Realidade, antídoto contra teorias da conspiração

A Fox News entrou em acordo com a Dominion, fabricante de urnas eletrônicas, e vai pagar uma indenização por difamação de 787 milhões de dólares. Sim, é isso mesmo que você leu: quase 1 bilhão de dólares. Isso porque a pedida da Dominion era de US$ 1,6 bilhão, mas Fox e Dominion chegaram a um acordo antes de iniciar a sessão do júri.

Para quem não se lembra, a Dominion foi acusada de manipular os resultados das eleições americanas em 2020. A história rocambolesca envolvia, inclusive, conexões com a Venezuela chavista. Enfim, era daquelas teorias da conspiração clássicas, em que “pontos suspeitos” eram ligados aleatoriamente para construir a tese desejada. A empresa foi alvo de várias reportagens com esse teor pela Fox News, que repercutia as teorias de Donald Trump e seus aliados, os quais, por sinal, também são objeto de processo de difamação por parte da Dominion.

No final do dia, teorias da conspiração não sobrevivem ao escrutínio da vida real.

Teoria da Conspiração e Eleições

Em um dos meus últimos artigos, esclareci qual o critério que utilizo para distinguir a verdade dos fatos: se “cheira” a teoria da conspiração, normalmente descarto. Alguns dos meus leitores mostraram desconforto, e com razão: afinal, como descartar a priori algo que nem sequer foi investigado? Não seria uma postura muito cômoda, preguiçosa até, ao simplesmente confiar em uma “regra geral”, sem se dar ao trabalho de verificar a sua veracidade?

Pensei no assunto com cuidado.

Vamos dividir esta discussão em duas partes: na primeira, definiremos o que é uma “Teoria da Conspiração”. Depois, com base nesta definição, concluiremos que, por construção, é absolutamente inútil investigar ou pesquisar o objeto de uma teoria da conspiração.

O que é Teoria da Conspiração?

Quando meus filhos eram pequenos, assistiam a vários desenhos no Cartoon Network. Um deles era Pink e o Cérebro, que envolvia dois personagens completamente antagônicos: Pink, um rato desmiolado que só aprontava confusão, e Cérebro, um rato superinteligente, cujo único objetivo na vida era nada menos do que “dominar o mundo”. Pink se preocupava com as coisas mundanas, enquanto Cérebro estava sempre preparando um plano genial para dominar o mundo.

Sempre quando ouço algo que me parece Teoria da Conspiração, lembro do Cérebro: deve haver um rato superinteligente tentando dominar o mundo por traz disso.

Teoria da Conspiração é qualquer explicação para um evento ou tese (que vou aqui chamar de Grande Tese) que envolva forças superiores e obscuras, as quais invariavelmente buscam manipular a realidade, na maior parte das vezes com motivações políticas.

Por que Teorias da Conspiração são inverossímeis? Por um motivo simples: para serem verdade, pressupõem a existência de um Cérebro que consegue puxar todas as cordas da realidade, de modo a criar uma realidade paralela que engana grande parte da humanidade, MENOS os iniciados que conseguem perceber a tramoia.

O documentário Behind the Curve, disponível no Netflix, explica exatamente este mecanismo.

Este documentário aponta com precisão as características de uma Teoria da Conspiração:

– Evidências apenas para os iniciados: as “evidências” encontradas a favor da Grande Tese são óbvias apenas para aqueles que compartilham da mesma fé. Por exemplo, uma das “evidências” de que a terra seria plana é que não há voos sobre os oceanos do hemisfério sul, que estariam muito próximos da “borda” do planeta. Mas obviamente há, o que não abala a fé dos terraplanistas.

– O “bom-senso” é a prova fundamental da Grande Tese. Se conseguimos andar em linha reta durante milhares de quilômetros, ou se consigo ver a linha do horizonte, ou se não “sinto” o movimento de rotação do planeta, é óbvio que a terra é plana. A Grande Tese é sempre sustentada pelo pensamento “não pode ser diferente disso”.

– A convicção vem antes da prova. O documentário mostra vários experimentos que frustram a Grande Tese. Mas isso acontece porque não “testaram direito”. Se o experimento não consegue provar, é porque não foi suficientemente bom. Ou, no máximo, há um paradoxo em busca de uma explicação.

– A falta de refutação formal e detalhada por parte dos cientistas é apontada como uma evidência em favor da Grande Tese. Não se lhes ocorre que, pelo disparatado da coisa, ninguém realmente vai perder seu precioso tempo refutando ponto por ponto. Por outro lado, evidências como fotos tiradas do espaço são descartadas como sendo parte da grande conspiração liderada pelo Cérebro.

– Reunião em comunidades. Os que comungam da mesma crença reúnem-se em comunidades que se autoalimentam com suas paranoias, e não se deixam levar por evidências contrárias à sua fé. Sim, porque a coisa se transforma em fé religiosa. Uns apoiando-se nos outros para sustentarem a sua fé.

– Forças ocultas e poderosas: Por fim, há sempre uma concertação de forças ocultas e poderosas que impõem a mentira com objetivos obscuros e sinistros. No caso do terraplanismo, a Nasa mente, mas não fica claro porque mentiria sobre isso. O fato é que mente, e por algum motivo muito grave deve ser.

Uma parte interessante do documentário é a descrição da Síndrome do Impostor e do Efeito Dunning-Kruger. A Síndrome do Impostor acomete acadêmicos que aprofundam em um determinado tópico e, em certo momento, conseguem ver o quanto ainda não sabem sobre aquele assunto. Assim, sentem-se como impostores, que afetam um conhecimento que supostamente não têm. Por outro lado, o Efeito Dunning-Kruger é exatamente o oposto: quanto menos uma pessoa sabe sobre um determinado tema, mais ela acha que já sabe tudo. Faz pesquisas na internet, vê vídeos no YouTube, lê artigos na Wikipedia e… voi lá! tornou-se um expert sobre aquele assunto. É interessante observar como esse padrão se repete: os teoristas da conspiração não têm dúvidas de nenhuma maneira sobre aquilo em que acreditam.

É inútil debater com conspiracionistas

Em determinado momento do documentário, um escritor de ficção científica define bem o problema: enquanto cientistas partem dos fatos para chegar em uma teoria, os teoristas da conspiração partem da teoria e buscam fatos que a comprove. E se os fatos não a comprovam, que se danem os fatos. O documentário mostra pelo menos três experimentos realizados pelos terraplanistas que não funcionam, mas isso não abala a sua fé na teoria.

Portanto, não há como debater contra a Grande Tese. Não estamos sobre o mesmo terreno, o campo de debate não é o mesmo. O teorista da conspiração está em um outro mundo, com suas próprias regras. Neste mundo, há pessoas poderosas querendo esconder a verdade. Eles, no entanto, por algum motivo, são os únicos que conhecem essa verdade. Mesmo contra todas as evidências.

Óbvio que eles falarão que somos nós que não estamos vendo as evidências, claras como a luz do dia. Uma “evidência” apresentada no documentário, por exemplo, é o fato de o planeta estar girando a uma velocidade estonteante, mas nós não sentimos absolutamente nada. Como isso é possível? O bom senso diz que estamos parados, claro. Esse é o tipo de “evidência” dos terraplanistas. Pouco se lhes dá que experimentos científicos básicos mostram que dois corpos viajando na mesma velocidade estarão parados um em relação ao outro. Qualquer evidência científica é descartada como parte de um sistema montado para enganar.

Este é o cerne do critério que utilizo: se cheira a Teoria da Conspiração, descarto. Cheirar a Teoria da Conspiração significa ter alguns dos requisitos listados acima. E descarto a priori porque não teríamos base para discussão. Estamos em universos diferentes, utilizando ferramentas de análise diferentes. Portanto, o máximo que posso fazer é desejar toda a felicidade do mundo para os conspiracionistas. Sejam felizes com sua Grande Tese, não serei eu a tentar convencê-los do contrário.

A coisa pode ficar séria

Propositalmente, considerei um caso extremo de Teoria da Conspiração, o terraplanismo. Quero acreditar que a maior parte das pessoas que lerão este artigo não deem maior importância a esse tema. Eu mesmo não dava, até descobrir que há comunidades que se reúnem em torno do tema. Mas essas pessoas são inofensivas, sua fé não vai mudar o destino da humanidade.

Ocorre que há Teorias da Conspiração que são realmente perigosas e podem fazer mal. Vou dar três exemplos para ilustrar.

O primeiro é o que se refere ao poder dos judeus. Não de um ou outro judeu, mas da comunidade judaica. O antissemitismo marca o povo judeu desde sempre, mas é com a edição do livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, no final do século XIX, que a Teoria da Conspiração ganha contornos bem definidos: o plano judaico de dominação do mundo. Esta obra é citada por Hitler no seu livro Mein Kampf, e serviu de base para concretizar o antissemitismo assassino na Europa das décadas de 30 e 40 do século passado. E note que, como qualquer Teoria da Conspiração, não há como refutá-la. Trata-se de uma convicção, gerada por um preconceito primordial.

A Grande Tese, neste caso, é que haveria um plano de dominação do mundo por parte dos judeus. Claro que, em sendo verdade, este plano deveria ser parado de qualquer forma. E qualquer forma significou a morte de 6 milhões de judeus na Europa. Exemplo de uma Teoria da Conspiração muito mais perigosa do que o terraplanismo.

Um segundo exemplo de Teoria da Conspiração perigosa é o movimento anti-vacina.

Iniciei minha carreira em um grande banco internacional. Minha filha mais velha era um bebê na época e, como todo pai consciente, cumpria a tabela de vacinação. Um gerente mais velho, quando soube que eu levava minha filha para tomar vacinas, disse-me algo na linha “então você coloca qualquer substância dentro do corpo de sua filha?” Era um anti-vaxx. Isso era 1990, o que mostra que esse movimento não é de hoje. Depois soube que também era adepto de coisas esotéricas. Essas coisas nunca vêm sozinhas. No documentário sobre terraplanismo, alguns dos entrevistados são também anti-vaxx. Como se trata de uma negação do conhecimento científico, é só natural que tudo o que cheire a ciência seja rejeitado.

A Grande Tese, segundo este gerente, é que os grandes laboratórios ganhavam muito dinheiro convencendo os governos e as pessoas de que essas doenças contra as quais as vacinas protegem são muito perigosas, quando, na verdade, o grande perigo eram as próprias vacinas. Essas sim é que deixavam as pessoas doentes, o que fechava o círculo, pois os mesmos laboratórios vendiam os remédios. Não importavam evidências de erradicação de doenças que antes existiam, a Grande Tese se fechava em si mesma em uma lógica irrefutável. Aprendi ali que discutir com terraplanistas de qualquer gênero não leva a parte alguma.

Pelo menos, no caso deste gerente, as vacinas causavam apenas doenças. Hoje, as vacinas transmitem genes que funcionam como chips que nos marcam para o controle de uma Nova Ordem Mundial. Enfim, a coisa se sofisticou com o tempo.

Note que aqui, novamente, a Teoria da Conspiração é muito perigosa. A cobertura de vacinação vem caindo com o tempo, e doenças como o sarampo, que já há algum tempo vinham sendo controladas, voltaram com força. Trata-se de um problema de saúde pública sério.

O terceiro exemplo de Teoria da Conspiração nada inocente refere-se a acusações de fraudes em eleições. Este tipo de Teoria é perigoso porque ataca diretamente um dos principais alicerces do regime democrático: a lisura das eleições. Coloque em dúvida o resultado eleitoral, e todo o edifício democrático vem abaixo. Esta é justamente a Grande Tese: a democracia está dominada pelo establishment, que não deixa a voz do povo falar através das urnas. Qual a saída em um quadro desses? Pergunta apenas retórica, como demonstrou a invasão do Capitólio.

Há dois tipos de fraudes eleitorais. O primeiro ocorre em regimes autoritários, onde as eleições são apenas um arremedo de cumprimento do ritual democrático, feitas apenas para cumprir tabela em uma democracia de fachada. É o que vemos na Venezuela, por exemplo.

O segundo tipo de fraude é o que ocorre em democracias bem estabelecidas. São pequenos delitos, que não são, via de regra, suficientes para mudar uma eleição majoritária. O think tank Heritage Foundation mantém uma página onde lista todas as fraudes detectadas em todas as eleições norte-americanas. Nas eleições de 2020, por exemplo, o site lista 16 fraudes. Já nas eleições de 2016, o número de fraudes listadas sobe para 62! Ou seja, no ano da eleição de Trump, o número de fraudes é quase quatro vezes maior do que no ano da eleição de Biden.

Alguma dessas fraudes, ou mesmo o conjunto delas, foi suficiente para mudar os resultados agregados? Provavelmente não. Mesmo porque, seus efeitos foram sanados. A questão, obviamente, não está nesses casos, mas naqueles não detectados, ou detectados, mas não devidamente investigados. Quantos desses casos existem? Seriam em número suficiente para mudar o resultado eleitoral?

Aqui entra a Teoria da Conspiração.

Fraude eleitoral: uma Teoria da Conspiração antidemocrática

Donald Trump repetiu até o fim que as eleições foram fraudadas e que ele tinha sido o vencedor por uma larga margem. Teria havido uma gigantesca manipulação, com o simples objetivo de eleger o seu adversário, Joe Biden. E mais: além da manipulação em si, todo o sistema eleitoral, com seus comitês e juízes, estariam irremediavelmente corrompidos, de modo que não levaram adiante as devidas investigações que atestariam a manipulação.

Isto me faz lembrar uma passagem do documentário sobre o terraplanismo. Em determinado momento, um dos principais propugnadores da Teoria, Mark Sargent, afirma que os cientistas não conseguem refutar a Grande Tese. Na verdade, segundo ele, eles nem tentam fazê-lo, pois sabem que não teriam a mínima chance. Por isso, nem entram no ringue (ele usa essa expressão). Corta para um astrofísico (alguns cientistas são entrevistados ao longo do documentário), que afirma que não dá para ficar perdendo tempo com toda teoria maluca que aparece. Os cientistas têm mais o que fazer. É mais ou menos isso o que acontece com relação a denúncias de “fraudes gigantescas”.

É claro que toda denúncia séria deve ser checada. Não à toa, o site da Heritage Foundation lista as denúncias que resultaram em penalidade. Isso é uma coisa. Outra coisa são essas denúncias feitas por supostos experts ou denunciantes nem sempre identificados, apontando esquemas óbvios de fraude. Tão óbvios, que realmente fica difícil de entender por que os diversos profissionais do sistema eleitoral não lhes deram ouvidos. Só tem uma explicação, na cabeça dos teoristas: assim como acontece com os cientistas, os profissionais do sistema eleitoral nem se atrevem a entrar no ringue, pois sabem que seriam fragorosamente derrotados. Mantém uma farsa, com interesses escusos e obscuros. Assim, milhares de mesários, membros de comitês eleitorais e juízes estariam mancomunados com o establishment para esconder a Verdade.

Bem, eu não deveria fazer isso, mas vou fazer, em atenção àqueles que realmente têm dúvidas sinceras sobre a lisura do último pleito nos EUA. Pessoas que não têm uma Grande Tese a priori, mas ouviram tanto falar em fraudes e ouviram tantas histórias, que realmente ficaram na dúvida. Para essas pessoas, não basta dizer “os cientistas afirmam que a terra é redonda”. Ou, no caso, que as autoridades competentes asseguraram que as eleições foram limpas e seguras. Gostariam de ver uma refutação objetiva de cada uma das denúncias. Então, vamos lá.

Para tanto, vou usar como fonte o site FactCheck.org. Claro, quem tem a Grande Tese da fraude como premissa pétrea, este site, assim como todos os sites de checagem de fatos, faz parte da Grande Mancomunação. Mas o que vai a seguir não é para os terraplanistas da democracia. Para estes, nada do que se diga os moverá. Assista o documentário e você entenderá o que quero dizer. O que vai a seguir, como disse acima, é dirigido para quem tem dúvidas sinceras. Se você não as tem, seja porque acredita na Grande Tese, seja porque não acredita, pode pular para a próxima seção, pois se trata de um trecho muito longo deste artigo.

Como ponto em comum de todos os casos a seguir, temos a sua publicação em redes sociais. As redes sociais são o canal pelo qual essas “denúncias” se proliferam. Normalmente em tom alarmista, a “denúncia” é feita por um “expert” ou por uma “testemunha ocular”, mas normalmente é impossível fazer o rastreamento de sua origem. Vamos aos casos.

31/10: Votos pré-preenchidos no Queens, NY. Uma “enxurrada” de votos pré-preenchidos com o voto em Biden teriam sido distribuídos no Queens, NYC, segundo um jornalista freelancer chamado Jake Novak, retuitado pelo filho de Trump. Na verdade, o jornalista mostrou apenas um voto pré-preenchido como evidência. A explicação é simples: este voto pertencia a uma pessoa que se mudou de NY para a Califórnia, e pediu um formulário. O formulário chegou em branco, mas na hora de colocar no correio, o eleitor (que preencheu com voto para Biden) não envelopou corretamente, e o voto acabou voltando para a sua antiga residência em NY.

03/11: Apagaram os votos em Utah: um vídeo no Instagram, em que uma senhora narra uma cena estranha, viralizou: seu marido foi votar, mas a máquina mostrou uma mensagem de que ele já havia votado. A mesa teria sido capaz de “apagar” o seu voto e, então, ele votou normalmente. O que aconteceu foi que, na geração do cartão para o voto, o mesário esqueceu-se de fazer um passo, o que, de fato não habilitou o cartão. É óbvio que, se esse fosse um problema recorrente, outros relatos desse tipo teriam aparecido.

03/11: “Joguei fora 100 votos pró-Trump!”: um cidadão da Pennsylvania, Sebastian Machado, dizendo-se mesário no condado de Erie, fez um vídeo no Instagram afirmando que, naquele dia, havia jogado mais de 100 votos pró-Trump fora. A junta eleitoral do condado de Erie negou que o cidadão trabalhasse como mesário em qualquer seção eleitoral, ou mesmo fosse um cidadão registrado do condado.

04/11: Biden ganha 140 mil votos em segundos no Michigan: o número de votos pró-Biden de repente deu um salto de 140 mil no condado de Shiawassee, no Michigan, ultrapassando, inclusive, o número de eleitores registrados no condado. O próprio Trump tuitou sobre o assunto. Ocorre que houve um erro na transcrição dos resultados nesse condado, resolvido assim que descoberto. Os dados do próprio dia passam por checagens antes de se tornarem oficiais. O resultado incorreto foi o primeiro divulgado, e corrigido assim que checado.

04/11: Votos pró-Trump não contados por terem sido preenchidos com lápis no Arizona: um vídeo que viralizou mostrava um homem em frente a uma sessão eleitoral no condado de Maricopa, Arizona, dizendo que as pessoas estavam sendo orientadas a marcar o seu voto com “lápis bem apontados”, o que invalidaria os seus votos. E aquele condado seria pró-Trump. Obviamente, o comitê eleitoral afirmou que todos os votos seriam contados, independentemente do tipo de caneta ou lápis utilizado.

04/11: Mais votos do que eleitores em Wisconsin. Vários posts mostravam números errados. Era a coisa mais fácil do mundo verificar que houve 3.297.137 votos no Estado, enquanto há 3.684.726 eleitores.

05/11: Muitos formulários para votar pelo correio eram ilegítimos. Segundo a narrativa criada pelo QAnon, as cédulas de votação por correio seriam produzidas pelo Homeland Security com um isótopo que os identificaria. Os democratas teriam impresso milhares de cédulas falsas, que seriam identificadas através da falta dessa marca, desmascarando a farsa democrata. Tudo falso, do início ao fim. Parece aqueles tuítes super-bem-informados, que nos avisavam que a derrota na verdade era uma vitória, e que tudo seria esclarecido em breve…

06/11: Eleitor em Detroit entra com processo contra as eleições. Em uma suposta reportagem da Fox, um eleitor em Detroit teria entrado com um processo contra a junta eleitoral da cidade, acusando-a de ter 4.788 registros duplicados, 32.519 mais eleitores registrados do que eleitores válidos, 2.503 eleitores mortos e um eleitor nascido em 1823. Só tem um problema: a reportagem era do final de 2019, e o eleitor retirou as acusações de maneira espontânea no início de 2020, depois de a cidade demonstrar que não havia irregularidades.

06/11: Em discurso, Trump aponta uma série de irregularidades na Pennsylvania, Michigan, Georgia, North Carolina e Wisconsin. Nesse famoso discurso são várias as irregularidades apontadas. Vamos separar por Estados:

  • Pennsylvania: Trump alegou que houve uma imensidade de cédulas recebidas pelo correio depois do dia 03. A lei do Estado permitia considerar votos que chegassem até o dia 06, desde que houvesse um carimbo do correio com data máxima de 03/11. Trump alegou que a maioria não tinha carimbo, o que é simplesmente falso. Além disso, esses votos foram contados separadamente e, mesmo sem eles, Trump perde no Estado.
  • Michigan: Trump alegou que várias cédulas apareceram “do nada” de madrugada em Detroit, aparentemente baseando-se em um vídeo espalhado por um site chamado Texas Scorecard. O vídeo foi devidamente desmascarado. Além disso, a campanha de Trump alegou que seus delegados não puderam acompanhar a votação, o que é simplesmente uma inverdade (o juiz indeferiu a reclamação).
  • Georgia: Trump alegou que votos que chegaram depois do dia 03/11 foram contados, o que simplesmente não é verdade.
  • North Carolina: aqui, Trump reclamou que as cédulas enviadas pelo correio eram, na maioria, a favor de Biden. Isso parece natural, dado que os democratas fizeram campanha pelo voto via correio, ao passo que Trump demonizou essa forma de votação ao longo de toda a campanha. De qualquer forma, Trump ganhou este Estado.
  • Wisconsin: Trump alega que ganhou o Estado, mas sua vantagem foi “roubada” depois de estar em larga vantagem. Neste caso, não mostra nenhuma “evidência”. O fato é que os votos pelo correio viraram o jogo.

06/11: Fraude na contagem de votos na Pennsylvania: um vídeo mostrando contadores de votos supostamente preenchendo votos no condado de Delaware viralizou como prova de fraude. O vídeo faz parte do próprio streaming da seção eleitoral (não foi filmado de maneira escondida), e não mostra que a apenas 2 metros dali havia fiscais de ambos os partidos observando. Os contadores estavam transcrevendo votos que não estavam sendo lidos pelo scanner para cédulas novas, de modo que pudessem ser escaneadas. O curioso nessas coisas é porque esse tipo de fraude prejudicaria somente o candidato republicano.

06/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 em Michigan. Segundo denúncia do site conservador Project Veritas, ouvindo um denunciante anônimo de dentro dos correios, a instituição estaria carimbando cédulas com data de 03/11, de modo a validá-las. O vídeo foi retuitado por Donald Trump Jr. Obviamente, não se encontraram evidências. Além disso, Michigan é um dos Estados que não validam cédulas que chegam após o dia 03/11, mesmo que tenham o carimbo de 03/11, de modo que nem adiantaria carimbar com data anterior.

09/11: Mortos votando na Pennsylvania. Esta foi uma alegação muito comum dos apoiadores de Trump. O senador republicano Lindsey Graham afirmou em uma entrevista que a campanha de Trump havia identificado pelo menos 100 eleitores mortos registrados, e pelo menos 15 desses haviam realmente votado. Depois de muito espremer, a campanha apresentou uma evidência concreta, uma senhora que morreu em 22/10, a sua aplicação para votação pelo correio chegou no dia 23/10, e a cédula chegou com o seu voto no dia 02/11. Entrevistada, a filha da eleitora não conseguiu explicar por que a cédula foi enviada depois da morte da mãe. De qualquer forma, o voto da mãe foi para Trump (aliás, sempre me pergunto por que a fraude teria apenas um lado). De qualquer forma, votos de pessoas mortas são relativamente raros, e normalmente devido a erros administrativos. São incapazes de mudar resultados como o da Pennsylvania, que teve diferença de 45 mil votos.

10/11: Mortos votando na Pennsylvania – 2. Uma organização chamada Public Interest Legal Foundation entrou, em outubro, com uma ação na justiça da Pennsylvania, alegando que havia 21 mil defuntos na lista de eleitores registrados, pedindo o cancelamento desses registros. O juiz federal que julgou o caso indeferiu o pedido por falta de provas. Os apoiadores de Trump usaram esse caso para voltar a afirmar que mortos votaram na Pennsylvania.

12/11: Votos exclusivos em Biden na Georgia. Um post retuitado pelos apoiadores de Trump, incluindo seu filho Donald Trump Jr. dizia o seguinte: “Na Georgia, cédulas onde o eleitor votou APENAS no presidente: Trump: 818, Biden: 95.801”. Ou seja, muito suspeito, segundo a campanha de Trump. Estes números não estão corretos. Houve 4.992.420 votos na eleição presidencial e 4.945.792 votos na eleição para o Senado. Uma diferença de 46.628 votos. Portanto, é impossível que 95.000 votos tenham sido dados somente para Biden, sem votação para o Senado. A única coisa que esse número de 95.000 votos a mais poderia significar é que Biden recebeu esse montante a mais em relação ao candidato democrata ao Senado. Ou seja, houve eleitores que escolheram Biden e o candidato republicano ao Senado. Além do mais, é impossível ter acesso a esse nível de detalhamento da votação com os números divulgados.

12/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 na Pennsylvania. Um funcionário dos correios do condado de Erie, Pennsylvania, chamado Richard Hopkins, denunciou a conversa de dois supervisores que, segundo eles, estariam falando sobre carimbar cédulas com data de 03/11, mesmo tendo chegado aos correios posteriormente. Trump chegou a chamar esse funcionário de “grande patriota”. Um levantamento do jornal local concluiu que das 129 cédulas carimbadas com a data de 03/11, apenas duas haviam sido carimbadas pela agência local dos correios. Todas as outras haviam sido carimbadas em lugares tão distantes quanto California e Washington. Além disso, em investigação posterior, o funcionário se contradisse, e admitiu que poderia ter inventado boa parte do diálogo.

13/11: Em um tuíte, Trump alega que o sistema eleitoral deletou milhões de votos a seu favor e mudou milhares de votos dele para o seu rival. Essa alegação de Trump teve origem em uma reportagem do canal conservador OANN, que alegava que 435 mil votos de Trump haviam sido mudados para Biden e 2,7 milhões de votos para Trump haviam simplesmente desaparecido nas máquinas que usavam o Sistema Dominion de votação. Esta seria a conclusão de um relatório do Edison Research, uma firma de pesquisa de consumo que coordenou a contagem de votos para os grandes canais nacionais de TV. O canal OANN aparentemente colheu essas informações do site Gateway Pundit, que cita um post de um anônimo, que por sua vez afirmou que fez essa análise com base em dados do Edison Research. O Edison Research afirmou que nunca produziu um relatório desse tipo. São vários os depoimentos contra esse tipo de afirmação, mas o que mais me convenceu foi o do chefe de operações do OSET Institute, uma entidade que se dedica à tecnologia de votação: “a única forma de chegar a essas conclusões seria uma completa auditoria forense das máquinas em nível nacional. Não há como se concluir nada em tão pouco tempo. É simplesmente impossível.”

13/11: Cédulas “corrigidas” na Pennsylvania. O caso é o seguinte: houve uma diretiva geral do comitê eleitoral de que cédulas enviadas pelo correio e que fossem achadas com erros formais ao serem abertas, poderiam ter os seus respectivos eleitores alertados, de modo a que pudessem corrigir o seu voto. Essa diretiva não foi seguida uniformemente entre todos os condados da Pennsylvania. Ou seja, em alguns condados os eleitores foram avisados e puderam votar novamente, enquanto em outros não foram avisados, e seus votos foram anulados. Os republicanos alegam que os condados que não seguiram a diretiva eram predominantemente republicanos, ao passo que os que seguiram eram predominantemente democratas. Portanto, a “correção” teria beneficiado os democratas. Ora, há exemplos de condados republicanos que seguiram a diretiva, enquanto alguns condados democratas não seguiram. De qualquer modo, permitir a “correção” de cédulas deve ter beneficiado Biden, pois os democratas usaram mais cédulas por correio do que os republicanos. Estes alegam que a “correção” é contra a lei, e entraram com um processo, que estava sendo julgado quando foi escrito este racional. De qualquer forma, o número de cédulas que foram “corrigidas” foi muito pequeno para mudar o resultado do Estado.

13/11: O supercomputador que mudou votos. Em 31/10, um blog chamado American Report afirmou, com base no relato de um denunciante chamado Dennis Montgomery, que a campanha de Biden iria usar um supercomputador chamado The Hammer, rodando um software chamado Scorecard, para virar votos a seu favor. Uma passagem na CNN na noite da apuração, em que 19.958 votos passaram de Trump para Biden na Pennsylvania, deu gás para essa teoria. Na verdade, ocorreu um erro humano na totalização pela Edison Research, que corrigiu o dado cerca de uma hora depois. Não foi um erro da junta eleitoral. No final, o condado onde ocorreu o erro apresentou vitória de Trump.

17/11: Um diretor da campanha de Biden é preso por fraude. Dallas Jones, do staff da campanha de Biden, teria sido preso, acusado de chefiar um esquema de fraude eleitoral no Texas, usando nomes de sem-teto, idosos e mortos para criar votos falsos para Biden. Ocorre que Dallas Jones não foi preso. A foto da prisão, usada nos posts, é de outra pessoa.

20/11: Urnas eleitorais recheadas de votos falsos na Philadelphia. Segundo o Buffalo Chronicle, um site operado por um consultor político pró-Trump, uma multidão liderada por Joseph “Skinny Joey” Merlino recheou várias urnas com 300 mil votos pró-Biden, em troca de uma recompensa de US$ 3 milhões. Merlino, de acordo com seu advogado, afirmou que a história é uma loucura. Mesmo Rudy Giuliani achou a história meio forçada, em uma entrevista para a Fox News. O porta-voz da comissão eleitoral da cidade disse ser ridículo achar que alguém conseguiria entrar na sede do centro de apurações com várias urnas falsas.

25/11: Máquinas Smartmatic viraram votos nas eleições. A advogada pessoal de Trump, Sidney Powell, alegou que as máquinas Smartmatic teria virado votos em favor de Biden, usando a mesma tecnologia desenvolvida para beneficiar Hugo Chávez, na Venezuela. De fato, os fundadores são venezuelanos e seu primeiro contrato foi para as eleições venezuelanas. No entanto, a Smartmatic forneceu máquinas para apenas um condado nas eleições de 2020, Los Angeles, onde Biden ganhou por 71-27, mais ou menos a mesma proporção da vitória de Hillary Clinton em 2016 no mesmo condado (72-23). Para dar sustentação à tese, Powell afirmou que as máquinas Dominion (que estão presentes em 30% das seções eleitorais nos EUA) rodam um software da Smartmatic, pois a Dominion comprou em 2010 uma outra firma chamada SVS que sucedeu a uma outra firma chamada Sequoia, que havia sido adquirida pela Smartmatic em 2005 e vendida em 2007 (ufa, haja ligação de pontos!).

03/12: O mais importante discurso de Trump. Esse discurso é importante porque elenca todas as alegações de fraudes. FactCheck.org derruba uma a uma. Nenhuma novidade em relação ao que foi visto acima, mas serve como um bom resumo da coisa toda.

Bem, é isso. Gastei todo esse tempo transcrevendo todas as acusações em atenção àqueles para os quais não basta um “argumento de autoridade”, ou mesmo um raciocínio lógico, do tipo “teoria da conspiração exige a coordenação impossível de milhares de pessoas para funcionar”. Estão aí as não-evidências de fraude.

Agora, vamos falar das eleições brasileiras.

Fraude eleitoral no Brasil: a nossa Teoria da Conspiração

“Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavra, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de manipulação e de fraudes.”

O presidente Jair Bolsonaro proferiu essas palavras no dia 09/03/2020 em um evento evangélico em Miami. Até o momento em que escrevo, Bolsonaro não mostrou as “provas que tenho em minhas mãos”. Ficou o dito pelo não dito. A não ser pelo fato de que a Grande Tese continua em pé: houve fraudes nas eleições de 2018 e haverá fraudes nas eleições de 2022.

O centro da polêmica está nas urnas eletrônicas que não imprimem o voto. Vimos na seção anterior que a campanha do ex-presidente Donald Trump acusou as urnas eletrônicas de “virarem votos” para o seu adversário. O curioso é que essas máquinas imprimem o voto. De forma que a impressão dos votos não foi suficiente para invalidar a Grande Tese. O mesmo ocorrerá aqui. A Grande Tese da fraude seguirá viva e inteira mesmo se as urnas imprimirem os votos.

Cá como lá, abundam vídeos e posts nas redes sociais apontando supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Não vou aqui gastar tempo descrevendo cada uma como fiz acima. Vou apenas listá-las abaixo, com as devidas refutações do site Comprova, um checador de fatos de responsabilidade dos principais veículos de imprensa do país. Aqui, novamente: a Grande Tese da fraude envolve também a imprensa e esses institutos de verificação de boatos. Portanto, para quem acredita na Grande Tese no matter what, pode pular esta parte. Estas explicações são para aqueles que têm dúvidas sinceras.

01/10/2020: É falso que apenas três países, inclusive o Brasil, utilizem urnas eletrônicas.

22/10/2020: Documento não prova fraude nas eleições de 2018 e nem comprova vitória de Bolsonaro no 1º turno.

13/11/2020: Sistema de voto eletrônico pode ser auditado, ao contrário do que afirma post.

13/11/2020: Smartmatic, que forneceu urnas para a Venezuela, nunca vendeu aparelhos para o Brasil.

15/11/2020: Ataque de hackers no sistema do TSE não viola segurança da eleição.

17/11/2020: Votação estável ao longo da apuração não indica fraude em São Paulo.

18/11/2020: É falso que votos recebidos por candidata a vereadora no Tocantins tenham reduzido ao longo da apuração.

18/11/2020: Apuração da eleição brasileira é aberta a qualquer pessoa, ao contrário do que afirma post.

19/11/2020: Sistema usado em vídeo para simular fraude não é o mesmo de urnas eletrônicas.

20/11/2020: É possível, sim, auditar e realizar recontagem dos votos, ao contrário do que afirma vídeo.

20/11/2020: É falso que o TSE atualizou apuração baseado em informações de site de notícias.

23/11/2020: Software usado em urnas eletrônicas brasileiras não é o mesmo que dos EUA.

29/11/2020: É falso que hacker tenha atacado sistema de votos do TSE.

29/11/2020: É falso que cabos eleitorais de Sarto tenham transportado urna adulterada.

04/12/2020: É enganoso vídeo que denuncia suposta fraude nas urnas em João Pessoa.

A respeito da segurança das urnas eletrônicas, sugiro fortemente assistir aos dois vídeos a seguir (aviso de que se trata de dois vídeos gravados em um evento técnico, de modo que há muita linguagem técnica).

O primeiro é uma palestra de 40 minutos com o especialista em segurança de dados Diego Aranha, talvez o mais vocal crítico da segurança das urnas eletrônicas no Brasil e advogado do voto impresso pelas urnas eletrônicas como único meio seguro de auditoria do voto.

O segundo vídeo, um pouco mais longo (uma hora) é um debate, no mesmo evento, entre Diego Aranha e um técnico do TSE, em que este rebate ponto por ponto dos argumentos de Aranha. No final, ficam claras duas coisas: 1) É possível sim auditar a totalização dos votos (o PSDB fez isso em 2014) e 2) A única vulnerabilidade do sistema é um ataque interno, ou seja, alguém do próprio TSE introduzir um software malicioso que manipule os resultados. Hackers externos não têm acesso ao sistema. Fica então a questão: vale gastar R$ 2,5 bilhões para introduzir um sistema que, por ser mecânico, pode resultar em problemas em várias seções eleitorais para, no final, não servir para desmontar a Grande Tese da fraude, como vimos nas eleições americanas?

Minha opinião: nenhum sistema do mundo é 100% seguro. As cédulas em papel eram obviamente inseguras, e a impressão do voto não tornará o sistema 100% seguro também. A auditoria permitida pelo voto impresso é uma miragem, pois sempre um agente interno pode também manipular estes votos. Ou seja, você conferiu o seu voto no papel, mas esse papel pode ser trocado por outro no caminho da apuração. Não existe nada 100% seguro. E, como não existe nada 100% seguro, nunca será possível refutar a Grande Tese.

Teorias da Conspiração never die.

Redes Sociais e poder político

Peço perdão aos leitores, mas este artigo acabou ficando muito longo. Trata-se de um assunto (ou vários assuntos, na verdade) muito delicado e controverso, e que, penso, não dá para tratar com palavras de ordem e raciocínios prontos. Esse artigo, na verdade, foi escrito enquanto eu mesmo pensava sobre o assunto, procurando fazer um todo que fizesse sentido para mim mesmo. Meu objetivo é fazer pensar, mais do que defender pontos de vista. Você pode não concordar com as premissas ou com as conclusões. Mas espero que, pelo menos, tenha paciência em me acompanhar nessa jornada.

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Confesso que tenho “mixed feelings” com relação à decisão de bloqueio da conta pessoal do (ainda) presidente dos EUA, Donald Trump, pelas redes sociais Facebook e Twitter (a que depois se juntaram Apple, Google e Amazon, ao banir o Parler, uma rede social usada alternativamente por Trump).

“Mixed feelings” porque são muitas e diversificadas as dimensões e implicações dessa decisão. Envolve liberdade de expressão, proteção às instituições democráticas e poder dos gigantes de tecnologia. Até a ordem em que esses assuntos são abordados denuncia o viés de quem está fazendo a análise. Se eu começar a falar que a liberdade de expressão é importante, mas só até o ponto em que não coloca em risco as instituições, é óbvio que estou relativizando a liberdade de expressão. Por outro lado, se digo que é muito importante preservar as instituições, desde que a liberdade de expressão seja preservada, as instituições é que foram relativizadas.

Para tentar fugir dessa armadilha, vou procurar extrair uma regra geral observando o que acontece em qualquer lugar do mundo a qualquer tempo, sem juízo de valor (por enquanto).

Regimes políticos

Antes de começar, vamos procurar definir o que é um regime político. Regime político é o arranjo de instituições que permite o exercício do poder. Em qualquer sociedade civilizada, em que não prevalece a lei do mais forte de indivíduos sobre outros indivíduos, há um certo arranjo que permite tomar decisões que terão influência sobre a sociedade como um todo. Isso vale para regimes totalitários, autoritários ou democráticos: a sociedade se organiza de tal forma a legitimar decisões que terão influência sobre a sociedade como um todo. É o que chamamos de “regras do jogo”.

Há dois tipos de oposição possíveis de serem feitas contra quem detém o poder: dentro das regras do jogo e fora das regras do jogo. Há regimes políticos em que a oposição dentro das regras do jogo é interditada. Portanto, somente resta a oposição fora das regras. Na verdade, há somente um regime que permite a oposição aberta dentro das regras do jogo: o regime democrático. Mas este ponto não nos interessa, por enquanto. Interessa-nos o caso de oposição fora das regras do jogo. Neste caso, todos os regimes, inclusive o democrático, se protegem. Sem exceção.

Qualquer tentativa de mudar o regime ou de desafiá-lo por fora das instituições é rechaçado por qualquer regime, de qualquer coloração a qualquer tempo. E o regime democrático não é exceção. É o que chamamos de “golpe de Estado”. Esta é a regra geral.

Claro que nada é preto no branco. Há um limite tênue, uma zona cinzenta, entre as regras do jogo e o uso que se faz dessas regras. O PT, por exemplo, insiste na tese do “golpe” por considerar que as regras foram usadas de maneira inadequada, no que seria um “golpe parlamentar”. Por outro lado, Maduro teria conquistado espaços de poder, a rigor, dentro das regras do regime: eleições e decisões judiciais. Nem o primeiro descumpriu qualquer preceito do Estado Democrático de Direito e nem o segundo é um exemplo de conformidade com as regras do jogo. No entanto, são exemplos de quão difícil é definir estes conceitos de maneira uniforme e que possam ser universalmente aceitos.

De qualquer modo, a regra geral continua valendo, mesmo que enfrentemos dificuldades em aplicá-la a casos particulares: qualquer regime usará de sua força para se auto proteger, mesmo o regime democrático. Esta é uma regra importante, pois justifica a limitação de direitos. Vamos ao caso da democracia, o regime campeão na defesa dos direitos humanos.

A limitação da liberdade de expressão no regime democrático

Não se pode usar dos direitos humanos garantidos pela democracia em atos fora das regras do jogo democrático. Em outras palavras: o regime democrático é regido por certas regras, e qualquer ato deve respeitar essas regras.

Um dos direitos humanos guardados pela democracia é a liberdade de expressão. A qualquer ser humano é lhe observado o direito de falar o que bem entender. Mas não se trata de um direito absoluto. Este direito está limitado por algumas regras. Não posso, por exemplo, caluniar ou difamar uma pessoa. Ou incitar um crime. O meu direito de expressar-me termina onde começa o direito de outra pessoa à sua imagem pública, ao seu patrimônio ou à sua própria vida.

Tendo estabelecido essas duas premissas – 1. As instituições do regime democrático irão reagir a qualquer tentativa de burlar as regras do jogo e 2. O direito à liberdade de expressão é limitada pelo direito do outro – vamos enfrentar o caso em tela. E, como dissemos acima, não é nada fácil.

O caso Donald Trump

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer se Trump ameaçou o regime democrático. Somente neste caso, como vimos, se justificaria a limitação à sua liberdade de expressão, por ameaçar as bases do regime pactuado pela sociedade americana.

Donald Trump colocou em dúvida a lisura das eleições. Mais do que isso: quando todas as instâncias às quais ele poderia recorrer negaram provimento às suas alegações, armou um comício em frente ao Capitólio, onde se daria um ato protocolar: o reconhecimento, por parte dos deputados e senadores, dos resultados das eleições nos diversos Estados. O objetivo de Trump era convencer os congressistas a não reconhecer os resultados, o que provocaria um impasse inédito no processo eleitoral americano. Vale lembrar que os resultados de alguns Estados já haviam sido objeto de contestação por parte de Trump, sem sucesso.

Apenas como registro histórico, desde que o procedimento atual foi adotado, em 1887, somente em duas ocasiões, em 1969 e 2005, os senadores e deputados, nessa seção conjunta, aceitaram discutir pedidos de revisão de votos. Eram casos muito específicos, e em nenhum dos dois casos os votos foram invalidados. Em 2001, Al Gore, então presidente do Senado (por ser o então vice-presidente) e candidato derrotado à presidência por uma mísera margem de votos na Flórida, descartou revisar esses votos nessa seção conjunta.

O que Donald Trump (nada menos que o presidente dos EUA, não convém esquecer) estava pedindo naquele comício em frente ao Capitólio, era que os deputados e senadores não reconhecessem o resultado das eleições em alguns Estados. Terá sido um ato antidemocrático, fora das regras do jogo? (Calma, já chegarei na invasão do Capitólio).

Entendo que o problema está mais no espírito do que na forma. Se existe essa sessão conjunta no Congresso, e se está previsto na Lei que essa sessão conjunta pode receber e acatar pedidos de revisão de votos, o pedido de Trump se deu conforme as regras do jogo. O problema, entendo, está no chamado “abuso de forma”.

É um pouco como se a noiva ou noivo, no altar, ao invés de dizer “sim”, dissesse “não”. Claro, formalmente falando, é possível dizer “não” ali. Mas aquele é um momento de celebração, todas as questões já foram (ou, pelo menos, deveriam ter sido) sanadas, de modo que a formalidade cerimonial é apenas isso, uma formalidade. Dizer “não” é um “abuso de forma”, ou seja, usa-se uma prerrogativa que formalmente até existe, mas não é para ser usada. É, em outras palavras, uma atitude que não faz parte do ritual do casamento, apesar de, formalmente, ser possível.

Donald Trump abusou da forma, em uma atitude que não faz parte do ritual democrático. Tanto é assim, que seu vice-presidente se recusou a participar da pantomima. Neste momento, entendo que o presidente Donald Trump não guardou a liturgia do cargo para o qual foi eleito, e atentou contra o regime democrático.

Note que não entrei na discussão sobre a invasão ao Capitólio. Este é o evento que, de fato, captou a atenção do público e deu origem a toda essa reação ao presidente. Mas, entendo que, mesmo que não houvesse ocorrido a invasão, o presidente abusou da forma, jogando fora das regras.

A invasão ao Capitólio, apesar de chocante, foi apenas a cereja do bolo de um processo. Foi útil, se é que podemos dizer assim, para materializar de alguma forma o que já era, per se, um ataque às instituições democráticas. Entrou pelos olhos, não restou dúvida do que se tratava. Resta ocioso discutir se Donald Trump incitou ou não a multidão naquele momento. A invasão foi apenas uma consequência natural de todo o processo, a metáfora que ilustra a tese.

No dia do evento, Donald Trump estava fazendo um comício em frente ao Capitólio. Se a invasão tivesse sido incitada apenas por este comício, não faria sentido que as redes sociais silenciassem o presidente. Se o fizeram, é porque entenderam que suas plataformas serviram para que ele jogasse fora das regras do jogo democrático mesmo antes do comício e, potencialmente, poderia continuar a fazê-lo depois. A questão que nos cabe agora analisar é justamente essa: sob qual justificativa as redes sociais podem silenciar uma pessoa?

As redes sociais no papel de agentes políticos

Em primeiro lugar, já vimos que a liberdade de expressão tem limites. No caso, o limite dado pela preservação do regime político. E, neste caso, tanto faz se o regime é de força ou democrático: não é permitido usar as prerrogativas dadas pelo regime para jogar fora das regras do regime.

Claro, sempre se pode tentar substituir o regime político. São muitos os exemplos que a história nos mostra. Mas há que ficar claro que nenhum regime, nem mesmo o democrático, permitirá o uso da liberdade de expressão para derrubá-lo. O regime democrático, pelo menos, tem a vantagem de proporcionar um espaço oficial para o contraditório, onde, aí sim, a liberdade de expressão é absoluta. Saindo desse cercadinho oficial, não há que se falar de liberdade de expressão.

Pois bem. Vimos que Donald Trump saiu do cercadinho democrático. Portanto, era necessário cercear a sua liberdade de expressão, para proteger o regime. O ponto complicado dessa história, no entanto, é o agente do cerceamento.

Normalmente, por estarmos nos referindo a um regime político, são os agentes políticos os responsáveis pelo cerceamento à liberdade de expressão. No caso, entretanto, um agente privado assumiu o papel de cerceamento e proteção do regime. Trata-se de um caso inédito, e que demanda uma análise mais detida.

A natureza das redes sociais

Em primeiro lugar, as redes sociais são um tipo de empresa que, apesar de lidar com informações públicas, não requerem autorização pública para funcionar. Empresas de TV e radiodifusão necessitam de uma concessão pública. Mas isto acontece por uma questão física: a limitação das ondas eletromagnéticas disponíveis para a transmissão, que precisa ser regulado pelo poder público para evitar interferências. Jornais e revistas, por exemplo, também lidam com informações públicas e, nem por isso, precisam de autorização governamental para funcionar. (Claro, estamos aqui falando do regime democrático).

Quando eu estava na faculdade, havia um jornalzinho editado pelo Centro Acadêmico. O jornalzinho era, na verdade, uma grande seção de cartas dos leitores. Todo o espaço era ocupado por artigos escritos pelos próprios alunos. Não eram matérias jornalísticas, eram pura opinião. Eu escrevia regularmente, mas nem sempre os meus artigos eram publicados. Como havia uma limitação de espaço (o jornal era impresso, não havia internet), os editores escolhiam o que seria publicado e o que seria jogado fora. Qual era o critério? Qualquer que fosse, era uma prerrogativa do Centro Acadêmico, cujos diretores eram eleitos pelo voto dos próprios alunos. Eles tinham legitimidade para escolher o que bem entendessem. Não estava satisfeito? Simples: criasse o seu próprio jornal.

TVs, rádios e jornais já têm outra lógica: não são cartas dos leitores que são publicadas, mas matérias escritas por jornalistas profissionais. No entanto, o critério editorial continua sendo dado por quem tem legitimidade para tal: o dono do veículo de comunicação. Não está satisfeito? Faça o seu próprio jornal ou TV!

As redes sociais são mais parecidas com o jornalzinho do Centro Acadêmico do que com os veículos tradicionais de imprensa. Com uma diferença fundamental: não há editor. Tudo o que você coloca é publicado em seu mural. Cada indivíduo passa a ter o seu próprio jornal. Aquela história de fazer o próprio jornal caso não estivesse satisfeito tornou-se realidade!

Mais ou menos.

Há um editor. Na verdade, há dois: um implícito e outro explícito.

O editor implícito é o algoritmo. Você até pode colocar o que quiser em sua timeline, mas nada garante que outros irão ver. Tudo depende do tal “algoritmo”. De que adianta você poder falar o que quiser em uma sala vazia? A comunicação somente ocorre quando há um receptor. Se o poderoso algoritmo decidir que ninguém vai ouvir o que você tem a dizer, nada feito.

Mas o que nos interessa mais de perto aqui é o editor explícito. As redes sociais contam com regras. As regras do Facebook, por exemplo, estão todas aqui. Não se comportou conforme essas regras, está fora da comunidade e impedido de usar a rede social para divulgar suas ideias. Na verdade, ocorre aqui o que ocorre em qualquer jogo com regras: existem as regras gerais e existe o árbitro que aplica as regras ao caso concreto. Tanto as regras quanto o árbitro são de responsabilidade do Facebook, aka, Mark Zuckerberg. Zucka, para os íntimos.

A rigor, Zucka nem precisaria elaborar regras. Ele tem o poder de tirar e colocar o que ele quiser, porque a rede é dele. A legitimidade, que no caso do jornalzinho do Centro Acadêmico era dada pela eleição dos membros da diretoria, no caso do FB é dado pela propriedade: Zucka, assim como os donos dos veículos de comunicação, é o dono, é ele quem define o padrão editorial. Ou, no caso, quem publica ou deixa de publicar.

Mas, se é assim, porque raios Zucka perdeu seu precioso tempo para elaborar regras, e emprega milhares de pessoas para servirem como juízes na aplicação dessas regras? Acredito que seja por uma questão de exercício de “soft power”. Os pais em casa têm o poder de determinar as regras. Nem por isso essas regras são aleatórias e aplicadas sem critério. Para o bem do relacionamento entre pais e filhos, ou entre a rede e seus usuários, é bom que haja critérios minimamente conhecidos e que façam algum sentido.

Tudo isso é mais ou menos aceitável quando se trata de indivíduos falando de cachorros, ou de doenças ou de religião. A coisa muda de patamar, no entanto, quando se trata da esfera política. Neste caso, estamos tratando do pacto social em torno do exercício do poder. A interferência na vida das pessoas é potencializada. Quando um indivíduo fala sobre política, está influenciando o potencial voto de outros, além de poder incitar comportamentos que atacam as bases mesmas do regime político. Mas o alcance desse indivíduo é limitado pelo tamanho de sua rede de relacionamentos e pelo algoritmo. No entanto, quando se trata de um agente político de uma certa importância, essa influência passa a ser mais decisiva.

O que dizer, então, da influência do presidente dos Estados Unidos da América? Se fosse apenas a influência institucional do cargo, já seria muito. Mas, no caso, trata-se de um líder popular, com influência sobre milhões de seguidores, não em razão de seu cargo, mas de seu carisma e de sua mensagem. Quando um líder desse porte usa as redes sociais para atacar as bases mesmas do regime político, o papel desse “mural neutro” passa a ser questionado.

Antes de avançar, vamos parar um pouco para observar mais detidamente este fenômeno. Antes do advento das redes sociais, o que tínhamos? TVs, jornais, revistas e outros meios de comunicação dominados pelos seus respectivos editores. No nível pessoal, a liberdade de expressão era exercida em círculos muito limitados: a sua opinião era conhecida por algumas poucas pessoas, às quais você tinha acesso pessoalmente. Se você quisesse alargar este círculo, precisaria cavar uma vaga em algum meio de comunicação ou escrever um livro. Nestes dois casos, ficaria submetido ao critério do editor e, mais importante, ao alcance de cada um desses meios.

Com o advento da popularização da internet, abriu-se um mundo de possibilidades. Blogs se popularizaram, cada um podendo se tornar o seu próprio editor. Mas nada é tão simples, não é mesmo? Quem já tentou escrever seu próprio blog conhece as dificuldades técnicas e o esforço para ser descoberto na rede. Não é nada fácil.

As redes sociais vieram para facilitar esse trabalho. Basta criar uma conta e sair publicando! Simples, rápido e funcional. O problema de ser descoberto é endereçado pela interação com outros membros da rede: se seu conteúdo tem valor, será elogiado (curtido) e compartilhado, através de ferramentas disponibilizadas pela própria rede. Está criado o ecossistema que permite que qualquer um aumente o alcance de suas ideias. É o nirvana da liberdade de expressão.

Claro que a criação desse “nirvana” supõe o investimento de milhões de dólares, além de envolver alguns dos mais brilhantes cérebros do Vale do Silício. Ou seja, não é de graça. E, como sabemos que não há almoço de graça, esse nirvana vem com um preço. O preço mais óbvio é a utilização dos dados dos usuários para fins de publicidade. Mas isso não é o objeto deste artigo. Um preço menos óbvio apareceu agora: o poder do Zucka de decidir quem pode e quem não pode publicar em sua rede.

Fiz esta pequena digressão para chamar a atenção para o fato de que, se temos redes sociais e podemos usufruir de seus benefícios, é porque muito dinheiro e inteligência foi investido nisso. Nada mais natural que se cobre o preço por esse trabalho, e Zucka tem todo o direito de fazê-lo. Ponto.

A questão ganha uma complexidade inédita porque imbrica o direito do Zucka de editar a sua própria rede e a questão do regime político, fruto de um pacto social. Como disse a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, “a liberdade de expressão é um direito fundamental de vital importância, que até pode ser restringido, mas somente de acordo com leis e dentro de um quadro definido pelo legislador” (grifo meu). Ou seja, Merkel considera que a liberdade de expressão pode sim ser limitada, mas é o próprio regime que deve definir isso, e não uma empresa privada.

O interessante é que este tipo de colocação não se aplica a outros meios de comunicação. Digamos que Frau Merkel quisesse publicar um artigo em um jornal alemão mas, por algum motivo, este jornal recusasse a publicá-lo. Não imagino Merkel afirmando que o jornal deveria obedecer um lei que definisse o que pode ou não pode ser publicado no jornal. Isto seria censura, nem mais nem menos.

Ora, se a ação estatal sobre a propriedade privada da comunicação é normalmente considerada censura, porque Merkel, uma democrata de quatro costados, defende que uma lei deve reger o que Zucka pode ou não pode deixar publicar em sua rede? Onde está a diferença?

O poder das redes sociais

Anteriormente, eu havia dito que o jornal difere de uma rede social por ter seu conteúdo produzido por jornalistas profissionais. Isso é assim, mas um jornal é mais do que isso. Existem as colunas de jornalistas ou personalidades. Neste caso, o jornal funciona como o Facebook: quando um jornal publica um artigo de um colunista, este artigo costuma ser de responsabilidade deste colunista, “não refletindo a opinião deste jornal”, como normalmente está escrito ao final do artigo. Se não estiver satisfeito, o editor do jornal pode dispensar o colunista, mas não pode influenciar o conteúdo do que é produzido. Há pouco tivemos o caso envolvendo Monica De Bolle. A economista foi dispensada do papel de colunista do Estadão, por algum motivo particular ao editor do jornal e que não foi divulgado. Não há um conjunto de regras públicas sobre o que pode e o que não pode publicar, como no caso do Facebook. Trata-se de uma decisão discricionária do jornal. A ninguém ocorre dizer que houve cerceamento da liberdade de expressão da economista, que pode continuar falando por outros meios.

No caso das redes sociais, isso não é verdade. Mesmo para a mais poderosa personalidade do planeta, o presidente dos EUA, não há alternativas à altura para que continue falando para os seus seguidores. Neste caso, houve uma efetiva limitação da sua liberdade de expressão.

A rigor, não existe diferença conceitual entre um jornal dispensar uma colunista e uma rede social bloquear uma determinada pessoa. Eu, pelo menos, não consigo identificar. O que existe é uma diferença de tamanho e potência. O maior jornal do mundo, o Yomiuri Shimbum, tem 9,1 milhões de exemplares circulando diariamente. Nos EUA, o maior jornal é o USA Today, com circulação diária de 4,1 milhões de exemplares. Bem, o Facebook tem nada menos que 2 BILHÕES de usuários. No Brasil, são 130 milhões, contra uma audiência média do Jornal Nacional, o mais popular do país, de aproximadamente 25 milhões de telespectadores (considerando audiência de 35 pontos e 700 mil pessoas por ponto).

O poder muda o conceito? Zucka agora está pagando o preço por ter criado algo tão grande e poderoso? Em que circunstâncias deve haver uma regulamentação estatal para a liberdade de o empreendedor decidir o que é mais conveniente para o seu negócio? Estas perguntas, para mim, ainda estão em aberto. O fato é que, quando estamos lidando com os fundamentos mesmo do regime político vigente, o encontro de um imenso poder de comunicação com o maior poder humano, que é o poder político, traz consequências imprevisíveis. Ainda muito se escreverá a respeito.

À guisa de conclusão

Resumindo o que vimos até aqui:

  1. Qualquer regime político lutará para manter as suas bases intactas, mesmo o regime democrático.
  2. Donald Trump desafiou as bases da democracia americana e, por extensão, do modelo de democracia liberal representativa, que é o regime político vigente nas principais potências mundiais.
  3. A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Antes, é limitado pelo direito dos outros de não terem suas vidas ameaçadas. É limitado também pelas regras do regime político vigente.
  4. Redes sociais são propriedade privada, e podem editar o que quiserem. No entanto, seu imenso poder de comunicação, inigualável na história, pode trazer consequências imprevisíveis para os regimes políticos, arena, por natureza, pública.

Enfim, desculpem-me novamente pela extensão do artigo e pela falta de uma conclusão “preto no branco”. Como disse, meu objetivo era mais ajudar a pensar do que defender um determinado ponto de vista. Espero tê-lo alcançado.

O que é a realidade?

Ao longo dos séculos, os filósofos se debateram com essa questão. No início era tudo muito simples: realidade é aquilo que nós vemos e sentimos. Os sentidos humanos eram a porta de entrada da realidade em nossas mentes. A realidade estava fora do ser humano, que tinha a missão de apreendê-la.

A partir de Descartes, no entanto, esta noção dá um rodopio de 180 graus. “Penso, logo existo” é algo completamente diferente de “Penso porque existo”. A realidade, a partir de Descartes, passa a ser, de alguma maneira, criada pela mente humana. A existência está subordinada ao pensamento: “penso, logo existo”. Se eu não pensasse, não teria nenhuma evidência da minha existência.

Claro que nós e o mundo existimos além da nossa própria consciência. Mas, ao reduzir ao pensamento a única evidência de nossa existência, Descartes abre a caixa de Pandora do idealismo. Ou seja, da ideia de que nós criamos a nossa própria realidade.

Filmes como Show de Truman e Matrix brincam com esse conceito. Existe uma falsa realidade montada para nos enganar. Nos movemos nessa falsa realidade como se fosse a verdadeira. Os protagonistas descobrem, horrorizados, que foram manipulados. Mas, nestes casos, ainda assim existe uma realidade “verdadeira”, aquela que manipula a falsa realidade. Saindo da falsa realidade, temos uma realidade “de verdade”.

Mas a coisa pode ser mais complexa. Em um episódio da série Black Mirror, um rapaz serve como piloto de testes de um vídeo game ultrarrealista. Durante o episódio, ele “volta para a realidade”, somente para descobrir que ainda estava dentro do jogo. O espectador termina o filme sem ter certeza se o final é ainda um sonho ou a “realidade”.

Nos casos acima, a realidade é criada externamente. Mas pode ser criada também internamente, por uma doença psíquica. Nos filmes Uma Mente Brilhante e Clube da Luta, o personagem principal é vítima de alucinação, e contracena com personagens criadas pela sua própria mente. Quem está fora de sua mente vê a realidade como ela é, enquanto o protagonista jura que aquilo que vê é a própria realidade.

Toda essa digressão me veio à mente diante desta questão das alegações de fraudes na eleição dos EUA. Qual a realidade?

Em todos os exemplos acima, há um momento em que o protagonista descobre a realidade. A verdade verdadeira, aquela que está fora da nossa mente e percepções. Truman descobre a verdade depois de desconfiar de vários erros nas filmagens, John Nash descobre que suas alucinações não envelhecem, o narrador de Clube da Luta é chamado pelo nome de sua alucinação. São momentos-chave dos filmes, em que a realidade se faz presente em toda a sua crueza.

No filme A Origem, em que Leonardo de Caprio faz o papel de uma espécie de “navegador de sonhos”, ele precisa ter um objeto, uma espécie de token, que o ajude a distinguir o sonho da realidade. No caso, ele usa uma espécie de pião. Se o pião não cai, ele está no sonho. Assim como o token usado pelo personagem de Leonardo de Caprio, também precisamos de algo firme, seguro, que nos permita distinguir o que é realidade daquilo que simplesmente está em nossa mente. Não é tão fácil quanto nos filmes.

No caso das eleições americanas, cada lado tem o seu “token” de estimação, aquele que lhe dá a segurança de que está do lado da realidade. Do lado daqueles que acreditam que houve fraude, o token é a convicção de que “Sleepy Joe” não teria condições de vencer Mr. Trump em uma eleição limpa. Como disse o chefe do Partido Republicano de Waukesha, um condado do Wisconsin, em uma matéria da The Economist, “Não há absolutamente nenhuma maneira de Biden ter superado Barack Obama no condado de Waukesha pelos números que eles estão proclamando”. Esta convicção faz com que a única explicação plausível, a única realidade possível, seja a fraude.

Do lado de quem não acredita na fraude, o “token” é a tradição de mais de 200 anos ininterruptos na realização de eleições, em um país aberto e com pesos e contrapesos funcionando. Uma fraude sistêmica precisaria ter o concurso de milhares de pessoas, em um esquema gigantesco que dificilmente passaria despercebido. Seria mais ou menos como duvidar de que o homem foi à Lua: milhares de pessoas envolvidas na farsa em um pacto de silêncio dificílimo de manter. Além disso, todos os pedidos de revisão e impugnação foram rechaçados pelos comitês eleitorais ou pela justiça, que precisariam estar envolvidos na fraude.

Qual desses dois “tokens” indica a realidade?

John Nash, quando nota que suas alucinações não envelhecem, descobre em que lado da realidade elas estão. Ele é uma pessoa com uma inteligência superior (ganhador do prêmio Nobel), e consegue se arrancar de dentro de suas alucinações somente com seu raciocínio. A maioria de nós não consegue. Somos reféns de nossas ideias preconcebidas, de nossa formação, de nossas posições.

Mas, efetivamente, existe uma só realidade. Ou bem houve uma gigantesca fraude que mudou o resultado das eleições americanas, ou não houve algo decisivo, que pudesse fazer grande diferença. Qual a real?

Minha regra pessoal, neste caso, é evitar coisas que cheiram a teoria da conspiração. Esse é o meu token, é onde confiro se o que estou vendo é alucinação ou realidade. Tenho imensa dificuldade em aceitar teorias da conspiração. No caso em foco, como já disse acima, a fraude precisaria ter o concurso de várias milhares de pessoas, em um esquema gigantesco. Não parece muito possível. Tem algo errado com essa história. Com a história inversa consigo lidar melhor: poderia Trump perder de “Sleepy Joe”? Com algum esforço, é possível traçar um cenário em que sim, isso seria possível. A Covid mudou o cenário eleitoral. A forma como o governo Trump, e o próprio presidente, lidaram com o assunto, foi desastrosa, na minha opinião. Enfim, motivos há para que Trump tenha perdido a eleição por uma margem estreita.

De qualquer modo, na disputa entre as duas realidades, há um árbitro. Por mais que não concordemos com a realidade “alternativa”, em sociedades civilizadas se respeita o árbitro. O juiz em campo, por mais que tenha errado ou esteja de má fé, no final das contas, é o juiz, e deve ser respeitado. Quando o PT chamou o impeachment de “golpe”, na verdade estava desrespeitando os juízes do julgamento, no caso, os deputados. Quando Trump insiste na tese de fraude, está desrespeitando os juízes do jogo, no caso, os comitês eleitorais e a justiça em suas várias instâncias.

Há alguns anos, recebi um e-mail de um economista, em cuja assinatura havia os dizeres “adequatio mentis ad rem”. Fiquei curioso e perguntei a ele o que significava. “Adeque sua mente à realidade”, ele me explicou. Os economistas precisam ser humildes e aceitar os dados da realidade para construir seus modelos, e não tentar enfiar a realidade dentro dos seus modelos pré-concebidos. Este é o sentido. Desde então, adotei este slogan como lema da minha vida: procure conhecer a realidade como ela é. Trata-se de uma tarefa difícil, muito difícil, pois a realidade, como vimos, se esconde sob diversas narrativas e, principalmente, sob o nosso próprio modo de pensar. Mas trata-se de uma tarefa essencial para manter a sanidade mental.

A única fraude

“Sem voto impresso em 2022 vamos ter problemas”. Bolsonaro refere-se, mais uma vez, a supostas fraudes eleitorais.

“Ninguém pode negar” que houve fraude nas eleições americanas.

Pois é. Fiquei curioso e fui investigar por conta própria uma das alegações de fraude que andam rodando por aí. Trata-se do condado de Bibb, na Geórgia, onde um “cientista de dados” teria denunciado uma manipulação clara. A descrição da suposta fraude vai a seguir:

Bem, o condado de Bibb fez não uma, mas DUAS recontagens. A primeira manualmente e a segunda por meio de escaneamento. Tudo acompanhado por fiscais de ambos os partidos. Veja aqui um vídeo onde o responsável pela eleição no condado explica o processo.

Mas o mais curioso vem agora: a Geórgia adotou exatamente o sistema que Bolsonaro quer: urna eletrônica com impressão dos votos. Foram esses votos que serviram para a recontagem.

Eu pergunto: adiantou? Trump desistiu da alegação de fraude? Obviamente não. Pergunto novamente: vai adiantar no caso brasileiro? Bolsonaro vai dizer que as eleições foram limpas se o voto impresso for adotado? Obviamente não! Basta ver o que o seu guru fez nos EUA.

As eleições sempre serão fraudadas. Trata-se de um grande esquema da esquerda globalista. Se Bolsonaro perder, terá sido fraude. Se Bolsonaro ganhar no 2o turno, terá sido fraude, pois devia ter ganho no 1o (vide 2018). Se ganhar no 1o turno, terá sido fraude, porque a diferença devia ter sido bem maior. As eleições são fraudadas sempre. Perdemos por causa da fraude. Ganhamos apesar da fraude.

A única fraude que existe é a dupla Trump e Bolsonaro.

Aceitando a derrota

Os apoiadores de Donald Trump têm lembrado a injunção que Al Gore fez na Suprema Corte para a recontagem dos votos na Flórida, responsável pela apertadíssima margem da vitória de George Bush no ano 2000. Trump estaria apenas exercendo o seu direito de espernear, como Gore fez em 2000 e Aécio fez em 2014, quando também pediu auditoria dos votos.

Não concordo.

Trump está fazendo algo completamente diferente. O presidente dos EUA está colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral inteiro, ao usar a palavra “fraude”. Gore e Aécio pediram recontagem e auditoria em pleitos muito apertados. A diferença na Flórida foi de apenas 537 votos! Trump vem dizendo que o próprio processo eleitoral estaria viciado criminosamente pelo partido adversário. E vem dizendo isso mesmo antes do pleito começar.

Ir em busca de direitos é prerrogativa de qualquer cidadão que se sinta prejudicado. Isso é uma coisa. Outra coisa é envenenar o ambiente democrático, colocando em dúvida a lisura do próprio processo.

Al Gore aceitou a determinação da Suprema Corte pela não recontagem dos votos. Não saiu da disputa dizendo que havia sido vítima de uma fraude. Vamos ver se Trump acusará a Suprema Corte de conivência com uma fraude eleitoral.

Mentiras sinceras não me interessam

Michael Bloomberg começou a sua campanha eleitoral. Ele promete criar os empregos de qualidade que Trump não criou (veja o seu artigo aqui). Suas credenciais? Ele já faz isso em sua empresa, onde 20 mil funcionários têm direito a licença parental (pai e mãe) remunerada de 6 meses, além de licença médica e o direito de se sindicalizar.

O que Bloomberg não conta é que sua empresa só consegue conceder esses benefícios porque vive de alugar terminais de US$1.500/mês para um setor, o financeiro, que pode pagar por isso. Sua mão de obra é altamente especializada, o que permite ter uma produtividade e valor agregado quase inigualáveis.

Se Bloomberg tentar replicar este mesmo modelo para o restante da economia, as empresas quebram. Ou começam a contratar trabalhadores informais. Conheço um país onde essa coisa de “modernizar” o contrato entre patrões e empregados, como ele diz, deu muito certo mesmo. Esse país tem um desemprego quase 4 vezes maior que o americano e os empregos não são exatamente “de qualidade”.

Bloomberg sabe como funciona a economia. Ele está mentindo, assim como ele acusa Trump de o ter feito. Mas Trump é um populista doido, enquanto Bloomberg é muito antenado com as últimas tendências do debate correto sobre as mazelas da economia. Sinceramente, prefiro Sanders ou Elizabeth Warren. Pelo menos, esses não mentem, eles realmente acreditam nas sandices que dizem.