Incêndio no salão

As crises financeiras podem ser comparadas a uma grande festa em recinto fechado, em que um foco de incêndio se inicia em um canto. A música continua animando a festa durante um tempo, até que os que estão mais próximos do foco (aqueles que têm mais informação) começam a se dirigir para a porta de saída, abandonando a festa, que continua durante um certo tempo. Outros, mesmo sentindo sinais de fumaça, confia que o lugar tem uma boa brigada de incêndio e vai controlar a situação. Por isso, não abandonam a festa, que está bem legal. No final, quando vai ficando cada vez mais claro que o incêndio está atingindo grandes proporções, todos tentam desesperadamente abandonar o recinto. Mas aí, a porta é estreita demais.

Um incêndio desse tipo atingiu o mercado no final do governo Dilma. Entrou em ação, na época, a brigada de incêndio do governo Temer, que controlou a situação. A festa recomeçou, até que um novo foco de incêndio foi iniciado em outubro de 2021, quando o governo Bolsonaro mudou a regra de cálculo do teto para poder gastar mais em 2022. Aquele foco era pequeno, o que passou a ideia de que era possível controla-lo.

Eleito o novo presidente, a esperança dos frequentadores da festa era de que, sendo “pragmático”, manteria o foco de incêndio sob controle e, quem sabe, mais para frente, até acabasse com o fogo jogando água. Para surpresa de muitos, o presidente eleito, mesmo sem assumir o mandato, jogou gasolina no fogo. A justificativa, que está no texto da PEC fura-teto, é que o recinto conta com sprinklers, que serão acionados pela própria ação do fogo. Em economês, os gastos adicionais gerarão crescimento econômico, o que produzirá aumento da arrecadação suficiente para pagar a dívida, dado o efeito multiplicador do gasto público.

Obviamente, esse pessoal que acredita nisso nunca passou por uma mesa de operações. Ou, para manter a analogia, nunca frequentou uma festa em recinto fechado. No final, nem importa se os sprinklers vão ou não funcionar. Ninguém vai ficar ali para comprovar a tese.

Mentiras sinceras não me interessam

Pela primeira vez leio que o racional por trás do pedido de “waiver” para furar o teto de gastos é manter, em 2023, despesas no mesmo percentual do PIB de 2022. Ou seja, 19% do PIB.

O mercado compraria de olhos fechados uma regra como essa. Em todo ano, daqui para frente, faça chuva ou faça sol, o governo só vai gastar 19% do PIB. O único detalhe é que trata-se de uma regra horrivelmente pró-cíclica, e sua credibilidade é próxima de zero. Explico.

Tudo funciona bem quando o PIB está crescendo. Neste caso, as despesas aumentam junto com o PIB e todo mundo fica feliz. O problema será quando a economia entrar em uma recessão. Neste caso, as despesas precisarão diminuir, justamente em um momento em que a sociedade brasileira estará clamando por ajuda do governo para sair do buraco. Esta é a característica pró-cíclica da regra: as despesas aumentam com a expansão do PIB e diminuem com a sua retração. Qual a chance disso acontecer?

(A regra do teto é o justo oposto: como o limite não acompanha as variações do PIB, quando há expansão a relação despesas/PIB diminui, e quando há retração, a relação dívida/PIB aumenta. Trata-se de uma regra anti-cíclica, como deve ser.)

A escolha de um percentual do PIB como regra para os gastos é meramente oportunista, assim como foi, no governo Bolsonaro, a mudança do critério de cálculo da inflação para calcular o limite do teto. A regra que vale, a cada momento, é aquela que permite maximizar os gastos. A existência de uma regra, qualquer que seja, permite que todos desfilem em Brasília como defensores da austeridade fiscal, enquanto, de verdade, não estão nem aí para o problema. Neste aspecto, não deixa de ser notável o discurso de Lula, dando uma banana para a disciplina fiscal. Pelo menos foi sincero.

Piadista

A PEC do PT prevê gastos acima do teto de R$ 200 bilhões por ano, todos os anos.

Segundo o deputado do partido Carlos Zarattini, a PEC cumpre o papel de dar “previsibilidade” ao mercado, pois seria o mesmo gasto todos os anos. É a mesma previsibilidade que temos quando sabemos que um carro vai andar a uma velocidade constante de 200 km/h na via Dutra. A previsibilidade do desastre.

O deputado é um piadista.

Me engana que eu gosto

Em evento ontem, Alckmin, supostamente o adulto na sala, voltou a defender a “responsabilidade fiscal” em tese. Na prática, porém, a sinalização é de que buscam uma maneira para gastar mais enquanto esperam iludir os mercados com fórmulas de “controle de dívida”. Vejamos.

Alckmin afirma que o teto de gastos “esmaga investimentos” ao não permitir que as despesas subam, mesmo que as receitas tenham se elevado. Não sei se é ignorância ou má fé, mas Alckmin convenientemente se esquece da razão estrutural que levou ao debacle fiscal do governo Dilma. Vamos refrescar sua memória.

Até 2014, o regime fiscal no Brasil era o da produção de superávits primários. Funcionava bem. Afinal, para manter a dívida sob controle, o importante mesmo é produzir superávits primários. Controlar gastos é apenas uma forma de atingir esse objetivo. Se fosse garantido que as receitas cresceriam, digamos, 5% ao ano além da inflação, os gastos poderiam crescer nesse mesmo ritmo sem que o superávit primário diminuísse. Aliás, foi exatamente isso o que aconteceu entre 2003 e 2012: despesas e receitas cresciam a uma taxa de 5% ao ano acima da inflação, e os governos Lula e Dilma I colocaram em prática a proposta de Alckmin: permitir que as despesas crescessem no mesmo ritmo, a fim de não “esmagar investimentos”.

Ocorre que, como sabemos, despesas são para sempre, mas nada garante que as receitas o sejam. A partir de 2012, o ritmo de crescimento das receitas começou a cair, e passou a diminuir, em termos reais, a partir de 2014. As despesas, no entanto, continuaram a crescer, pois o orçamento no Brasil é extremamente rígido: uma vez a despesa estando lá, não há condições políticas de tirá-la de lá. Vide, por exemplo, o auxílio de R$ 600, que era para ser uma exceção durante a pandemia, e tornou-se regra.

Então, aconteceu o inevitável: com receitas caindo e despesas rígidas, o superávit se transformou em déficit fiscal, não sem antes ter sido camuflado com as chamadas “pedaladas fiscais”. A solução foi a adoção do teto de gastos: com os gastos crescendo somente com a inflação, era questão de tempo para voltarmos a ter o que importa: superávit primário.

O que Alckmin propõe é, na prática, a volta ao regime anterior: se o aumento das receitas permitir, poderíamos ter aumento das despesas. O desastre, obviamente, será o mesmo, dado que as despesas não diminuirão quando as receitas caírem. E é questão de tempo para que caiam.

Um mecanismo qualquer de “controle de dívida” não muda essa realidade. Assim como o teto de gastos, uma regra de limite de dívida iria igualmente “esmagar investimentos”, o que certamente contribuiria para o seu fracasso, assim como foi com a regra do teto. Não há solução quando o que se quer, na verdade, é gastar sem limites.

A regra do teto tem duas grandes vantagens: é anti-cíclica e é simples de entender. A grande desvantagem é que impõe uma disciplina que a sociedade brasileira não está preparada para suportar. As regras alternativas em discussão, que permitiriam “aumentar as despesas quando as receitas aumentam”, são pró-cíclicas e de uma complexidade bizantina, na medida para serem manipuladas pelos políticos. É um “me engana que eu gosto”, feito sob medida para posar de fiscalista, ao mesmo tempo em que se continua a gastar como se não houvesse amanhã.

Na atual situação das contas públicas nacionais, qualquer regra séria deverá impor uma disciplina insuportável para a sociedade. Desconfie de regras fiscais indolores. Assim como os regimes alimentares que não exigem esforço para emagrecer, essas regras são apenas uma forma de empurrar o problema com a barriga.

Uma desculpa conveniente

A tática é velha conhecida: esconder-se atrás de uma ação meritória para fazer passar um trem da alegria. A manchete quer nos fazer crer que os políticos são uns desalmados e não estão colaborando com o novo governo para acabar com a fome no país.

A verdadeira história é a seguinte: o orçamento enviado ao Congresso pelo atual governo prevê R$ 105 bilhões para o Auxílio Brasil de R$ 400. Para acomodar a manutenção dos R$ 600 e mais um bônus de R$ 150 por criança (promessa do candidato do PT), o montante necessário seria de R$ 175 bilhões. Faltariam, portanto, R$ 70 bilhões em 2023. Se fosse este o tamanho do perdão para furar o teto de gastos, não estaríamos discutindo isso aqui.

Ocorre que o PT encaminhou (quer dizer, vai encaminhar) um projeto que libera o total de R$ 175 bilhões de cumprir o teto. E não só para 2023, mas para sempre. Aí, algo que seria usado apenas para pagar um Bolsa Família plus size, torna-se um cheque em branco para o PT no valor de R$ 105 bilhões anuais para gastar no que melhor lhe aprouver.

Então, essa historinha de ”estão dificultando o pagamento do Bolsa Família” é conversa pra boi dormir. O que estão procurando é uma licença adicional para gastar, sendo o Bolsa Família apenas uma desculpa conveniente.

O discurso faz a diferença

Quando a regra do teto de gastos foi aprovada, em 2016, já se sabia que a dinâmica de crescimento dos gastos constitucionalmente obrigatórios forçaria a revisão da regra em algum momento no futuro. Isso porque, com os gastos totais limitados pela inflação e os gastos obrigatórios (principalmente Previdência e funcionalismo) crescendo acima da inflação, os gastos discricionários (não constitucionalmente obrigatórios) seriam espremidos com o passar dos anos. Por isso, se previu uma revisão da regra para 2025. A ideia (ou esperança) era de que houvesse um amplo debate no país sobre os gastos obrigatórios, de modo a abrir espaço para os não obrigatórios.

Ocorre que o único debate que ocorreu foi o da reforma da Previdência, que ajudou, mas ficou muito longe do suficiente para estabilizar o crescimento dos gastos. Além disso, para juntar o insulto à injúria, veio a pandemia, que fez com que gastássemos, em dois anos, toda a poupança gerada pela reforma da Previdência em 10 anos. Além disso, cristalizou o valor de R$600 para o Bolsa Família / Auxílio Brasil, fazendo com que este programa saltasse dos anteriores R$ 35 bilhões/ano para os propostos R$ 175 bilhões/ano para 2023.

(Alias, só um parêntesis. Ainda vou entender como R$ 35 bilhões foram capazes de “acabar com a fome no Brasil”, e, com R$ 175 bilhões, “a fome nunca foi tão grande e intensa no país”. – essa frase contém várias ironias)

Assim, pressionado, por um lado, pelos gastos obrigatórios e, pelo outro, por um programa gigantesco de transferência de renda, não é à toa que o espaço para os gastos não obrigatórios tenha desaparecido. E o que são esses gastos não obrigatórios?

A notícia a seguir destaca um deles.

Os salários dos policiais da PF são gastos obrigatórios, mas o papel para confeccionar o passaporte, não. A mesma coisa, por exemplo, nas universidades federais: os salários dos professores e funcionários são gastos obrigatórios, mas o dinheiro para comprar o papel higiênico, não. Os funcionários do IBGE têm o seu salário garantido, mas a estrutura para fazer o censo, não. Programas como Farmácia Popular e incentivos à cultura são não obrigatórios. E por aí vai.

Por isso, o PT propôs tirar R$ 105 bilhões adicionais da regra do teto por 4 anos. A máquina do Estado corre o sério risco de parar se isso não for feito. Bolsonaro teria exatamente o mesmo problema se tivesse sido eleito. Pode-se discutir esse montante, mas alguma coisa teria que ser feita.

Os mercados entendem todo esse racional. O problema é a falta de perspectiva de que esse problema será resolvido algum dia. O mercado financeiro vive de trazer o futuro a valor presente. Quando Lula dá a entender que não está nem aí para o equilíbrio fiscal e o PT pede waiver para 4 anos, a leitura é de que Lula e o PT não têm apetite para resolver a questão de maneira mais estrutural e, portanto, teremos uma dívida explosiva no futuro. E isso é precificado pelos mercados hoje.

Alguns me perguntam, com sinceridade de coração, o que eu faria no lugar, dadas as condições postas. A resposta é relativamente simples: a mesma coisa, só que cuidando a mensagem. “Vamos pedir um waiver de R$ 175 bilhões este ano para acomodar as promessas de campanha. Entendemos que se trata de algo totalmente excepcional. Ao mesmo tempo, vamos trabalhar pelas reformas administrativa e tributária e por uma nova regra fiscal já no primeiro ano do governo, de modo a estabilizar a trajetória da dívida pública”. Obviamente, o mercado não compraria a promessa a valor de face a zero de jogo, e esse montante certamente faria (fará!) com que o BC tenha dificuldade de cortar juros no ano que vem. Mas, pelo menos, se evitaria todo esse estresse dos mercados que vivenciamos nos últimos dias, e o novo governo poderia começar em um ambiente melhor.

Lula tem se comportado como presidente de grêmio estudantil. Quando voltar a vestir o figurino de presidente (se um dia voltar), os mercados responderão positivamente.

Testando os limites

O ser humano não lida bem com restrições. Estamos sempre querendo mais, independentemente do que já temos.

A discussão sobre o orçamento público é, no final do dia, uma discussão sobre restrições. Não aceitamos que não haja espaço no orçamento para todas as demandas legítimas de todos os cidadãos afetados, de uma forma ou de outra, pelos gastos governamentais.

O fato, no entanto, é que a atual carga tributária não é suficiente para atender a todas as demandas justas da sociedade. E, provavelmente, nunca será. Volte ao primeiro parágrafo para entender porquê.

Como o governo não cria o dinheiro que usa para atender às sempre crescentes demandas sociais, há somente uma forma de cumprir a responsabilidade social: tributando crescentemente os cidadãos.

Essa tributação pode se dar de três maneiras:

1) Aumentando a carga tributária atual

2) Aumentando a dívida atual, que vai se transformar em carga tributária no futuro (gastamos hoje e deixamos a conta para os nossos descendentes)

3) Imprimindo dinheiro, o que significa uma tributação dissimulada, ao diminuir o poder de compra do dinheiro (inflação)

As alternativas 1 e 3 são dolorosas politicamente. A alternativa 2, por outro lado, traz consigo a ilusão de que é possível realizar todos os sonhos sem dor. Isso acontece porque estamos empurrando a conta para frente. As dificuldades que enfrentamos hoje são o fruto de decisões de governos anteriores de empurrar o problema com a barriga, via aumento de dívida.

O problema da alternativa 2, no entanto, é que há um ponto de descontinuidade. Ao longo do tempo, os credores vão perdendo, um a um, a confiança na capacidade de pagamento do governo. O efeito disso é o aumento paulatino das taxas de juros. Os juros mais altos vão piorando a situação do devedor, pois a dívida vai aumentando de maneira mais rápida. Em um determinado momento, impossível de antecipar, há uma corrida contra a moeda, pois fica claro que o governo não terá capacidade de honrar seus compromissos. É o chamado “ataque especulativo”, que nada mais é do que os credores tentando se proteger do calote, formal ou informal.

Das 3 alternativas acima, nenhuma é benéfica aos mais pobres. Todas elas, de uma maneira ou de outra, minam a capacidade de crescimento da economia. Podemos enfiar a cabeça na terra e fazer de conta que austeridade fiscal é coisa de “banqueiros”. O ponto é que há um limite para o que o governo pode fazer pelos mais necessitados. Estamos testando esse limite.

Banqueiros, um inimigo conveniente

Quer ganhar alguém para a sua causa? Coloque “os banqueiros” como inimigos. É batata! Não há coisa mais demoníaca do que banqueiro.

Talvez seja uma herança dos tempos em que cobrar juros era considerado pecado. Ganhar dinheiro assim, sem fazer nada, aproveitando-se da necessidade do próximo, só podia ser coisa do demônio. Essa ideia medieval ainda sobrevive entre nós.

Lula não perde oportunidade de aproveitar-se da ojeriza natural do latino-americano médio aos banqueiros para defender suas ideias. Hoje não foi diferente. Ele diz que não vai tirar a comida da mesa do pobre pra pagar juro para banqueiro. Sim, Lula tem bom coração.

Essa fala de Lula tem dois erros assombrosos.

O primeiro é que os detentores da dívida pública (para quem o governo brasileiro precisa pagar juros) não se resumem aos bancos. Estes representam apenas 22% do total dos credores. Os restantes 78% da dívida estão nas mãos de fundos de investimento (25%), Fundos de Previdência (25%), Investidores Estrangeiros (13%), Seguradoras (5%) e Outros – incluindo Tesouro Direto (10%). Ou seja, pessoas físicas e jurídicas que depositam suas poupanças nas mãos do governo. Então, ao dizer que não vai “pagar juros para banqueiro”, Lula, na verdade, está dizendo que não vai pagar juros para mim, para você e para todos os que investem, direta ou indiretamente, em títulos públicos.

E aqui vem o segundo erro: o que Lula quer dizer com “não vou pagar juros?” Estará pensando em alguma forma de calote? Obviamente não é isso, mas esse tipo de fala, no limite, pode ser interpretado como uma espécie de ameaça. Se tem bicho mais covarde é investidor. Diante de qualquer ameaça, mesmo tênue, foge para um abrigo. Esse tipo de fala não contribui em nada com a tarefa hercúlea de rolar uma dívida pública de quase R$ 6 trilhões.

A demonização do credor da dívida (“o banqueiro”) é uma forma idiota de lidar com o problema criado pelo próprio governo. Afinal, ninguém obrigou os diversos governos brasileiros a tomarem dívida. Endividaram-se porque sempre há “necessidades sociais urgentes” a serem financiadas. O resultado é que pagamos de juros algo como R$ 800 bilhões por ano, 4 vezes mais do que o waiver pedido para gastar neste ano. E, cada vez que o voluntarismo populista se propõe a “resolver o problema dos pobres”, essa conta aumenta.

Não quer pagar juros? É simples: não se endivide. Claro, para isso é preciso que o governo gaste somente o que arrecada. Mas isso é pedir demais para governantes populistas. Mais fácil demonizar “os banqueiros”.

Enganação populista

Essa dicotomia “disciplina fiscal” vs. “justiça social” é falsa.

Vou usar aqui números aproximados, mas não tem problema, foque apenas no conceito. Temos hoje, grosso modo, um orçamento federal de R$ 1,6 trilhões. Ou seja, o governo gasta R$ 1,6 trilhões por ano para manter a máquina e todos os seus investimentos e programas sociais.

Toda a discussão se dá porque dizem que esse montante não é suficiente para resgatar a nossa “dívida social”, como enfatizou o nosso futuro presidente em seu discurso.

Digamos então, por hipótese, que fosse necessário gastar R$ 400 bilhões a mais por ano, ad aeternum, para resgatar a dívida social. Isto significaria um aumento de aproximadamente 5% do PIB em nossa já alta carga tributária. Mas ok, tudo pelo social!

O que aconteceria? Isso mesmo que você pensou: esse dinheiro adicional seria gasto sem que nada mudasse de maneira substancial. Os pobres continuariam pobres, a saúde continuaria essa lástima que conhecemos, a educação com as prioridades erradas etc. E, dentro de alguns (poucos) anos, mais dinheiro seria solicitado para “resgatar a nossa dívida social”.

A grande questão é que somos um país pobre (baixa renda per capita), e, enquanto continuarmos a ser um país pobre, as mazelas sociais continuarão aí, intactas. Não será aumentando a carga tributária, ou aumentando o endividamento do governo que nos tornaremos um país rico. Só enriqueceremos e, assim, mitigaremos os nossos problemas sociais, quando conseguirmos produzir mais com menos recursos. O resto é enganação populista.

O falso ortodoxo

Já tive oportunidade de escrever aqui a respeito das “ideias” de André Lara Resende, apresentado ao distinto público leigo como um dos “pais do Plano Real”, epíteto na medida certa para provocar uma sensação de conforto. Afinal, se o cara pariu o Plano Real, que salvou o país da hiperinflação, não deve pertencer àquela trupe que nos jogou na maior recessão da história brasileira.

Ocorre que Lara Resende é o principal defensor no país de um troço chamado MMT – Modern Monetary Theory, que propõe, em resumo, a capacidade de endividamento infinito do governo em sua própria moeda, pois, neste caso, o calote seria impossível. Em linguagem mais elegante, um governo que consegue se endividar na própria moeda não teria restrição fiscal. Claro. Mesmo porque, a dívida desaparece pelo efeito da inflação, não é necessário um calote formal.

A jornalista Claudia Safatle faz um resumo das “ideias” de Lara Resende em sua coluna de hoje. Destaquei apenas um trecho, em que o “pai do Plano Real” propõe um novo Copom que determinasse tanto a taxa de juros quanto o nível de investimento do governo.

Claro que a determinação da taxa de juros estaria subordinada a outras considerações além do controle da inflação. Sabe aquela ideia de independência do BC, pedra angular da estabilidade da moeda? Pois é. Gustavo Franco, em sua obra A Moeda e a Lei, descreve o longo e tortuoso caminho que seguimos durante várias décadas até finalmente conseguirmos criar uma agência independente que fosse a guardiã da moeda, blindada contra as pressões para a impressão de moeda sem lastro, sempre com nobres fins. Lara Resende propõe voltar várias casas nesse jogo.

Hoje, Lara Resende tem muito mais a ver com nomes como Guilherme Melo, Nelson Barbosa, Guido Mantega e Antônio Corrêa Lacerda, todos convocados a fazer parte da “equipe de transição”, do que com Pérsio Arida. O outro “pai do Real” não demorará a perceber que é um corpo estranho nesse organismo, da mesma forma que Joaquim Levy no segundo governo Dilma, devidamente rejeitado após um transplante impossível de dar certo. Em artigo no Estadão de hoje, Elena Landau, que foi coordenadora do programa econômico da candidata Simone Tebet, já caiu na real a respeito do novo governo. Em suas palavras, “Lula não aceita limites”, e “mostra que não aprendeu que, sem responsabilidade fiscal, as pessoas mais necessitadas são as que mais sofrem”. Pérsio, que é do mesmo time de Elena, já deve ter percebido isso.

Lula gosta de dizer que seu governo foi responsável fiscalmente, pois produziu superávits primários por 8 anos seguidos. O que ele não conta é que desperdiçou uma oportunidade de ouro para nos levar a outro patamar, quando os ventos externos nos eram favoráveis, ao optar pelo modelo Dilma-Mantega a partir de 2006, abandonando o modelo Palocci. A semente do desastre Dilma foi plantada por Lula. E os nomes que fazem parte da equipe de transição, além de seu discurso, mostram que o modelo Dilma-Mantega voltará a ser implementado.

Lula é pragmático, dizem. Quando o dólar bater R$ 7,00, ele vai fazer a coisa certa. Estou mais tranquilo.