isso acontece porque a mão de obra é muito melhor preparada, além de serem disponíveis meios de produção e de administração mais eficientes. PIB per capita não é apenas uma medida de riqueza, mas antes e principalmente, trata-se de eficiência. Eficiência que se traduz, no final do dia, em mais riqueza para todos.
Tendo sentido na pele o que significa viver em um país de renda média, não pude deixar de pensar o que nos oferecem os dois candidatos em relação ao aumento da eficiência. Não estou aqui falando de corrupção, empatia, pendores democráticos. Refiro-me especificamente à capacidade de ambos os candidatos de levar o país para o próximo nível em termos econômicos.
Dos dois candidatos, Bolsonaro representa um projeto econômico mais próximo daquilo que acredito estar na direção correta. As limitações do atual presidente são evidentes, não preciso gastar verbo aqui para descrevê-las. O presidente e as atuais lideranças do Congresso fizeram todo o necessário para sabotar a credibilidade da única regra fiscal que temos, o ministro da fazenda prefere a CPMF a uma reforma tributária ampla e as constantes mudanças na direção da Petrobras certamente não contribuíram para o ambiente econômico. Trata-se, afinal, de um populista, e não dá para esperar muito de um populista.
No entanto, por mais deletérias que tenham sido suas intervenções na economia, há uma diferença fundamental de natureza em relação ao ideário do PT, que nos legou a maior recessão da história do Brasil. Minha série sobre a economia na era PT faz uma autópsia desse tempo, e as manifestações de Lula a respeito indicam que nada aprenderam. Portanto, podemos esperar que tentem mais forte, usando todos os instrumentos disponíveis para intervir na atividade econômica, com os resultados conhecidos.
Por isso, meu voto vai para Bolsonaro, com a consciência de que está longe de ser o ideal. Reconheço que considerações de outras naturezas que não a econômica podem levar ao voto no candidato do PT, e respeito a escolha de cada um de acordo com a sua própria visão de mundo, assim como espero que respeitem a minha. Respeito mútuo, mais do que uma utópica concordância em torno de um projeto único, talvez seja o que esteja mais faltando em nosso país.
Este voto, obviamente, não me tirará o direito de criticar um próximo governo Bolsonaro, se eleito, em todos os seus aspectos criticáveis, como sempre fiz por aqui. Afinal, não é o voto que define o direito à crítica, mas o simples fato de ser cidadão.
Lula faz segredo sobre o seu ministério, o que deixa as especulações correndo soltas. A jornalista Andrea Jubé, hoje, no Valor, é mais uma que pratica o esporte predileto dos colunistas políticos nesses dias.
Em todas as listas de ministeriáveis, no entanto, uma ausência grita alto: a da ex-presidente Dilma Rousseff.
Dilma não é um quadro qualquer. Difícil encontrar no PT ou em qualquer outro partido alguém com a sua experiência. Mulher-forte do governo Lula desde 2005, quando assumiu a Casa Civil, e presidente da República por pouco mais de 5 anos, Dilma foi o cérebro e os músculos dos governos do PT entre 2005 e 2016. Alcunhada pelo próprio Lula de ”mãe do PAC”, Dilma seria a escolha natural para coordenar o programa que Lula promete ressuscitar.
A completa ausência de Dilma das especulações sobre o ministério de Lula só pode ser explicada por um grande pacto do silêncio em torno de um parente inconveniente. É daqueles assuntos proibidos em conversas em torno da mesa, pelo constrangimento que causam. Em uma das raras ocasiões em que Lula foi confrontado com o seu segredo, em entrevista a Willian Waack, escapou pela tangente. “Vamos falar do meu governo”, quase suplicou o ex-presidente. Não se trata de um assunto fácil.
Acho que Dilma é uma grande injustiçada. Seu grande pecado foi ter levado ao limite todas as ideias econômicas do PT. Quando veio o desastre, levou a culpa sozinha. Aliás, se perguntado, Lula dirá que Dilma fez tudo certo, que os culpados pela crise foram a Lava-Jato, os americanos, os golpistas etc. O que torna a sua ausência da lista de ministeriávies algo incompreensível: afinal, se ela fez “tudo certo”, por que abrir mão de um quadro tão qualificado?
Quando economistas pedem “responsabilidade na condução da política econômica”, referem-se veladamente às políticas levadas a cabo por Dilma Rousseff. A ausência de Dilma da lista de ministeriáveis serve como uma espécie de ”garantia” de que seus erros não serão cometidos novamente. Como se suas “ideias sobre economia” fossem de sua própria lavra, e não patrimônio comum a todo o “pensamento econômico” do PT. No fundo, a esperança dos economistas apoiadores de Lula é de que o PT não seja o PT.
O editorial do Estadão dá voz à perplexidade que tomou conta de alguns círculos bem-pensantes do país diante dos resultados eleitorais, particularmente para o Legislativo. Por ”razões ainda a serem estudadas”, os eleitores escolheram ministros completamente ineptos para representá-los no Congresso.
Vou dar aqui minha humilde contribuição para os “estudos” a serem feitos.
Comecemos com Damares e Salles. A questão, talvez, não é que tenham sido incompetentes. Pelo contrário. Esses dois ministros foram vistos como muito competentes na implementação da agenda vencedora das eleições de 2018, o que inclui valores conservadores da família e o uso da floresta para o desenvolvimento econômico. Para desgosto do Estadão, existe uma parcela da população que endossa essas agendas e viu em Damares e Salles seus legítimos representantes.
Já o caso de Pazuello é outro. As centenas de milhares de mortes causadas pela Covid certamente não fazem parte da agenda de ninguém. A perplexidade aqui é outra: como pode a população premiar com um mandato parlamentar um “negacionista”? O editorial reconhece que não dá para colocar 100% das mortes por Covid nas costas do governo, mas atribui à dupla Bolsonaro/Pazuello a transformação de uma calamidade em uma tragédia.
Será esta mesmo a percepção de toda a população? Creio que não. Para uma parcela dos eleitores, a Covid foi o que foi, ceifou vidas no mundo inteiro, e mesmo países com governos “responsáveis” sofreram muito com a doença. Bolsonaro deve ter perdido votos preciosos com seu discurso anti-vacina, mas não o suficiente para evitar que seu lugar-tenente fosse eleito. Aliás, pelo contrário: o discurso anti-vacina agrada uma parcela dos eleitores, o suficiente para eleger um seu representante no Congresso.
Por outro lado, o editorial constata, perplexo, que Bolsonaro obteve mais de 50% dos votos em Manaus, o epicentro da CPI da Covid. Aqui já não se trata de uma parcela da população, mas de sua maioria. Como explicar? Já tive oportunidade de escrever sobre isso aqui: os eventos de Manaus se encaixam em um contexto em que a população já está acostumada a não ter assistência decente de saúde. A população, em grande parte, simplesmente não ligou o que aconteceu com o governo federal, dado que os hospitais são estaduais ou municipais. A CPI tentou fazer essa ligação, mas só teve sucesso com quem não mora em Manaus.
Por fim, a simples ligação com Bolsonaro não foi o suficiente para eleger parlamentares. Queiroz e Wasseff não foram eleitos, por exemplo. O que reforça a tese de que não basta ser bolsonarista, é preciso trabalhar pela agenda que ele representa. O bolsonarismo é maior do que Bolsonaro. É isso que precisa ser estudado.
Conheço pessoas honestas, trabalhadoras, inteligentes, bem informadas, que amam o seu país, e que vão votar em Lula.
Conheço pessoas honestas, trabalhadoras, inteligentes, bem informadas, que amam o seu país, e que vão votar em Bolsonaro.
Essas pessoas pensam, sinceramente, que o “outro lado” será tão pernicioso, mas tão prejudicial ao país, que o voto de alguém no candidato do “outro lado” só pode ser explicado por algum desvio moral ou por uma falha cognitiva insanável.
O que, obviamente, não bate com a descrição acima dos eleitores de ambos os lados.
Talvez tenha chegado o momento de admitir que, talvez, ambos os lados estejam corretos na escolha de seus candidatos (desde o seu particular ponto de vista) e errados na avaliação do voto do outro.
Claro que isso supõe uma imensa dose de boa vontade e tolerância, artigos em falta nesse nosso tempo.
A cidade de São Paulo deu vitória a Lula sobre Bolsonaro no 1o turno. Foram 47,54% de votos válidos para Lula contra 37,99% para Bolsonaro.
Fiz um levantamento para ver em que bairros Lula e Bolsonaro conseguiram maior vantagem um sobre o outro. A seguir, a lista das zonas eleitorais onde a diferença entre os dois foi maior do que 10 pontos percentuais:
Zonas eleitorais onde Lula ganhou por mais de 10 pontos de diferença:
Bela Vista: 56,46% x 29,60%
Água Branca: 46,39% x 35,33%
Itaquera: 49,10% x 38,03%
Pinheiros: 46,75% x 32,72%
Capela do Socorro: 48,11% x 37,16%
Jabaquara: 47,88% x 35,95%
Vila Pirajussara: 53,95% x 32,94%
Jd. Prudência: 50,68% x 35,04%
Itaim Paulista: 52,54% x 36,39%
Guaianazes: 55,83% x 33,53%
Cidade Dutra: 61,77% x 27,37%
Jardim Ângela: 62,16% x 26,94%
Jardim Atlântico: 57,27% x 30,47%
Rio Pequeno: 50,14% x 34,66%
São Mateus: 54,25% x 34,74%
Freguesia do Ó: 52,99% x 34,99%
Parelheiros: 60,40% x 28,52%
Jardim Adelfiore: 55,04% x 33,76%
Vila Curuçá: 52,81% x 36,54%
Vila Jacuí: 49,31% x 38,90%
Jaraguá: 50,21% x 36,59%
Jardim Helena: 52,52% x 33,97%
Vila Emir: 53,07% x 33,37%
Zonas eleitorais onde Bolsonaro ganhou por mais de 10 pontos de diferença:
“Votaremos em Lula no 2º turno. Nossa expectativa é de condução responsável da economia”.
Em nota com apenas 14 palavras, os chamados “país” do Plano Real declararam voto em Lula no 2o turno. Apesar de lacônica, são muitas as mensagens transmitidas.
Em primeiro lugar, o apoio em si. Malan, Arida, Arminio e Bacha fazem parte do velho PSDB, aquele que entregou de bandeja o país para o PT e definhou. Essa declaração de voto, portanto, segue a mesma linha do apoio de FHC, Serra, Zé Aníbal, Tasso, sem falar em Alckmin. Trata-se de pura e simples síndrome de Estocolmo.
Em segundo lugar, a nota sacrificou a precisão para ser sintética. Uma nota mais precisa teria um complemento do tipo “Nossa expectativa é de condução responsável da economia e o não uso de esquemas de corrupção em estatais para sustentar máquinas partidárias”. Seria um pouco mais longo e menos elegante, mas ampliaria os compromissos sugeridos ao candidato.
Por fim, os “pais” do Plano Real deram a fórmula perfeita para quem quer votar em Bolsonaro posando de limpinho. “Votaremos em Bolsonaro no 2o turno. Nossa expectativa é de respeito às instituições”. Pronto! Está aí um voto lavado, enxaguado e pronto pra uso.