“Precisamos encontrar um candidato de centro para fugir dessa polarização!”
“A união em torno de um candidato de centro é essencial para não cairmos novamente nos extremismos!”
“É preciso que os candidatos de centro tenham a grandeza de não pensarem em si mesmos, mas no projeto de um país livre da polarização!”
São mais ou menos essas as frases que temos ouvido por aí no meio político, entre analistas e na imprensa. Todos em busca do Santo Graal do Centro.
Mas… é possível?
Não vou nem entrar no mérito aqui sobre a possibilidade de políticos (e até não-políticos, vide Huck e Moro) abrirem mão de suas candidaturas em prol de um nome único. A chance é zero Kelvin, mas vou dar de barato que esse milagre ocorra. Seria o suficiente? Claramente não, e vou explicar o porquê.
Se houvesse um único nome concorrendo pelo “centro” em 2018 teria ido ao segundo turno? Com base na análise fria dos números, não. A soma da votação de todos os candidatos ex Bolsonaro/Haddad foi de 24,69% dos votos válidos, abaixo, portanto, dos 29,28% de Haddad.
Mas alguém poderá dizer que se houvesse um candidato único de centro, não haveria o chamado “voto útil”. Ou seja, houve uma migração de votos para Bolsonaro e Haddad no 1o turno de eleitores que votariam em outros candidatos caso estes tivessem chances reais de passarem para o 2o turno. Como não tinham, votaram em um dos dois para evitar um mal maior.
Isso de fato aconteceu. Em teoria dos jogos é o chamado “equilíbrio de Nash”: diante de uma escolha e antecipando o que os outros jogadores (no caso, eleitores) vão fazer, o jogador joga para minimizar as suas perdas, não para maximizar os seus ganhos. Então, o voto útil sempre vai existir, independentemente do número de candidatos.
A única possibilidade de não ocorrer voto útil é encontrar um candidato com rejeição zero no eleitorado. Ou seja, alguém visto como superior aos dois candidatos por uma parcela significativa de eleitores que não votam primariamente nos polos opostos. Caso contrário, o voto útil continuaria existindo, e aí trabalhando contra o candidato de centro.
Vou dar dois exemplos.
Digamos que o candidato de centro fosse Ciro Gomes. Não tenho dúvida de que uma parcela que não gostaria de ver Bolsonaro de volta ao Palácio do Planalto votaria no capitão para não ter um 2o turno entre Ciro e Lula.
Outro exemplo: digamos que o candidato de centro fosse Doria. Também acho que não há dúvida de que muitos que não gostariam de ver Lula de volta à presidência votariam útil para não ter que escolher entre Bolsonaro e Doria no 2o turno. Aliás, neste caso, acho que muita gente também não gostaria de ter que escolher entre Lula e Doria.
Portanto, o “centro” tem uma tarefa hercúlea: encontrar um nome de consenso que seja uma razoável segunda opção para pelo menos 40% da população, e fazer com que os outros 325 candidatos desistam do seu sonho de ser presidente. Boa sorte.
Só um adendo: Bolsonaro rompeu sozinho uma polarização de mais de 20 anos entre PT e PSDB. Para isso, fez a leitura correta do sentimento majoritário da sociedade brasileira naquele momento e emprestou seu carisma a esse sentimento. Minha forte sugestão a quem queira ocupar a cadeira presidencial em 2023 é fazer o mesmo, ao invés de tentar produzir uma candidatura no laboratório das análises políticas dos bem-pensantes.
Em um dos meus últimos artigos, esclareci qual o critério que utilizo para distinguir a verdade dos fatos: se “cheira” a teoria da conspiração, normalmente descarto. Alguns dos meus leitores mostraram desconforto, e com razão: afinal, como descartar a priori algo que nem sequer foi investigado? Não seria uma postura muito cômoda, preguiçosa até, ao simplesmente confiar em uma “regra geral”, sem se dar ao trabalho de verificar a sua veracidade?
Pensei no assunto com cuidado.
Vamos dividir esta discussão em duas partes: na primeira, definiremos o que é uma “Teoria da Conspiração”. Depois, com base nesta definição, concluiremos que, por construção, é absolutamente inútil investigar ou pesquisar o objeto de uma teoria da conspiração.
O que é Teoria da Conspiração?
Quando meus filhos eram pequenos, assistiam a vários desenhos no Cartoon Network. Um deles era Pink e o Cérebro, que envolvia dois personagens completamente antagônicos: Pink, um rato desmiolado que só aprontava confusão, e Cérebro, um rato superinteligente, cujo único objetivo na vida era nada menos do que “dominar o mundo”. Pink se preocupava com as coisas mundanas, enquanto Cérebro estava sempre preparando um plano genial para dominar o mundo.
Sempre quando ouço algo que me parece Teoria da Conspiração, lembro do Cérebro: deve haver um rato superinteligente tentando dominar o mundo por traz disso.
Teoria da Conspiração é qualquer explicação para um evento ou tese (que vou aqui chamar de Grande Tese) que envolva forças superiores e obscuras, as quais invariavelmente buscam manipular a realidade, na maior parte das vezes com motivações políticas.
Por que Teorias da Conspiração são inverossímeis? Por um motivo simples: para serem verdade, pressupõem a existência de um Cérebro que consegue puxar todas as cordas da realidade, de modo a criar uma realidade paralela que engana grande parte da humanidade, MENOS os iniciados que conseguem perceber a tramoia.
O documentário Behind the Curve, disponível no Netflix, explica exatamente este mecanismo.
Este documentário aponta com precisão as características de uma Teoria da Conspiração:
– Evidências apenas para os iniciados: as “evidências” encontradas a favor da Grande Tese são óbvias apenas para aqueles que compartilham da mesma fé. Por exemplo, uma das “evidências” de que a terra seria plana é que não há voos sobre os oceanos do hemisfério sul, que estariam muito próximos da “borda” do planeta. Mas obviamente há, o que não abala a fé dos terraplanistas.
– O “bom-senso” é a prova fundamental da Grande Tese. Se conseguimos andar em linha reta durante milhares de quilômetros, ou se consigo ver a linha do horizonte, ou se não “sinto” o movimento de rotação do planeta, é óbvio que a terra é plana. A Grande Tese é sempre sustentada pelo pensamento “não pode ser diferente disso”.
– A convicção vem antes da prova. O documentário mostra vários experimentos que frustram a Grande Tese. Mas isso acontece porque não “testaram direito”. Se o experimento não consegue provar, é porque não foi suficientemente bom. Ou, no máximo, há um paradoxo em busca de uma explicação.
– A falta de refutação formal e detalhada por parte dos cientistas é apontada como uma evidência em favor da Grande Tese. Não se lhes ocorre que, pelo disparatado da coisa, ninguém realmente vai perder seu precioso tempo refutando ponto por ponto. Por outro lado, evidências como fotos tiradas do espaço são descartadas como sendo parte da grande conspiração liderada pelo Cérebro.
– Reunião em comunidades. Os que comungam da mesma crença reúnem-se em comunidades que se autoalimentam com suas paranoias, e não se deixam levar por evidências contrárias à sua fé. Sim, porque a coisa se transforma em fé religiosa. Uns apoiando-se nos outros para sustentarem a sua fé.
– Forças ocultas e poderosas: Por fim, há sempre uma concertação de forças ocultas e poderosas que impõem a mentira com objetivos obscuros e sinistros. No caso do terraplanismo, a Nasa mente, mas não fica claro porque mentiria sobre isso. O fato é que mente, e por algum motivo muito grave deve ser.
Uma parte interessante do documentário é a descrição da Síndrome do Impostor e do Efeito Dunning-Kruger. A Síndrome do Impostor acomete acadêmicos que aprofundam em um determinado tópico e, em certo momento, conseguem ver o quanto ainda não sabem sobre aquele assunto. Assim, sentem-se como impostores, que afetam um conhecimento que supostamente não têm. Por outro lado, o Efeito Dunning-Kruger é exatamente o oposto: quanto menos uma pessoa sabe sobre um determinado tema, mais ela acha que já sabe tudo. Faz pesquisas na internet, vê vídeos no YouTube, lê artigos na Wikipedia e… voi lá! tornou-se um expert sobre aquele assunto. É interessante observar como esse padrão se repete: os teoristas da conspiração não têm dúvidas de nenhuma maneira sobre aquilo em que acreditam.
É inútil debater com conspiracionistas
Em determinado momento do documentário, um escritor de ficção científica define bem o problema: enquanto cientistas partem dos fatos para chegar em uma teoria, os teoristas da conspiração partem da teoria e buscam fatos que a comprove. E se os fatos não a comprovam, que se danem os fatos. O documentário mostra pelo menos três experimentos realizados pelos terraplanistas que não funcionam, mas isso não abala a sua fé na teoria.
Portanto, não há como debater contra a Grande Tese. Não estamos sobre o mesmo terreno, o campo de debate não é o mesmo. O teorista da conspiração está em um outro mundo, com suas próprias regras. Neste mundo, há pessoas poderosas querendo esconder a verdade. Eles, no entanto, por algum motivo, são os únicos que conhecem essa verdade. Mesmo contra todas as evidências.
Óbvio que eles falarão que somos nós que não estamos vendo as evidências, claras como a luz do dia. Uma “evidência” apresentada no documentário, por exemplo, é o fato de o planeta estar girando a uma velocidade estonteante, mas nós não sentimos absolutamente nada. Como isso é possível? O bom senso diz que estamos parados, claro. Esse é o tipo de “evidência” dos terraplanistas. Pouco se lhes dá que experimentos científicos básicos mostram que dois corpos viajando na mesma velocidade estarão parados um em relação ao outro. Qualquer evidência científica é descartada como parte de um sistema montado para enganar.
Este é o cerne do critério que utilizo: se cheira a Teoria da Conspiração, descarto. Cheirar a Teoria da Conspiração significa ter alguns dos requisitos listados acima. E descarto a priori porque não teríamos base para discussão. Estamos em universos diferentes, utilizando ferramentas de análise diferentes. Portanto, o máximo que posso fazer é desejar toda a felicidade do mundo para os conspiracionistas. Sejam felizes com sua Grande Tese, não serei eu a tentar convencê-los do contrário.
A coisa pode ficar séria
Propositalmente, considerei um caso extremo de Teoria da Conspiração, o terraplanismo. Quero acreditar que a maior parte das pessoas que lerão este artigo não deem maior importância a esse tema. Eu mesmo não dava, até descobrir que há comunidades que se reúnem em torno do tema. Mas essas pessoas são inofensivas, sua fé não vai mudar o destino da humanidade.
Ocorre que há Teorias da Conspiração que são realmente perigosas e podem fazer mal. Vou dar três exemplos para ilustrar.
O primeiro é o que se refere ao poder dos judeus. Não de um ou outro judeu, mas da comunidade judaica. O antissemitismo marca o povo judeu desde sempre, mas é com a edição do livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, no final do século XIX, que a Teoria da Conspiração ganha contornos bem definidos: o plano judaico de dominação do mundo. Esta obra é citada por Hitler no seu livro Mein Kampf, e serviu de base para concretizar o antissemitismo assassino na Europa das décadas de 30 e 40 do século passado. E note que, como qualquer Teoria da Conspiração, não há como refutá-la. Trata-se de uma convicção, gerada por um preconceito primordial.
A Grande Tese, neste caso, é que haveria um plano de dominação do mundo por parte dos judeus. Claro que, em sendo verdade, este plano deveria ser parado de qualquer forma. E qualquer forma significou a morte de 6 milhões de judeus na Europa. Exemplo de uma Teoria da Conspiração muito mais perigosa do que o terraplanismo.
Um segundo exemplo de Teoria da Conspiração perigosa é o movimento anti-vacina.
Iniciei minha carreira em um grande banco internacional. Minha filha mais velha era um bebê na época e, como todo pai consciente, cumpria a tabela de vacinação. Um gerente mais velho, quando soube que eu levava minha filha para tomar vacinas, disse-me algo na linha “então você coloca qualquer substância dentro do corpo de sua filha?” Era um anti-vaxx. Isso era 1990, o que mostra que esse movimento não é de hoje. Depois soube que também era adepto de coisas esotéricas. Essas coisas nunca vêm sozinhas. No documentário sobre terraplanismo, alguns dos entrevistados são também anti-vaxx. Como se trata de uma negação do conhecimento científico, é só natural que tudo o que cheire a ciência seja rejeitado.
A Grande Tese, segundo este gerente, é que os grandes laboratórios ganhavam muito dinheiro convencendo os governos e as pessoas de que essas doenças contra as quais as vacinas protegem são muito perigosas, quando, na verdade, o grande perigo eram as próprias vacinas. Essas sim é que deixavam as pessoas doentes, o que fechava o círculo, pois os mesmos laboratórios vendiam os remédios. Não importavam evidências de erradicação de doenças que antes existiam, a Grande Tese se fechava em si mesma em uma lógica irrefutável. Aprendi ali que discutir com terraplanistas de qualquer gênero não leva a parte alguma.
Pelo menos, no caso deste gerente, as vacinas causavam apenas doenças. Hoje, as vacinas transmitem genes que funcionam como chips que nos marcam para o controle de uma Nova Ordem Mundial. Enfim, a coisa se sofisticou com o tempo.
Note que aqui, novamente, a Teoria da Conspiração é muito perigosa. A cobertura de vacinação vem caindo com o tempo, e doenças como o sarampo, que já há algum tempo vinham sendo controladas, voltaram com força. Trata-se de um problema de saúde pública sério.
O terceiro exemplo de Teoria da Conspiração nada inocente refere-se a acusações de fraudes em eleições. Este tipo de Teoria é perigoso porque ataca diretamente um dos principais alicerces do regime democrático: a lisura das eleições. Coloque em dúvida o resultado eleitoral, e todo o edifício democrático vem abaixo. Esta é justamente a Grande Tese: a democracia está dominada pelo establishment, que não deixa a voz do povo falar através das urnas. Qual a saída em um quadro desses? Pergunta apenas retórica, como demonstrou a invasão do Capitólio.
Há dois tipos de fraudes eleitorais. O primeiro ocorre em regimes autoritários, onde as eleições são apenas um arremedo de cumprimento do ritual democrático, feitas apenas para cumprir tabela em uma democracia de fachada. É o que vemos na Venezuela, por exemplo.
O segundo tipo de fraude é o que ocorre em democracias bem estabelecidas. São pequenos delitos, que não são, via de regra, suficientes para mudar uma eleição majoritária. O think tank Heritage Foundation mantém uma página onde lista todas as fraudes detectadas em todas as eleições norte-americanas. Nas eleições de 2020, por exemplo, o site lista 16 fraudes. Já nas eleições de 2016, o número de fraudes listadas sobe para 62! Ou seja, no ano da eleição de Trump, o número de fraudes é quase quatro vezes maior do que no ano da eleição de Biden.
Alguma dessas fraudes, ou mesmo o conjunto delas, foi suficiente para mudar os resultados agregados? Provavelmente não. Mesmo porque, seus efeitos foram sanados. A questão, obviamente, não está nesses casos, mas naqueles não detectados, ou detectados, mas não devidamente investigados. Quantos desses casos existem? Seriam em número suficiente para mudar o resultado eleitoral?
Aqui entra a Teoria da Conspiração.
Fraude eleitoral: uma Teoria da Conspiração antidemocrática
Donald Trump repetiu até o fim que as eleições foram fraudadas e que ele tinha sido o vencedor por uma larga margem. Teria havido uma gigantesca manipulação, com o simples objetivo de eleger o seu adversário, Joe Biden. E mais: além da manipulação em si, todo o sistema eleitoral, com seus comitês e juízes, estariam irremediavelmente corrompidos, de modo que não levaram adiante as devidas investigações que atestariam a manipulação.
Isto me faz lembrar uma passagem do documentário sobre o terraplanismo. Em determinado momento, um dos principais propugnadores da Teoria, Mark Sargent, afirma que os cientistas não conseguem refutar a Grande Tese. Na verdade, segundo ele, eles nem tentam fazê-lo, pois sabem que não teriam a mínima chance. Por isso, nem entram no ringue (ele usa essa expressão). Corta para um astrofísico (alguns cientistas são entrevistados ao longo do documentário), que afirma que não dá para ficar perdendo tempo com toda teoria maluca que aparece. Os cientistas têm mais o que fazer. É mais ou menos isso o que acontece com relação a denúncias de “fraudes gigantescas”.
É claro que toda denúncia séria deve ser checada. Não à toa, o site da Heritage Foundation lista as denúncias que resultaram em penalidade. Isso é uma coisa. Outra coisa são essas denúncias feitas por supostos experts ou denunciantes nem sempre identificados, apontando esquemas óbvios de fraude. Tão óbvios, que realmente fica difícil de entender por que os diversos profissionais do sistema eleitoral não lhes deram ouvidos. Só tem uma explicação, na cabeça dos teoristas: assim como acontece com os cientistas, os profissionais do sistema eleitoral nem se atrevem a entrar no ringue, pois sabem que seriam fragorosamente derrotados. Mantém uma farsa, com interesses escusos e obscuros. Assim, milhares de mesários, membros de comitês eleitorais e juízes estariam mancomunados com o establishment para esconder a Verdade.
Bem, eu não deveria fazer isso, mas vou fazer, em atenção àqueles que realmente têm dúvidas sinceras sobre a lisura do último pleito nos EUA. Pessoas que não têm uma Grande Tese a priori, mas ouviram tanto falar em fraudes e ouviram tantas histórias, que realmente ficaram na dúvida. Para essas pessoas, não basta dizer “os cientistas afirmam que a terra é redonda”. Ou, no caso, que as autoridades competentes asseguraram que as eleições foram limpas e seguras. Gostariam de ver uma refutação objetiva de cada uma das denúncias. Então, vamos lá.
Para tanto, vou usar como fonte o site FactCheck.org. Claro, quem tem a Grande Tese da fraude como premissa pétrea, este site, assim como todos os sites de checagem de fatos, faz parte da Grande Mancomunação. Mas o que vai a seguir não é para os terraplanistas da democracia. Para estes, nada do que se diga os moverá. Assista o documentário e você entenderá o que quero dizer. O que vai a seguir, como disse acima, é dirigido para quem tem dúvidas sinceras. Se você não as tem, seja porque acredita na Grande Tese, seja porque não acredita, pode pular para a próxima seção, pois se trata de um trecho muito longo deste artigo.
Como ponto em comum de todos os casos a seguir, temos a sua publicação em redes sociais. As redes sociais são o canal pelo qual essas “denúncias” se proliferam. Normalmente em tom alarmista, a “denúncia” é feita por um “expert” ou por uma “testemunha ocular”, mas normalmente é impossível fazer o rastreamento de sua origem. Vamos aos casos.
31/10: Votos pré-preenchidos no Queens, NY. Uma “enxurrada” de votos pré-preenchidos com o voto em Biden teriam sido distribuídos no Queens, NYC, segundo um jornalista freelancer chamado Jake Novak, retuitado pelo filho de Trump. Na verdade, o jornalista mostrou apenas um voto pré-preenchido como evidência. A explicação é simples: este voto pertencia a uma pessoa que se mudou de NY para a Califórnia, e pediu um formulário. O formulário chegou em branco, mas na hora de colocar no correio, o eleitor (que preencheu com voto para Biden) não envelopou corretamente, e o voto acabou voltando para a sua antiga residência em NY.
03/11: Apagaram os votos em Utah: um vídeo no Instagram, em que uma senhora narra uma cena estranha, viralizou: seu marido foi votar, mas a máquina mostrou uma mensagem de que ele já havia votado. A mesa teria sido capaz de “apagar” o seu voto e, então, ele votou normalmente. O que aconteceu foi que, na geração do cartão para o voto, o mesário esqueceu-se de fazer um passo, o que, de fato não habilitou o cartão. É óbvio que, se esse fosse um problema recorrente, outros relatos desse tipo teriam aparecido.
03/11: “Joguei fora 100 votos pró-Trump!”: um cidadão da Pennsylvania, Sebastian Machado, dizendo-se mesário no condado de Erie, fez um vídeo no Instagram afirmando que, naquele dia, havia jogado mais de 100 votos pró-Trump fora. A junta eleitoral do condado de Erie negou que o cidadão trabalhasse como mesário em qualquer seção eleitoral, ou mesmo fosse um cidadão registrado do condado.
04/11: Biden ganha 140 mil votos em segundos no Michigan: o número de votos pró-Biden de repente deu um salto de 140 mil no condado de Shiawassee, no Michigan, ultrapassando, inclusive, o número de eleitores registrados no condado. O próprio Trump tuitou sobre o assunto. Ocorre que houve um erro na transcrição dos resultados nesse condado, resolvido assim que descoberto. Os dados do próprio dia passam por checagens antes de se tornarem oficiais. O resultado incorreto foi o primeiro divulgado, e corrigido assim que checado.
04/11: Votos pró-Trump não contados por terem sido preenchidos com lápis no Arizona: um vídeo que viralizou mostrava um homem em frente a uma sessão eleitoral no condado de Maricopa, Arizona, dizendo que as pessoas estavam sendo orientadas a marcar o seu voto com “lápis bem apontados”, o que invalidaria os seus votos. E aquele condado seria pró-Trump. Obviamente, o comitê eleitoral afirmou que todos os votos seriam contados, independentemente do tipo de caneta ou lápis utilizado.
04/11: Mais votos do que eleitores em Wisconsin. Vários posts mostravam números errados. Era a coisa mais fácil do mundo verificar que houve 3.297.137 votos no Estado, enquanto há 3.684.726 eleitores.
05/11: Muitos formulários para votar pelo correio eram ilegítimos. Segundo a narrativa criada pelo QAnon, as cédulas de votação por correio seriam produzidas pelo Homeland Security com um isótopo que os identificaria. Os democratas teriam impresso milhares de cédulas falsas, que seriam identificadas através da falta dessa marca, desmascarando a farsa democrata. Tudo falso, do início ao fim. Parece aqueles tuítes super-bem-informados, que nos avisavam que a derrota na verdade era uma vitória, e que tudo seria esclarecido em breve…
06/11: Eleitor em Detroit entra com processo contra as eleições. Em uma suposta reportagem da Fox, um eleitor em Detroit teria entrado com um processo contra a junta eleitoral da cidade, acusando-a de ter 4.788 registros duplicados, 32.519 mais eleitores registrados do que eleitores válidos, 2.503 eleitores mortos e um eleitor nascido em 1823. Só tem um problema: a reportagem era do final de 2019, e o eleitor retirou as acusações de maneira espontânea no início de 2020, depois de a cidade demonstrar que não havia irregularidades.
Pennsylvania: Trump alegou que houve uma imensidade de cédulas recebidas pelo correio depois do dia 03. A lei do Estado permitia considerar votos que chegassem até o dia 06, desde que houvesse um carimbo do correio com data máxima de 03/11. Trump alegou que a maioria não tinha carimbo, o que é simplesmente falso. Além disso, esses votos foram contados separadamente e, mesmo sem eles, Trump perde no Estado.
Michigan: Trump alegou que várias cédulas apareceram “do nada” de madrugada em Detroit, aparentemente baseando-se em um vídeo espalhado por um site chamado Texas Scorecard. O vídeo foi devidamente desmascarado. Além disso, a campanha de Trump alegou que seus delegados não puderam acompanhar a votação, o que é simplesmente uma inverdade (o juiz indeferiu a reclamação).
Georgia: Trump alegou que votos que chegaram depois do dia 03/11 foram contados, o que simplesmente não é verdade.
North Carolina: aqui, Trump reclamou que as cédulas enviadas pelo correio eram, na maioria, a favor de Biden. Isso parece natural, dado que os democratas fizeram campanha pelo voto via correio, ao passo que Trump demonizou essa forma de votação ao longo de toda a campanha. De qualquer forma, Trump ganhou este Estado.
Wisconsin: Trump alega que ganhou o Estado, mas sua vantagem foi “roubada” depois de estar em larga vantagem. Neste caso, não mostra nenhuma “evidência”. O fato é que os votos pelo correio viraram o jogo.
06/11: Fraude na contagem de votos na Pennsylvania: um vídeo mostrando contadores de votos supostamente preenchendo votos no condado de Delaware viralizou como prova de fraude. O vídeo faz parte do próprio streaming da seção eleitoral (não foi filmado de maneira escondida), e não mostra que a apenas 2 metros dali havia fiscais de ambos os partidos observando. Os contadores estavam transcrevendo votos que não estavam sendo lidos pelo scanner para cédulas novas, de modo que pudessem ser escaneadas. O curioso nessas coisas é porque esse tipo de fraude prejudicaria somente o candidato republicano.
06/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 em Michigan. Segundo denúncia do site conservador Project Veritas, ouvindo um denunciante anônimo de dentro dos correios, a instituição estaria carimbando cédulas com data de 03/11, de modo a validá-las. O vídeo foi retuitado por Donald Trump Jr. Obviamente, não se encontraram evidências. Além disso, Michigan é um dos Estados que não validam cédulas que chegam após o dia 03/11, mesmo que tenham o carimbo de 03/11, de modo que nem adiantaria carimbar com data anterior.
09/11: Mortos votando na Pennsylvania. Esta foi uma alegação muito comum dos apoiadores de Trump. O senador republicano Lindsey Graham afirmou em uma entrevista que a campanha de Trump havia identificado pelo menos 100 eleitores mortos registrados, e pelo menos 15 desses haviam realmente votado. Depois de muito espremer, a campanha apresentou uma evidência concreta, uma senhora que morreu em 22/10, a sua aplicação para votação pelo correio chegou no dia 23/10, e a cédula chegou com o seu voto no dia 02/11. Entrevistada, a filha da eleitora não conseguiu explicar por que a cédula foi enviada depois da morte da mãe. De qualquer forma, o voto da mãe foi para Trump (aliás, sempre me pergunto por que a fraude teria apenas um lado). De qualquer forma, votos de pessoas mortas são relativamente raros, e normalmente devido a erros administrativos. São incapazes de mudar resultados como o da Pennsylvania, que teve diferença de 45 mil votos.
10/11: Mortos votando na Pennsylvania – 2. Uma organização chamada Public Interest Legal Foundation entrou, em outubro, com uma ação na justiça da Pennsylvania, alegando que havia 21 mil defuntos na lista de eleitores registrados, pedindo o cancelamento desses registros. O juiz federal que julgou o caso indeferiu o pedido por falta de provas. Os apoiadores de Trump usaram esse caso para voltar a afirmar que mortos votaram na Pennsylvania.
12/11: Votos exclusivos em Biden na Georgia. Um post retuitado pelos apoiadores de Trump, incluindo seu filho Donald Trump Jr. dizia o seguinte: “Na Georgia, cédulas onde o eleitor votou APENAS no presidente: Trump: 818, Biden: 95.801”. Ou seja, muito suspeito, segundo a campanha de Trump. Estes números não estão corretos. Houve 4.992.420 votos na eleição presidencial e 4.945.792 votos na eleição para o Senado. Uma diferença de 46.628 votos. Portanto, é impossível que 95.000 votos tenham sido dados somente para Biden, sem votação para o Senado. A única coisa que esse número de 95.000 votos a mais poderia significar é que Biden recebeu esse montante a mais em relação ao candidato democrata ao Senado. Ou seja, houve eleitores que escolheram Biden e o candidato republicano ao Senado. Além do mais, é impossível ter acesso a esse nível de detalhamento da votação com os números divulgados.
12/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 na Pennsylvania. Um funcionário dos correios do condado de Erie, Pennsylvania, chamado Richard Hopkins, denunciou a conversa de dois supervisores que, segundo eles, estariam falando sobre carimbar cédulas com data de 03/11, mesmo tendo chegado aos correios posteriormente. Trump chegou a chamar esse funcionário de “grande patriota”. Um levantamento do jornal local concluiu que das 129 cédulas carimbadas com a data de 03/11, apenas duas haviam sido carimbadas pela agência local dos correios. Todas as outras haviam sido carimbadas em lugares tão distantes quanto California e Washington. Além disso, em investigação posterior, o funcionário se contradisse, e admitiu que poderia ter inventado boa parte do diálogo.
13/11: Em um tuíte, Trump alega que o sistema eleitoral deletou milhões de votos a seu favor e mudou milhares de votos dele para o seu rival. Essa alegação de Trump teve origem em uma reportagem do canal conservador OANN, que alegava que 435 mil votos de Trump haviam sido mudados para Biden e 2,7 milhões de votos para Trump haviam simplesmente desaparecido nas máquinas que usavam o Sistema Dominion de votação. Esta seria a conclusão de um relatório do Edison Research, uma firma de pesquisa de consumo que coordenou a contagem de votos para os grandes canais nacionais de TV. O canal OANN aparentemente colheu essas informações do site Gateway Pundit, que cita um post de um anônimo, que por sua vez afirmou que fez essa análise com base em dados do Edison Research. O Edison Research afirmou que nunca produziu um relatório desse tipo. São vários os depoimentos contra esse tipo de afirmação, mas o que mais me convenceu foi o do chefe de operações do OSET Institute, uma entidade que se dedica à tecnologia de votação: “a única forma de chegar a essas conclusões seria uma completa auditoria forense das máquinas em nível nacional. Não há como se concluir nada em tão pouco tempo. É simplesmente impossível.”
13/11: Cédulas “corrigidas” na Pennsylvania. O caso é o seguinte: houve uma diretiva geral do comitê eleitoral de que cédulas enviadas pelo correio e que fossem achadas com erros formais ao serem abertas, poderiam ter os seus respectivos eleitores alertados, de modo a que pudessem corrigir o seu voto. Essa diretiva não foi seguida uniformemente entre todos os condados da Pennsylvania. Ou seja, em alguns condados os eleitores foram avisados e puderam votar novamente, enquanto em outros não foram avisados, e seus votos foram anulados. Os republicanos alegam que os condados que não seguiram a diretiva eram predominantemente republicanos, ao passo que os que seguiram eram predominantemente democratas. Portanto, a “correção” teria beneficiado os democratas. Ora, há exemplos de condados republicanos que seguiram a diretiva, enquanto alguns condados democratas não seguiram. De qualquer modo, permitir a “correção” de cédulas deve ter beneficiado Biden, pois os democratas usaram mais cédulas por correio do que os republicanos. Estes alegam que a “correção” é contra a lei, e entraram com um processo, que estava sendo julgado quando foi escrito este racional. De qualquer forma, o número de cédulas que foram “corrigidas” foi muito pequeno para mudar o resultado do Estado.
13/11: O supercomputador que mudou votos. Em 31/10, um blog chamado American Report afirmou, com base no relato de um denunciante chamado Dennis Montgomery, que a campanha de Biden iria usar um supercomputador chamado The Hammer, rodando um software chamado Scorecard, para virar votos a seu favor. Uma passagem na CNN na noite da apuração, em que 19.958 votos passaram de Trump para Biden na Pennsylvania, deu gás para essa teoria. Na verdade, ocorreu um erro humano na totalização pela Edison Research, que corrigiu o dado cerca de uma hora depois. Não foi um erro da junta eleitoral. No final, o condado onde ocorreu o erro apresentou vitória de Trump.
17/11: Um diretor da campanha de Biden é preso por fraude. Dallas Jones, do staff da campanha de Biden, teria sido preso, acusado de chefiar um esquema de fraude eleitoral no Texas, usando nomes de sem-teto, idosos e mortos para criar votos falsos para Biden. Ocorre que Dallas Jones não foi preso. A foto da prisão, usada nos posts, é de outra pessoa.
20/11: Urnas eleitorais recheadas de votos falsos na Philadelphia. Segundo o Buffalo Chronicle, um site operado por um consultor político pró-Trump, uma multidão liderada por Joseph “Skinny Joey” Merlino recheou várias urnas com 300 mil votos pró-Biden, em troca de uma recompensa de US$ 3 milhões. Merlino, de acordo com seu advogado, afirmou que a história é uma loucura. Mesmo Rudy Giuliani achou a história meio forçada, em uma entrevista para a Fox News. O porta-voz da comissão eleitoral da cidade disse ser ridículo achar que alguém conseguiria entrar na sede do centro de apurações com várias urnas falsas.
25/11: Máquinas Smartmatic viraram votos nas eleições. A advogada pessoal de Trump, Sidney Powell, alegou que as máquinas Smartmatic teria virado votos em favor de Biden, usando a mesma tecnologia desenvolvida para beneficiar Hugo Chávez, na Venezuela. De fato, os fundadores são venezuelanos e seu primeiro contrato foi para as eleições venezuelanas. No entanto, a Smartmatic forneceu máquinas para apenas um condado nas eleições de 2020, Los Angeles, onde Biden ganhou por 71-27, mais ou menos a mesma proporção da vitória de Hillary Clinton em 2016 no mesmo condado (72-23). Para dar sustentação à tese, Powell afirmou que as máquinas Dominion (que estão presentes em 30% das seções eleitorais nos EUA) rodam um software da Smartmatic, pois a Dominion comprou em 2010 uma outra firma chamada SVS que sucedeu a uma outra firma chamada Sequoia, que havia sido adquirida pela Smartmatic em 2005 e vendida em 2007 (ufa, haja ligação de pontos!).
03/12: O mais importante discurso de Trump. Esse discurso é importante porque elenca todas as alegações de fraudes. FactCheck.org derruba uma a uma. Nenhuma novidade em relação ao que foi visto acima, mas serve como um bom resumo da coisa toda.
Bem, é isso. Gastei todo esse tempo transcrevendo todas as acusações em atenção àqueles para os quais não basta um “argumento de autoridade”, ou mesmo um raciocínio lógico, do tipo “teoria da conspiração exige a coordenação impossível de milhares de pessoas para funcionar”. Estão aí as não-evidências de fraude.
Agora, vamos falar das eleições brasileiras.
Fraude eleitoral no Brasil: a nossa Teoria da Conspiração
“Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavra, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de manipulação e de fraudes.”
O presidente Jair Bolsonaro proferiu essas palavras no dia 09/03/2020 em um evento evangélico em Miami. Até o momento em que escrevo, Bolsonaro não mostrou as “provas que tenho em minhas mãos”. Ficou o dito pelo não dito. A não ser pelo fato de que a Grande Tese continua em pé: houve fraudes nas eleições de 2018 e haverá fraudes nas eleições de 2022.
O centro da polêmica está nas urnas eletrônicas que não imprimem o voto. Vimos na seção anterior que a campanha do ex-presidente Donald Trump acusou as urnas eletrônicas de “virarem votos” para o seu adversário. O curioso é que essas máquinas imprimem o voto. De forma que a impressão dos votos não foi suficiente para invalidar a Grande Tese. O mesmo ocorrerá aqui. A Grande Tese da fraude seguirá viva e inteira mesmo se as urnas imprimirem os votos.
Cá como lá, abundam vídeos e posts nas redes sociais apontando supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Não vou aqui gastar tempo descrevendo cada uma como fiz acima. Vou apenas listá-las abaixo, com as devidas refutações do site Comprova, um checador de fatos de responsabilidade dos principais veículos de imprensa do país. Aqui, novamente: a Grande Tese da fraude envolve também a imprensa e esses institutos de verificação de boatos. Portanto, para quem acredita na Grande Tese no matter what, pode pular esta parte. Estas explicações são para aqueles que têm dúvidas sinceras.
A respeito da segurança das urnas eletrônicas, sugiro fortemente assistir aos dois vídeos a seguir (aviso de que se trata de dois vídeos gravados em um evento técnico, de modo que há muita linguagem técnica).
O primeiro é uma palestra de 40 minutos com o especialista em segurança de dados Diego Aranha, talvez o mais vocal crítico da segurança das urnas eletrônicas no Brasil e advogado do voto impresso pelas urnas eletrônicas como único meio seguro de auditoria do voto.
O segundo vídeo, um pouco mais longo (uma hora) é um debate, no mesmo evento, entre Diego Aranha e um técnico do TSE, em que este rebate ponto por ponto dos argumentos de Aranha. No final, ficam claras duas coisas: 1) É possível sim auditar a totalização dos votos (o PSDB fez isso em 2014) e 2) A única vulnerabilidade do sistema é um ataque interno, ou seja, alguém do próprio TSE introduzir um software malicioso que manipule os resultados. Hackers externos não têm acesso ao sistema. Fica então a questão: vale gastar R$ 2,5 bilhões para introduzir um sistema que, por ser mecânico, pode resultar em problemas em várias seções eleitorais para, no final, não servir para desmontar a Grande Tese da fraude, como vimos nas eleições americanas?
Minha opinião: nenhum sistema do mundo é 100% seguro. As cédulas em papel eram obviamente inseguras, e a impressão do voto não tornará o sistema 100% seguro também. A auditoria permitida pelo voto impresso é uma miragem, pois sempre um agente interno pode também manipular estes votos. Ou seja, você conferiu o seu voto no papel, mas esse papel pode ser trocado por outro no caminho da apuração. Não existe nada 100% seguro. E, como não existe nada 100% seguro, nunca será possível refutar a Grande Tese.
Eliane Catanhêde é colunista política. Não é analista nem muito menos cientista política. É colunista. E, sendo colunista, tudo o que escreve tem fonte, tenha sempre isso em mente.
Não é à toa que o nome de Luiza Trajano aparece nesta coluna. Noutro dia, o nome da fundadora da Magazine Luiza apareceu em uma outra notinha como vice dos sonhos de Lula.
Luiza Trajano está se preparando para entrar no jogo da sucessão de 2022. A colunista descarta Eduardo Leite, por ter “pouca experiência política” mas acolhe o nome de Trajano como uma alternativa séria. No fundo, o que Catanhêde e todos os jornalistas e analistas buscam desesperadamente é uma alternativa “de centro” viável.
Por algum motivo misterioso, Trajano teria chances reais em um campo onde nomes muito mais consistentes como Doria, Huck, Moro e até Eduardo Leite já não têm chances. O desespero obnubila o raciocínio das pessoas.
A mando de Lula, Haddad se auto-anunciou como pré-candidato do PT à presidência nas eleições de 2022.
Como interpretar esse movimento?
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de que o anúncio foi feito por Haddad e não pela direção do partido. Em qualquer partido sem dono, há uma briga de foice pela legenda entre vários pretendentes. Não no PT. O PT tem dono.
O segundo aspecto que me chamou a atenção foi o silêncio de Lula. Foi Haddad a fazer o anúncio, citando Lula. Por que não o próprio Lula a ungir o seu pré-candidato? Aliás, o silêncio de Lula tem sido ensurdecedor desde a sua saída da prisão. Tínhamos mais notícias de Lula durante a sua estadia em Curitiba do que depois.
Uma pista para esse silêncio pode ser encontrada na notinha da Coluna do Estadão, encomendada por “ministros do Supremo”. Segunda a nota, o anúncio da pré-candidatura de Haddad “baixa a fervura” do julgamento a respeito da parcialidade de Moro, o que abriria as portas para a anulação da sentença e, consequentemente, a purificação da ficha de Lula. Em outras palavras, o julgamento no Supremo seria absolutamente técnico, pois o seu viés político (permitir a candidatura de Lula) estaria mitigado pelo anúncio de uma alternativa “viável”.
Bem, todos esses movimentos apontam para uma candidatura Lula em 2022. Seu silêncio é o da raposa que sabe que não ganha nada ficando ao sol dois anos antes da eleição. Ele não precisa trabalhar para ser conhecido, então não precisa começar a fazer campanha já. Aliás, a votação de Andrade em 2018 mostra que Lula consegue uma votação expressiva mesmo não aparecendo na cédula.
Como nota cômica, a matéria traz o depoimento de Boulos, reclamando que o PT deveria “discutir projetos” antes de “discutir nomes”. O sujeito acha realmente que existem chances de o PT apoiá-lo em 2022. Não consigo parar de rir.
O candidato do PT em 2022 será Lula.
PS.: há uma outra hipótese para o sumiço de Lula: ele estaria doente e, de fato, a unção de Haddad representaria uma passagem de bastão dentro do partido. Desse modo, o julgamento no STF serviria para dar um lustro na biografia do condenado, mais do que abrir as portas das eleições. É só uma hipótese menos provável.
Pra não variar, artigo perfeito de William Waack. Em resumo, o fenômeno de 2018 foi único, voltamos à normalidade da política tradicional, onde quem comanda são os políticos profissionais e suas máquinas partidárias.
Não que Bolsonaro não seja um político profissional. Ninguém passa três décadas no Congresso sem sê-lo. Mas o capitão nunca teve apreço pela vida partidária, sempre agiu como um lobo solitário. Basta dar uma olhada na lista de agremiações às quais pertenceu durante sua vida parlamentar. Para concorrer à presidência, alugou uma sigla, para dela sair na primeira oportunidade.
Você já ouviu falar na Unidade Popular? Trata-se de (mais) um partido de esquerda radical, aprovado pelo TSE em 10/12/2019. Pois bem, se um troço desses consegue 500 mil assinaturas para ser aprovado, como um fenômeno popular como Jair Bolsonaro não consegue as assinaturas para fundar o Aliança Pelo Brasil? Só tem uma explicação: ele não quer a aporrinhação de ter um partido. Ele é um lobo solitário. Mesmo que, eventualmente, o Aliança pelo Brasil seja criado, provavelmente ele vai arrumar uma treta para sair do próprio partido.
2022 repetirá 2018? Muito difícil. A onda anti-PT, que coroou o mais anti-petista de todos, acabou, como disse Waack. Não que o PT tenha alguma chance nas próximas eleições. É justamente o inverso: como o PT claramente perdeu-se no caminho e está desaparecendo a olhos vistos como força política, o anti-petismo também perde o seu sentido. E, em uma eleição onde as narrativas perdem força, ganha o tradicional: os políticos tradicionais e suas máquinas partidárias. Foi o que demonstrou essas eleições municipais e o que, provavelmente, vai demonstrar as eleições de 2022.
Bolsonaro pode até ganhar a disputa pela reeleição. Mas, se ganhar, não será mais como um outsider, mas como um legítimo representante do sistema.
Um total de 1.216 candidatos concorreram nas eleições presidenciais norte-americanas: Joe Biden, Donald Trump e mais 1.214 candidatos independentes.
Surpreso com essa informação? Pois é. Quem está acostumado a ver apenas dois candidatos disputarem as eleições nos EUA, não imagina a quantidade de maluco que acha que pode ser presidente fora das máquinas partidárias dos partidos Democrata e Republicano.
Quem quer concorrer de verdade à cadeira no Salão Oval, submete-se ao escrutínio interno de um desses dois partidos, para, assim, poder contar com a máquina partidária trabalhando a seu favor. Uma campanha eleitoral do tamanho da americana envolve centenas de milhões de dólares, sem os quais não dá nem para começar a pensar em concorrer.
Pensei nisso quando vi as articulações entre Huck e Moro com vistas às eleições de 2022. Nenhum dos dois pertence a qualquer partido. E, mesmo assim, não são vistos como um dos 1.214 malucos que querem chegar à Casa Branca de forma independente. Pelo contrário: suas pretensões são levadas à sério pelos políticos e pela mídia.
Bolsonaro chegou ao poder em um partido de aluguel, ao qual não está mais afiliado. Nunca teve vida partidária, sempre foi um lobo solitário. A operação Lava-Jato desnudou um esquema de corrupção de tal envergadura, entranhada de tal forma nas máquinas partidárias e no financiamento eleitoral, que a ideia mesma de partido político tornou-se sinônimo de falcatrua. Bolsonaro surfou essa onda.
A questão de fundo, no entanto, é a seguinte: existe democracia sem partidos políticos fortes? Observando-se a experiência das maiores e mais estáveis democracias ocidentais, a resposta é um rotundo não. Ou, por outra: não temos experiência de democracias estáveis sem partidos políticos fortes.
O que é um partido? Um partido é um agrupamento de pessoas com ideias semelhantes e que trabalham de forma mais ou menos unida para chegar ao poder e implementar essas ideias. Um sistema de poder sem partidos fica refém de personalismos: o líder carismático, cuja palavra se torna lei.
No Brasil, temos dezenas de partidos políticos, assim como nos EUA, onde existem 52 partidos além dos democratas e republicanos. Apesar dessa miríade de partidos, somente alguns poucos realmente podem ter a pretensão de chegar ao poder máximo da República.
Um partido político não serve apenas para eleger o presidente. Há um sem número de cargos executivos e legislativos que formam a teia de sustentação de uma candidatura presidencial. Quer dizer, além do dinheiro, estamos falando também de apoio político para a campanha.
O fenômeno Bolsonaro foi único, em um momento particular da história brasileira. Pode até ser reeleito em 2022, com base em seus atributos pessoais, mas dificilmente fará o seu sucessor se não montar uma máquina partidária digna do nome. As dificuldades em montar o Aliança não autorizam muito otimismo nesse campo.
Achar que a democracia brasileira será uma exceção à regra das democracias ocidentais é uma ilusão. Aqui os partidos políticos continuarão a formar a infraestrutura do poder político. Bolsonaro já reconheceu esse fato implicitamente, ao liberar espaços para o Centrão em seu governo.
Huck e Moro, portanto, antes de pretenderem alguma coisa, precisarão encontrar partidos políticos que lhes deem base para a sua pretensão. Como disse acima, o fenômeno Bolsonaro foi único em um momento muito particular da história brasileira. Muito difícil se repetir, a não ser que outro fenômeno do porte da Lava-Jato ocorra novamente.
Daí, você vai ler a reportagem, e o único “aliado” entrevistado é Flávio Dino, governador do Maranhão e “cotado” para compor chapa com Huck. A reportagem vai além, dizendo que Dino já defendeu publicamente a aproximação de Huck com Lula.
Estamos a 2 anos das eleições. Luciano Huck é apenas uma possibilidade eleitoral. Uma possibilidade remota. A esquerda sonhava com um cavalo de Tróia que a levasse de volta ao poder, e Huck podia fazer esse papel. Ao entabular diálogo com Moro, Huck desmancha ilusões.
O que é uma chapa de centro? Basicamente é uma que é vista como de esquerda por quem é de direita, e vista como de direita por quem é de esquerda. Huck e Moro desagradam bolsonaristas e lulistas. Talvez esteja nascendo aí uma verdadeira chapa de centro.
Uma característica óbvia dos presidentes que conseguem se reeleger ou conseguem eleger seu sucessor é a sua popularidade. Resolvi dar uma olhada na popularidade dos presidentes, sondada pelos institutos de pesquisa de opinião, no mês de cada eleição. O gráfico está aí abaixo (resultado da média das sondagens), medindo a diferença entre “Ótimo/bom” e “Ruim/Péssimo”.
Podemos observar que todos os que tiveram sucesso tinham popularidade no campo positivo no mês da eleição (opinião favorável maior do que opinião desfavorável). O resultado mais apertado foi o da reeleição da Dilma. Coincidência ou não, foi a presidente que chegou no mês da eleição com a pior avaliação dentre aqueles presidentes que obtiveram sucesso.
Bem, hoje Bolsonaro tem o mesmo nível de popularidade de Dilma no final do seu 1o mandato. Se a regra fosse seguida e a eleição fosse hoje, o presidente poderia se reeleger, mas sua vitória seria apertada.
No entanto, a eleição é apenas daqui a dois anos. Como se encontrava a popularidade dos presidentes dois anos antes das eleições? Seria este um indicador confiável? Também elaborei um gráfico com esta informação.
Por incrível que pareça, não muda quase nada. A popularidade sobe, desce, mas quase sempre o número de dois anos antes dá o mesmo sinal do número no mês da eleição. A única possível exceção foi o primeiro mandato de Dilma, que tinha uma grande popularidade dois anos antes das eleições, e chegou na data com popularidade bem apertada. De qualquer maneira, confirmou o sinal dado dois anos antes (Dilma se reelegeu).
Se a regra de todas as eleições desde a redemocratização for seguida, Bolsonaro se reelege em 2022. Mas faltam ainda dois longos anos.
Aos que, de olho em 2022, estão fazendo as contas dos efeitos da brutal recessão que vamos enfrentar sobre a popularidade do presidente, um pouco de história.
Em 2008 ocorreu a maior crise financeira de todos os tempos, o que jogou o mundo em uma recessão global em 2009. Muitos viram na crise a morte do governo Lula.
Pois bem. A recuperação do PIB foi tão brutal como a recessão: o país cresceu 7,5% em 2010, número suficiente para eleger um poste.
A história pode não se repetir exatamente assim, pois estamos um ano para trás em relação ao ciclo eleitoral. Mas eu seria cauteloso ao avaliar o efeito dessa crise nas eleições de 2022.