Tive uma ideia matadora para o problema fiscal brasileiro. E não é uma ideia complicada e, nem sequer, original.
O problema, como sabemos, é encontrar um regime fiscal que conte, ao mesmo tempo, com a confiança dos agentes econômicos, mas tenha flexibilidade suficiente para atender a tantas e diversificadas necessidades dos brasileirinhos.
A ideia, como disse, é simples. Manteríamos os mais estritos controles e regras fiscais durante três anos. Nesse período, vale a Lei da Responsabilidade Fiscal, a Regra de Ouro, o Teto de Gastos e qualquer outra lei que nossos parlamentares possam imaginar para transmitir a ideia de que somos muito responsáveis. Mas, em ano eleitoral, todas essas regras seriam suspensas, e o gasto estaria liberado. Todos ficariam satisfeitos: os credores da dívida saberiam que os gastos irresponsáveis estariam restritos a um ano só a cada quatro, enquanto os brasileiros prenderiam a respiração durante 3 anos para então, no quarto ano, recuperarem todos os seus “direitos sociais”. E, claro, seria uma mão na roda para os mandatários de turno. Um claro ganha-ganha-ganha.
Como disse, essa ideia não é original. A fidelidade partidária conta com essa válvula de escape. Somos um país muito cônscio da importância dos partidos políticos para a Democracia. Por isso, temos uma rígida lei de fidelidade partidária, que leva ao extremo da perda do mandato para o político que muda de partido no meio de seu mandato. Mas essa lei tem uma exceção: a chamada “janela partidária”, um período de 30 dias a seis meses das eleições. Durante esse período, está liberado o “troca-troca” generalizado. Ninguém é de ninguém, e todo mundo fica feliz.
A janela partidária me faz lembrar um filme de suspense chamado The Purge. Em uma sociedade distópica, durante um dia por ano as leis são suspensas, de modo que as pessoas possam cometer qualquer crime, inclusive assassinatos, sem serem punidos. A ideia é que os cidadãos precisam ter esse dia liberado para purgar a sociedade de todo o ódio. Uma vez o ódio tendo sido extravasado, os outros dias do ano são vividos na mais pura paz hipócrita, baseada em leis que todos sabem serão suspensas em algum ponto no futuro.
A nossa sociedade não está preparada para leis rígidas. Precisamos de exceções e jeitinhos, de modo a extravasar a nossa verdadeira natureza. A ideia de liberar um ano de irresponsabilidade fiscal é justamente acomodar essa nossa incapacidade de seguir regras. Estou certo de que os credores da dívida irão entender.
Quando taxa de título público alcança o status de manchete principal de jornal não especializado em finanças, é que a coisa já passou do ponto faz tempo.
Para quem labuta no mercado financeiro, isso não é novidade. Venho falando do problema do financiamento da dívida pública há já algum tempo. É que essas coisas funcionam como a história do sapo na panela. Pra quem não conhece: para matar um sapo, não adianta colocá-lo em uma frigideira. O sapo sente a mudança de temperatura imediatamente e pula fora da panela. Mas se você colocar o sapo em uma panela em banho maria em fogo baixo, a temperatura vai aumentando aos poucos. O sapo vai se acostumando com as novas temperaturas até que chega em um determinado momento em que morre cozido sem reação. É o que podemos constatar no gráfico da manchete, que mostra a evolução da taxa real de juros dos títulos brasileiros mais longos: a taxa vai subindo, subindo, e vamos nos acostumando aos novos níveis, até que chegará um momento em que o sapo vai morrer, ou seja, faltará quem queira continuar a financiar a dívida a prazos longos, qualquer que seja a taxa. A manchete do Estadão é só um sinal de que o sapo está incomodado com a situação.
Apenas para ter uma ideia da situação: estamos hoje pagando 6% ao ano além da inflação para financiar nossa dívida em prazos mais longos. Considerando que nossa relação dívida/PIB é de 80%, a dívida nos custa quase 5% do PIB todo ano para ser rolada, além da inflação. Considerando um crescimento do PIB de 2% ao ano em termos reais, precisaríamos de um superávit primário de 3% ao ano somente para manter a relação dívida/PIB estável.
Como comparação, os títulos americanos pagam 1% acima da inflação. Com uma relação dívida/PIB de 130%, o custo de carregamento da dívida é de 1,3% do PIB. No Chile, os títulos pagam 3% acima da inflação. Com uma relação dívida/PIB de 35%, o carregamento da dívida custa aos chilenos cerca de 1% do PIB. Ou seja, se Estados Unidos e Chile crescerem 2% ao ano, sua relação dívida/PIB fica estável mesmo que façam déficits de 1% do PIB.
E por que chegamos neste ponto? Porque a regra do teto de gastos, que foi feita justamente para garantir que a dívida pública não entre em trajetória explosiva ao longo do tempo, foi, na prática, destruída por este governo, abrindo caminho para que o próximo também ignore qualquer regra de disciplina fiscal. Bastou a produção de um superávit primário no ano passado, em grande parte por conta da surpresa inflacionária, para que políticos de todas as cores achassem que já poderiam soltar o cinto, gastando o “dinheiro que sobrou”. O problema é que não sobrou nada, na verdade está faltando muito para controlar o crescimento da dívida pública. O resultado é taxa de juros mais alta, mais despesa financeira, menor crescimento econômico e maior dificuldade para trazer a inflação a níveis civilizados.
Muitos acusam essa visão de ser “financista”, de não olhar para as necessidades dos mais pobres. Não é verdade. Essa visão se preocupa não somente com os pobres de hoje, mas com todos os pobres do futuro. Se existe o nível de pobreza que vemos hoje, é porque, no passado, os que têm visão humanitária, não “financista”, não se preocuparam com os pobres do futuro. Na verdade, os grandes responsáveis pela pobreza de amanhã são justamente os que se dizem muito preocupados com os pobres de hoje. Com suas políticas imediatistas, estão fabricando a pobreza do amanhã. “Pobres, sempre os tereis”, diz Jesus em uma passagem. Aqui no Brasil, isso soa como uma profecia.
Até parece uma continuidade do meu post de ontem. Segundo reportagem de hoje, Lula estaria investindo em reuniões com empresários, apesar de continuar demonizando o capital sempre que tem uma chance. A matéria entrevista alguns analistas políticos para procurar desvendar o mistério dessa aparente contradição. Além da velha desculpa de “ganhar o povo com o discurso, mas garantir que fará outra coisa quando eleito” (também conhecido como estelionato eleitoral), outra explicação chamou-me a atenção: a de que Lula estaria se reunindo com empresários para convencê-los de que, antes de um ajuste fiscal, o país precisa de um “ajuste social”. Seria como avisar o peru de que o dia de Ação de Graças está chegando.
Essa ideia de que o país tem muitas urgências sociais e, portanto, não pode priorizar os credores da dívida, não é exclusiva dos petistas. Fui acusado de “insensibilidade” ao criticar a PEC Kamikaze, pois, como sabemos, há muitos passando fome e é urgente resolver esse problema. E a crítica não veio de petistas, mas de pessoas que, até outra dia, chamavam o bolsa-família de bolsa-esmola. O que não faz pela “consciência social” um político de estimação como presidente.
Sempre que ouço essa ladainha do “social x fiscal” lembro da história dos 3 porquinhos. Não sei se as crianças de hoje conhecem a história, mas eu cresci ouvindo e cansei de contar para os meus filhos essa alegoria da prudência. “Primeiro os deveres, depois os prazeres” era a moral da história.
Óbvio que as necessidades sociais dos brasileiros mais pobres não são prazeres, são necessidades reais e urgentes. Não se trata de minimizar essas necessidades ou postergar a sua mitigação. Trata-se, na verdade, de se encontrar o melhor meio de que essas necessidades sejam atendidas de modo permanente, e não com truques que perdem o seu efeito com o tempo. Trata-se de construir uma casa segura.
É neste ponto que o programa econômico do PT é terrivelmente errado. A questão social é um problema urgente, Lula não precisa gastar sua saliva para convencer os empresários e o mercado financeiro sobre este ponto. O problema, como sempre, é como resolver a questão de maneira permanente.
O problema do PT não são seus programas sociais, em grande parte meritórios. O problema está em como financiar isso. Lula, Dilma e o PT já mostraram à exaustão o que pensam sobre isso. Seu plano sempre envolve turbinar setores escolhidos a dedo por uma burocracia iluminada por meio da expansão do crédito de bancos públicos. A preocupação com o equilíbrio fiscal fica em segundo plano, pois o crescimento econômico gerado por essas ações governamentais geraria o aumento da arrecadação que, por sua vez, equilibraria o orçamento público novamente, em um moto-perpétuo virtuoso.
A coisa até que funciona bem enquanto o lobo mau não chega. Os porquinhos se divertem dentro de suas casas de madeira e de palha, comemorando um “novo tempo”. Mas o lobo mau do aumento dos juros globais, da recessão global, das crises globais enfim, sempre chega, e põe abaixo aquelas construções precárias. Já tivemos oportunidade de ver o começo, o meio e o fim dessa história durante os mais de 13 anos de governos do PT.
Em contraste, os chamados pejorativamente de “ortodoxos” são como o porquinho Prático. Não é que desprezemos as necessidades sociais do país. Muito pelo contrário. Queremos que qualquer avanço social seja perene, não frágil a ponto de ser derrubado pelo primeiro lobo mau que apareça. E a única forma de se fazer isso é respeitar a moeda do país. A moeda é o material usado para construir a casa. Se a moeda é fraca como madeira ou palha, a casa se torna frágil. Se a moeda é forte como tijolo, a casa permanece em pé. Cuidar das contas públicas, no final do dia, é cuidar da saúde da moeda. Isso não é, de maneira alguma, incompatível com programas sociais. Mas sim, é incompatível com programas tresloucados de crescimento econômico que não param em pé.
Os empresários que dão apoio a esse tipo de plataforma econômica se dividem em duas categorias: aqueles que acreditam na “mágica do crescimento” (bem poucos) e aqueles que fornecem a madeira e a palha para construir as casas (a maioria). Estes últimos podem até se aproveitar do voo de galinha, mas estarão ajudando a cavar ainda mais o buraco em que nos encontramos. Ou melhor, a construir casas que não param em pé.
O Brazil Journal, um blog dedicado a finanças e economia, publicou um artigo analisando a escolha dos ministros da fazenda pelos recém-eleitos presidentes do Chile e da Colômbia, Gabriel Boric e Gustavo Petro. Boric nomeou Mario Maciel, ex-presidente do BC e um dos formuladores da regra de superávit primário estrutural em vigor no Chile. Petro acaba de nomear José Antônio Ocampo, PhD por Yale e que, apesar de ter ideias desenvolvimentistas, aparentemente preocupa-se também com o equilíbrio fiscal.
O artigo então continua, perguntando qual é a de Lula? Será que seguiria o exemplo de suas contrapartes de esquerda no Chile e na Colômbia e também nomearia um nome mais alinhado ao mainstream econômico ou apostaria todas as fichas em algo mais radical, a lá 1o mandato de Dilma Rousseff? A sinalização até o momento, estressa o artigo, é na direção da 2a opção. Todas as manifestações de Lula, até o momento, são no sentido de demonizar o capital e todas as reformas que procuraram equilibrar as contas públicas ou aumentar a produtividade da economia. Segundo o artigo, “la garantia soy yo” é a única sinalização de Lula até o momento para o mundo empresarial e financeiro.
Creio que, antes de comparar Lula com Boric ou Petro, é necessário entender a diferença da situação entre o potencial próximo presidente brasileiro e as suas contrapartes do Chile e da Colômbia, além da óbvia constatação de que os três são de esquerda.
O artigo constata que um movimento óbvio de Boric e Petro é o aumento da carga tributária nos seus países para financiar programas sociais. No Chile, o governo já apresentou uma proposta de aumento de impostos no valor de 4,1% do PIB, enquanto na Colômbia, o recém-nomeado ministro da fazenda escreveu recentemente artigo defendendo um aumento da carga tributária de 3% do PIB. O mesmo poderia fazer o próximo presidente brasileiro?
Segundo a OCDE, a carga tributária de Chile e Colômbia é de, respectivamente, 19,3% e 18,7% do PIB. No Brasil, segundo o mesmo levantamente, a carga tributária é de 31,6%, a maior da América Latina e comparável a países como Nova Zelândia e Reino Unido, e apenas 2 pontos percentuais a menos do que a média da OCDE. Se aumentasse a carga tributária em 3 pontos percentuais, o Brasil alcançaria países como Canadá e Portugal. A decisão de aumentar a carga tributária no Chile e na Colômbia é relativamente fácil. No Brasil, nem tanto.
Mas a coisa não para por aí. Segundo o FMI (previsões para 2022), o Chile tem uma dívida bruta de 38% do PIB e seu déficit nominal (despesas do governo + juros da dívida) é de 1,5% do PIB. A situação da Colômbia é um pouco pior: dívida bruta de 60% e déficit nominal de 4,5% do PIB. Enquanto isso, a dívida bruta do Brasil é de 92% do PIB com déficit nominal de 7,5% do PIB. Ou seja, o Brasil precisaria estar subindo a carga tributária em 3 pontos percentuais só para igualar o déficit da Colômbia ou em 6 pontos percentuais só para igualar o déficit do Chile. Em resumo: saímos atrás no grid de largada para aumentar gastos sociais e o nosso carro é ben mais pesado. Não à toa, Chile e Colômbia são investment grade e, portanto, gozam do privilégio de poderem, pelo menos por enquanto, pagar taxas de juros mais baixas do que o Brasil sobre suas dívidas.
Mas a situação de Lula é diferente de suas contrapartes do Chile e da Colômbia ainda sob um outro aspecto: enquanto Boric e Petro são novidades, Lula é velho conhecido do mercado brasileiro. Boric é o primeiro presidente de extrema esquerda em um país que alternou governos de centro-esquerda e de centro-direita desde que Pinochet deixou o poder. Petro é o primeiro presidente de esquerda na Colômbia. Ambos precisam pisar em ovos para ganhar a confiança dos mercados neste primeiro momento. Lula não. Lula conta com um histórico de grande sucesso na administração da economia (vamos, por ora, esquecer o desastre Dilma).
Lula se aproveita dessa memória para ampliar a ambiguidade sobre a sua futura agenda como presidente. Enquanto diz “la garantia soy yo”, não perde oportunidade de deixar clara a sua visão tacanha sobre o processo econômico. Em minha série sobre a economia brasileira na era PT, mostro como o desastre Dilma foi gestado no segundo mandato de Lula. Estava tudo lá, mas o desastre somente se consumou quando o dinheiro acabou.
Portanto, ao contrário de Boric e Petro, Lula, durante a campanha e se eleito, conta com um voto de confiança do mercado. Não precisará, portanto, ganhar uma confiança que falta a Boric e Petro. E isto poderá se traduzir em iniciativas pouco ortodoxas já no início de seu governo, quando então os participantes do mercado começarão, aos poucos, a desfazerem a imagem que têm de Lula do 1o mandato. O pior é que, como vimos, não há margem de manobra. Qualquer iniciativa diferente de um grande e profundo programa de reformas estruturais está fadado a aprofundar muito rapidamente o buraco em que estamos.
A máquina pública range e geme debaixo de uma expectativa de desempenho cada vez mais distante da realidade orçamentária. Todos os dias temos um rodízio de notícias sobre as insuficiências nas mais diversas áreas da administração pública. Hoje, o tema é “falta de professores nas universidades federais”.
O governo Bolsonaro é o vilão da vez, por ter cortado verbas de custeio das federais, mas a questão da contratação de professores remonta a 2017, governo Temer, que era, então, o vampirão da vez.
A verdade é que ainda estamos pagando pelo expansionismo irresponsável do serviço público patrocinado pelos governos do PT. No caso em pauta, a inauguração de universidades federais como se não houvesse amanhã. Só que o amanhã chegou, e não tem dinheiro para a contratação de mais professores. O Brasil é o país das grandes obras inauguradas com pompa e circunstância, e abandonadas anos depois por falta de previsão de recursos para acabá-las. Este vício, aliás, não é exclusividade do PT, mas o partido, quando foi governo, atingiu o estado da arte na prática.
Muitos se enganam ao pensar que basta “combater a corrupção” ou “gastar melhor o dinheiro” para resolver o problema. Sem dúvida, a corrupção representa um vazamento de recursos públicos que poderiam estar sendo gastos na melhoria da vida da população. Mas a ordem de grandeza do roubo puro e simples não dá nem para o início na questão de resolver as lacunas do serviço público. A alocação de recursos de maneira mais racional é, de longe, a coisa mais importante a ser feita.
No entanto, quando falamos em “gastar melhor o dinheiro”, o “melhor” é sempre no nosso quadrado. Luta-se com denodo e afinco pela remuneração do serviço público, pelas isenções e alíquotas de impostos, pelos subsídios, pelas regras de aposentadoria, e por uma longa lista de etceteras, em que as palavras “direito” e “privilégio” trocam de lugar a depender de quem está falando. O fato é que “ninguém sai de cima, nesse chove-não-molha”, como diria Rita Lee.
O resultado é uma máquina pública rangendo e gemendo sob as expectativas dos brasileiros, que querem serviços suecos pagando carga tributária de país africano e sem ter o pacto social que permite aos nórdicos aplicar o dinheiro público no melhor interesse da sociedade como um todo, e não de corporações bem estruturadas.
O próximo presidente será eleito com a promessa de “resolver essas problemas”. Não resolverá nada, a menos que lidere um pacto anti-corporações. Como não vai acontecer, podemos nos dar por satisfeitos se, pelo menos, não agravar o problema para o futuro.
Um governo ortodoxo é caracterizado, basicamente, por manter os fundamentos que permitem a estabilidade da moeda ao longo do tempo. Estes fundamentos são a disciplina fiscal e o controle da inflação. Ou, em economês, a política fiscal e a política monetária. Neste episódio, exploraremos a política fiscal e, no próximo, a política monetária dos governos do PT.
Sem balançar o barco
A responsabilidade fiscal do primeiro mandato de Lula é comumente citada como prova de que o ex-presidente é confiável do ponto de vista de equilíbrio macroeconômico. De fato, tendo herdado uma média de superávit primário do governo FHC de 2,5% ao ano, o governo Lula produziu uma média de superávit primário muito próxima, de 2,3% ao ano, até 2008, conforme podemos ver no gráfico a seguir.
No entanto, a Grande Crise Financeira internacional, em 2008, fez com que o governo do PT tivesse o álibi perfeito para abrir os cofres e diminuir o superávit primário para uma média de 1,7% ao ano nos anos seguintes, até 2013. Este álibi consistiu na necessidade de investimentos públicos para manter a economia brasileira em crescimento, mesmo com uma desaceleração brutal da economia global. Ficou famosa a frase de Lula, de que a crise global seria apenas uma “marolinha” nas praias brasileiras. A crise financeira internacional se transformou em uma leve recessão em 2009, muito menor do que no mundo desenvolvido.
Para entender o que aconteceu neste período, ser-nos-á útil acompanhar o crescimento das despesas e das receitas no gráfico a seguir:
Este gráfico mostra o crescimento real de despesas e receitas do governo federal, ou seja, o crescimento acima da inflação. Nos “Anos da Grande Ilusão” (2003 – 2008), as despesas cresceram 6,6% ao ano em termos reais, mas este crescimento foi suportado pelo crescimento de 7,0% ao ano das receitas neste período. Já nos “Anos da Húbris”, as despesas cresceram mais ou menos no mesmo ritmo do período anterior. O problema foi que as receitas cresceram muito menos, cerca de 5,4% ao ano, explicando, então, a diminuição do superávit primário neste período e preparando a cena para o desastre do período seguinte. Na parte final, os “Anos da Economia em Vertigem”, as despesas até que foram contidas, crescendo apenas 2,4% ao ano, mas as receitas despencaram, reduzindo-se em quase 4% ao ano. Foi este gap que produziu os déficits primários deste período.
Os petistas costumam dizer que o problema do desequilíbrio fiscal não foi causado por um descontrole das despesas, mas por uma queda abrupta das receitas. Não deixam de ter razão, uma vez que as despesas foram desaceleradas de maneira bastante forte no período final, mas, mesmo assim, não foram capazes de evitar o aumento do déficit, devido à desaceleração ainda maior das receitas.
O problema é que esta narrativa, como dizia Roberto Campos, é como biquini: mostra tudo, mas esconde o essencial. Para entender o essencial, precisamos nos colocar onde tudo começou.
Os atores assumem seus lugares no palco
Os grandes acontecimentos da história normalmente começam de maneira discreta, sem que se note. No caso da grande recessão brasileira, podemos datar o início da sua pré-história em 21 de junho de 2005, por ocasião da nomeação de Dilma Rousseff como ministra da Casa Civil, substituindo José Dirceu, alvejado pelo Mensalão.
Com isso, Lula decide-se por colocar na Casa Civil uma pessoa com perfil técnico, diferente do seu antecessor, que atuava na articulação política. E é este perfil que definirá os próximos passos da política econômica do governo Lula.
Em 09 de novembro de 2005, pouco mais de 4 meses depois de ser nomeada, Dilma mostra a que veio, desautorizando estudos do ministério do Planejamento, ainda sob o comando de Paulo Bernardo, que previa um aumento estrutural do superávit primário de modo a reduzir a dívida pública ao longo dos próximos anos e, assim, levar a uma queda estrutural das taxas de juros nos 10 anos seguintes.
Vale a leitura atenta do trecho da entrevista concedida pela ministra ao Estadão, na qual Dilma, em sua linguagem peculiar, define a sua visão de mundo a respeito do tratamento das contas públicas:
A ministra começa por reconhecer que, para crescer, é necessário diminuir a dívida pública. Mas, então, por alguma manobra mental difícil de alcançar, troca a ordem dos fatores: segundo a ministra, a dívida pública só não vai crescer se os juros forem baixos. Isso é um truísmo matemático, mas de pouca serventia para resolver o problema dos juros altos. Ocorre que os juros só caem se a dívida pública for reduzida. Dilma fala como se as taxas de juros estivessem sob domínio do governo, e não fossem um preço determinado pelo mercado. “Uma política de juros consistente”, nas palavras da ministra, significa algum controle mágico em que o governo reduz os juros na marra. Veremos essa política em todo o seu esplendor quando a ministra se tornar presidente da República.
A seguir, Dilma coloca corretamente a dificuldade política de um ajuste fiscal. Afinal, sempre há gastos a serem feitos. Mas o plano do ministério do Planejamento é justamente aproveitar o momento favorável para as contas públicas (o superávit, naquele ano, estava caminhando para 6% do PIB) para aumentar a meta sem abrir mão dos gastos correntes. Afinal, é justamente este o mantra de quem defende um orçamento “contracíclico”: gastar mais (em relação ao PIB) quando a economia está crescendo pouco, e gastar menos quando a economia está acelerando. O plano era gastar menos, aproveitando o bom momento da economia brasileira, fruto dos ajustes realizados nos anos anteriores e da aceleração do crescimento chinês, que puxava todos os produtores de commodities. Mas Dilma não pensa assim. É nesta entrevista que a ministra solta a frase que irá eternizá-la: despesa é vida.
A arrogância de quem sabe tudo transparece em cada frase da ministra, mesmo quando solta platitudes do tipo “sempre teremos despesas correntes”. Esta arrogância irá lhe custar a governabilidade alguns anos depois. Mas, continuemos a nossa história.
Em 27 de março de 2006, o então presidente do BNDES, Guido Mantega, sucede no ministério da Fazenda a Antônio Palocci, alvejado pelo escândalo do caseiro.
Lula poderia ter substituído Palocci por outro ministro de linha ortodoxa, mas escolhe alguém que juntar-se-á a Dilma para implementar a política econômica que levaria o país ao céu antes de lançá-lo no inferno.
Com a mudança dos ventos, o time de profissionais ortodoxos que fez parte do primeiro time de Palocci começa a abandonar o barco. O primeiro foi Marcos Lisboa, já em abril de 2005, seguido por Joaquim Levy em março de 2006 (no mesmo dia da saída de Palocci). Para o lugar de Levy, na estratégica secretaria do Tesouro, Mantega inicialmente nomeou o também ortodoxo Carlos Kawall, profissional com experiência no mercado financeiro. Mas esta nomeação não durou muito. Em dezembro de 2006 Kawall também abandona o barco, sendo substituído por um secretário interino até a nomeação, em junho de 2007, de Arno Augustin, o mago da “contabilidade criativa”, que acompanharia Dilma e Mantega até o fim do 1º mandato da presidente, em dezembro de 2014. Augustin foi o mais longevo secretário do Tesouro desde a criação do cargo, em 1986, o que diz muito sobre o Brasil desses tempos.
Portanto, a questão da queda brutal das receitas a partir de 2014 é apenas uma parte da história, e que exploraremos com mais detalhe no Episódio 4, sobre o crescimento econômico. As despesas cresceram de maneira relevante durante os governos do PT por uma questão ideológica. “Despesa é vida”, e não se pode cortar a “vida” sem conversar com os 180 milhões de russos, quer dizer, brasileiros. Tivesse Palocci tido sucesso em seu plano de ajuste fiscal, as contas brasileiras estariam em estado muito melhor para enfrentar os momentos mais difíceis que viriam depois.
O efeito de superávits primários insuficientes foi a queda insuficiente da dívida pública. Talvez não exista gráfico mais ilustrativo das três fases dos governos do PT do que o da dívida pública:
Este gráfico mostra a evolução da dívida bruta do governo geral ao longo dos governos do PT. A dívida bruta é o total devido pelo governo, representado pela soma de todos os títulos públicos detidos pelos investidores. Se, em algum momento, os compradores dos títulos públicos resolvessem resgatá-los e pedir o dinheiro de volta, este seria o montante devido. A dívida líquida, por outro lado, subtrai da dívida bruta os ativos do governo, principalmente as reservas internacionais e os empréstimos para os bancos públicos, principalmente o BNDES. Portanto, as reservas internacionais e o dinheiro emprestado para o BNDES fazem aumentar a dívida bruta (é preciso emitir títulos para ter este dinheiro), mas não a dívida líquida.
No esquema a seguir, ilustramos a relação entre dívida líquida e dívida bruta:
Sendo assim, para emprestar dinheiro para o BNDES, o governo precisa emitir dívida. Mas é a dívida bruta que aumenta, a dívida líquida permanece igual, porque, de um lado, o governo é devedor dos detentores de títulos públicos, mas do outro lado, é credor do BNDES. Ocorre que nem todos os ativos do BNDES vão ser recebidos, haja vista empréstimos duvidosos, como para o metrô de Caracas ou para construir estádios para a Copa do Mundo. Se estes empréstimos não são recebidos, no final é o governo que sofre o prejuízo, porque o BNDES não tem condições de devolver o dinheiro emprestado para o governo. É neste ponto que a dívida líquida se transforma em dívida bruta.
No gráfico a seguir, podemos comparar o comportamento das dívidas bruta e líquida do governo neste período.
Como vimos anteriormente, a dívida bruta praticamente para de cair a partir de 2009, mas a dívida líquida continua recuando até 2014, quando também começa a aumentar em função dos déficits fiscais. Esta diferença de comportamento ocorre basicamente por causa do aumento do orçamento do BNDES, que afeta a dívida bruta mas não a líquida. Ou seja, o esforço fiscal, a partir de 2009, foi usado para aumentar o orçamento do BNDES. Veremos isso com mais detalhe no Episódio 4, sobre crescimento econômico.
Durante muitos anos, os analistas financeiros prestaram mais atenção para a dívida líquida, esquecendo-se que, no final do dia, é a dívida bruta que precisa ser paga, e o dinheiro do BNDES pode não estar disponível quando se fizer necessário. Veremos este conceito voltar à frente, no Episódio 5, quando falarmos da capitalização da Petrobrás.
Observe, no gráfico anterior, os momentos em que a S&P, uma das principais agências de avaliação de risco, concede e retira o chamado Grau de Investimento. O Brasil fez parte dessa elite de países mais confiáveis durante pouco mais de sete anos. Lula estufava o peito, apontando o reconhecimento das agências internacionais como uma espécie de medalha a confirmar a qualidade da gestão econômica do PT. De fato, chegamos no Grau de Investimento ao final dos anos da Grande Ilusão, mas os Anos da Húbris semearam a sua perda durante os Anos da Economia em Vertigem.
A preocupação de Palocci com o tamanho da dívida era legítima. Se compararmos a dívida pública brasileira com a média da dívida de outros países emergentes, veremos que a nossa é muito superior:
Uma dívida pública muito grande deixa menos margem de manobra para absorver choques externos e para fazer política monetária, pois uma taxa de juros que incide sobre uma dívida mais alta gera maior pagamento de juros. Isso é o que nos leva a um déficit nominal (déficit primário mais o pagamento de juros) maior, conforme podemos ver no gráfico a seguir:
Observe como as barras laranjas vão diminuindo ao longo dos anos a partir de 2003 para aumentarem abruptamente em 2015, quando a dívida explode em conjunto com o aumento das taxas de juros. Voltamos ao mesmo ponto de 2003 (pouco mais de 8% do PIB em pagamento de juros), mas sem ter o mesmo superávit primário que compensava este pagamento. O resultado foi um déficit nominal brutal em 2015, de mais de 10% do PIB, o que piora ainda mais a situação das contas públicas, pois esse déficit precisa ser rolado, aumentando a dívida.
Um novo capitão para salvar o barco
A deterioração das contas públicas a partir de 2013 e, com mais velocidade, a partir de 2014, faz com que Dilma dê um cavalo de pau em sua política fiscal, anunciando, 20 dias depois de reeleita, Joaquim Levy, ex-secretário do Tesouro no primeiro governo Lula, para o ministério da Fazenda.
Mas note que, como sempre, a virada ortodoxa se faz acompanhar de um molho heterodoxo. Nelson Barbosa é um economista ligado ao PT, com ideias ortodoxas até a página 2. Estará ali, como Guido Mantega esteve quando Palocci era ministro da Fazenda, na reserva para quando a sua presença se fizer necessária ou oportuna. No caso de Guido Mantega, a sua promoção para o ministério da Fazenda em 2006 se deu após Lula se sentir suficientemente confiante em adotar a agenda econômica do PT, capitaneada por Mantega e Dilma Rousseff.
No caso de Barbosa, a sua entrada em cena no lugar de Joaquim Levy se dará para apagar as luzes do governo Dilma, já em dezembro de 2015. Mas esta foi uma troca apenas protocolar: na prática, Levy já havia deixado de ser ministro da Fazenda desde agosto, quando foi vencido na proposta de orçamento para 2016 prevendo déficit primário, o que não acontecia desde o longínquo ano de 1998. Não sem antes o governo tentar a volta da CPMF sem sucesso.
O final do governo Dilma foi melancólico sob vários pontos de vista, mas talvez o aspecto fiscal seja o mais saliente, pois foi aqui que tivemos o motivo técnico para o impeachment: as chamadas “pedaladas fiscais”.
Da contabilidade criativa às pedaladas fiscais
É difícil identificar a origem do termo “pedaladas fiscais”. Trata-se de um tema árido, que envolve os meandros da contabilidade pública, e é de difícil tradução para o público leigo. Não à toa, muitos dos que criticaram o processo de impeachment utilizaram justamente esta dificuldade de entendimento para alegar que Dilma foi derrubada por conta de “filigranas técnicas”. Que são técnicas, não tem dúvida. Mas não foram, de maneira alguma, apenas “filigranas”. As pedaladas envolveram bilhões de reais ao longo de anos, afetando o entendimento do real estado das contas públicas.
As pedaladas fiscais foram o ápice do que se convencionou chamar de “contabilidade criativa”. Arno Augustin, secretário do Tesouro desde junho de 2007, foi o autor intelectual de várias manobras contábeis que permitiram “turbinar” as contas públicas sem que fosse preciso economizar dinheiro de verdade. Dois exemplos vão ilustrar a prática. Assim como estes, há vários outros casos.
Em agosto de 2010, o Tesouro “vendeu” ao BNDES o direito de receber os dividendos da Eletrobrás nos anos seguintes.
O dinheiro recebido à vista (R$ 1,4 bilhão) engordou o superávit primário. A questão é que este dinheiro saiu do cofre do próprio Tesouro, foi para o BNDES como “empréstimo” (o que, como vimos, não afeta o superávit primário) e voltou na forma de um “pagamento” do BNDES, o que afeta positivamente o saldo primário do governo. Então, o Tesouro mandou R$ 1,4 bilhão para o BNDES, o BNDES devolveu esse dinheiro para o Tesouro, e por causa do critério contábil adotado, essa operação fez o superávit primário crescer em R$ 1,4 bilhão. Ou seja, sem arrecadar um tostão a mais, o superávit do governo engordou. Claro que essa operação teve um custo: o BNDES adiantou um dinheiro para o Tesouro, e cobrou juros sobre isso. Além disso, subtraiu recursos que poderiam entrar no caixa do Tesouro no futuro e que fariam falta para fechar as contas.
Várias outras operações dessa natureza foram realizadas, normalmente envolvendo a capitalização de um banco público (BNDES e Caixa) em contrapartida de pagamento adiantado de dividendos por parte desse banco. A capitalização não afetava a dívida líquida do Tesouro (por ter uma contrapartida do outro lado) e os dividendos engordavam o superávit primário. Foram tantas operações dessa natureza, que os técnicos do Tesouro se viram obrigados a alertar o então secretário Arno Augustin sobre a perda de credibilidade fiscal, em tensa reunião de novembro de 2013, revelada pelo Estadão no início de dezembro e depois descrita em mais detalhe por esta reportagem do jornal Valor Econômico de 11 de dezembro de 2015, em função de operações que faziam aumentar o superávit fiscal de maneira fictícia. A principal recomendação é a que vai a seguir, sugerindo a interrupção de operações desse tipo:
O segundo exemplo foi bem mais famoso: a megacapitalização da Petrobras. Em 2010, o governo promoveu uma chamada de capital dos acionistas para investir na exploração do pré-sal e em outros investimentos da empresa. Ocorre que o Tesouro, obviamente, não tinha como acompanhar essa capitalização, dado que não tinha dinheiro em caixa. Para não perder o controle sobre a empresa, o governo “vendeu” para a Petrobras barris de petróleo a serem explorados, dado que o petróleo pertence à União e é somente explorado pela Petrobras. Com o dinheiro da venda desses barris antes mesmo de terem sido explorados, a União pagou a sua parte na capitalização. Claro, o preço do barril foi completamente arbitrário e decidido pelo governo à revelia dos acionistas minoritários. Mas este é um problema que exploraremos no Episódio 5, dedicado à Petrobras.
A coisa não parou por aí. O governo não só não precisou desembolsar dinheiro para manter a sua participação na empresa, como produziu receita adicional que reforçou o superávit primário! Para entender a mágica, preste atenção ao esquema abaixo.
Passo 1: os troux… aos otár… os acionistas minoritários capitalizam a empresa com dinheiro vivo (R$ 42 bilhões) e recebem ações em troca.
Passo 2: aqui ocorre a mágica. O Tesouro deveria entrar com um grande montante de dinheiro (cerca de R$ 75 bilhões) para manter a sua participação no capital da Petrobrás, montante obviamente não disponível no seu caixa. Mas isto não era problema para o mago da contabilidade criativa, Arno Augustin. O Tesouro fez basicamente duas manobras para não só manter sua participação na empresa, como também aumentar o superávit primário daquele ano! Acompanhe:
2a) O Tesouro “vende” para a Petrobrás 5 bilhões de barris a serem explorados no pré-sal ao custo de R$ 75 bilhões. Claro que este valor foi arbitrário e não fruto de um certame competitivo. Como saber se este valor foi o justo? Essa foi uma das principais críticas ao processo todo, pois o governo, como parte interessada e acionista majoritário, estabeleceu discricionariamente um preço que definiu a sua participação na capitalização da empresa. A Petrobrás pagou o Tesouro com ações no valor de R$ 43 bilhões e mais R$ 32 bilhões em dinheiro. Este montante entrou no caixa do Tesouro, aumentando o superávit primário daquele ano. Arno Augustin rebateu as críticas do mercado, dizendo que o governo FHC havia feito a mesma coisa com as concessões de telefonia:
O secretário do Tesouro “esqueceu-se” de um pequeno detalhe: os recursos da privatização da telefonia foram obtidos em um leilão aberto e competitivo, que atraiu investimento de verdade. No caso da capitalização da Petrobras, o dinheiro foi obtido pela venda antecipada de um petróleo cuja viabilidade ainda era uma incógnita por um preço arbitrado pelo próprio governo e pago por uma empresa do próprio governo. Na prática, o governo mudou o dinheiro de bolso, da Petrobras para o Tesouro.
2b) O montante de ações emitidas pela Petrobras no passo acima não era suficiente para manter a participação do governo na empresa. Então, vem a segunda parte da mágica: o Tesouro empresta dinheiro para o BNDES e para o Fundo Soberano no valor de R$ 35 bilhões. Estes empréstimos não afetam as medidas de endividamento líquido, somente a dívida bruta, pois ao mesmo tempo que o Tesouro concede o empréstimo, contabiliza um crédito junto a essas entidades. Este dinheiro servirá para que essas entidades entrem como acionistas na capitalização.
(Apenas um parêntese antes de continuarmos: não falaremos do Fundo Soberano aqui, uma excrecência inventada pelo governo do PT justamente para viabilizar este tipo de manobra. Fundos Soberanos existem em países com grandes superávits em conta corrente e que guardam esses superávits como uma poupança para o futuro. O Brasil tem grandes déficits em conta corrente, não tem o que guardar. A ideia era ter um instrumento para guardar a grande receita que viria com a exploração do pré-sal. Uma insanidade típica desses Anos da Húbris. Fecha parênteses).
Passo 3: BNDES e Fundo Soberano entram com R$ 35 bilhões, recebendo ações em troca. Completa-se a mágica.
No final do processo, sem aumentar em um real a sua dívida líquida e aumentando o superávit primário em R$ 32 bilhões, o Tesouro (em conjunto com BNDES e Fundo Soberano) aumentou sua participação de 40% para 48% do total do capital da Petrobras. Um truque de mestre!
Até aqui temos o time jogando com as regras debaixo do braço. A partir de um determinado momento, o jogo passou a ser em desacordo com as regras.
As chamadas “pedaladas fiscais” significam atrasar despesas devidas, utilizando a força do governo junto a órgãos do Estado. Os balanços dos bancos estatais e principalmente do BNDES foram utilizados para “esconder” despesas do governo. O mecanismo é relativamente simples: digamos que o governo esteja devendo R$ 100 para o BNDES. Se o governo não pagar o que está devendo, este dinheiro não aparece como despesa, inflando o superávit do governo naquele ano. Foi assim que os superávits foram produzidos, principalmente de 2013 em diante.
O primeiro sinal de que alguma coisa estava fora do lugar veio de uma despretensiosa notícia no Estadão, em 11 de julho de 2014, sobre uma misteriosa “conta paralela” em um banco privado, que permitiu um superávit primário R$ 4 bilhões maior do que aquele calculado pelo Banco Central.
Na mesma reportagem do Valor Econômico citada acima, um técnico do Tesouro afirma que este evento foi importantíssimo, pois mudou a dinâmica dos debates internos sobre as “pedaladas”, que ganharam maior urgência. Este sinal indicava que além dos bancos públicos, bancos privados também estavam sendo usados pelo Tesouro para atrasar pagamentos. Não à toa, a mesma reportagem no Estadão diz que as despesas do INSS vinham apresentando “dinâmica incomum”. E, como sabemos, as aposentadorias são pagas, em grande parte, pelos bancos privados.
Foi-se descobrindo, aos poucos, outras “contas negativas” no sistema financeiro, que estavam servindo para encobrir o rombo das contas públicas. Por exemplo, em dezembro de 2013, o BC pediu explicações para a Caixa Econômica Federal sobre um saldo negativo de R$ 3,1 bilhões em suas contas de pagamento do Bolsa Família.
A coisa toda foi completamente desmascarada em investigação do TCU. Vale aqui reproduzir um trecho da ata da assembleia do TCU que apreciou o recurso apresentado pela União, em dezembro de 2015, à condenação das pedaladas pelo tribunal (grifos meus):
“Ainda que a utilização de recursos próprios da CEF para o pagamento de despesas de responsabilidade da União esteja prevista em cláusula de contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes […], isso não significa que o adiantamento não possua a natureza de operação de crédito. Por óbvio, não é possível considerar dívidas bilionárias e prolongadas no tempo como mero fluxo de caixa, ainda mais quando se sabe que a insuficiência dos repasses não decorreu de imprecisão de cálculo do valor dos benefícios que seriam pagos, mas de ação deliberada e consciente de se valer de recursos próprios da instituição financeira, seja por insuficiência de caixa do Tesouro, seja para maquiar o resultado primário do governo, seja porque o governo preferiu destinar aqueles recursos que deveriam ser repassados para as instituições financeiras para dar suporte a despesas outras que deveriam ter sido contingenciadas, mas não o foram, com a finalidade de obter dividendos eleitorais de forma ilícita.”
Portanto, segundo o TCU, houve operação de crédito entre um banco público e seu controlador, o que é expressamente vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta foi a motivação técnica para o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, e está longe de ser uma “filigrana contábil”. Foram bilhões de reais “emprestados” pela Caixa, BB e BNDES para o Tesouro ao longo de, pelo menos, três anos.
Quando uma família vive acima de suas possibilidades, exibe para o público externo uma imagem que não corresponde à realidade. Sua casa, seus carros, suas roupas, suas viagens sinalizam uma riqueza que não existe. Pode demorar, mas a realidade acaba batendo à porta, e aquela mentira é desmascarada pelos fatos. Assim foi o Brasil governado pelo PT: uma grande mentira, na base do crédito e de manobras contábeis, que acabou sendo desmascarada pela maior recessão da história brasileira.
Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:
Acho graça quando bolsonaristas repercutem a narrativa de que o governo fez um “ajuste fiscal”, citando, para isso, o superávit primário de 2021 e a queda da relação dívida/PIB. Faz-me lembrar dos petistas que comemoravam o “espetáculo do crescimento” de Lula. Naquele tempo, os economistas amargurados insistiam que o crescimento na base de anabolizantes cobraria o seu preço em algum momento no futuro. A recessão de Dilma confirmou os prognósticos mais sombrios. Agora, esses mesmos economistas insistem que esse “ajuste fiscal” feito com base na surpresa inflacionária pode terminar muito mal.
Vamos entender o conceito. O grau de saúde fiscal de um país é medido pela trajetória da relação dívida/PIB. Se há uma estabilidade ou tendência de queda, os financiadores da dívida tendem a ficar calmos. Por outro lado, se a tendência é de aumento sem fim, os financiadores tendem a ficar nervosos, e pedem taxas de juros cada vez maiores para rolar a dívida. Pois bem: para que essa relação caia, é necessário que o PIB cresça acima da dívida, em termos nominais. O crescimento do PIB nominal, por sua vez, tem dois componentes: o seu crescimento real mais a inflação. Já o crescimento da dívida depende do tamanho das taxas de juros e de novas dívidas.
O que aconteceu em 2021? O PIB nominal cresceu cerca de 15%, sendo 4,5% real mais 10,5% da inflação. E o que aconteceu com a dívida? Como as taxas de juros perderam a corrida para a inflação (quem tem aplicação no Tesouro Direto sabe do que estou falando), a dívida cresceu menos do que o PIB. Além disso, as receitas do governo foram turbinadas pela inflação, ao passo que uma parte das despesas ficou congelada. Não é à toa que o funcionalismo público está indo para a greve. Então, tivemos aumento do PIB nominal maior que da dívida, e aumento da receita maior que da despesa. Tudo graças à inflação, ao rendimento pífio das aplicações financeiras e ao congelamento do salário do funcionalismo.
Aqui entra a manchete da reportagem do Valor.
A surpresa inflacionária de março pode estar indicando que teremos, mais uma vez, um efeito inflacionário sobre a dívida pública, diminuindo a relação dívida/PIB em 2022 a exemplo do que ocorreu em 2021. Note, e isso é de grande importância, que não estamos falando de inflação, mas de “surpresa inflacionária”. Para que a mágica funcione, é preciso que a inflação pegue de surpresa os agentes econômicos, não dando tempo de repassar para os juros a surpresa na inflação. Se não há surpresa, a dívida cresce tanto quanto o PIB, e não há efeito sobre a relação dívida/PIB.
Em um país com instituições monetárias funcionando, o BC reage ao aumento da inflação aumentando os juros mais do que proporcionalmente. Então, no 2o tempo do jogo temos a dívida crescendo mais do que o PIB, seja porque o seu custo aumenta, seja porque a atividade econômica se desacelera, diminuindo o crescimento da arrecadação. Sem contar as reposições salariais da inflação passada. Ou alguém acha que é possível manter os salários dos servidores públicos congelados para sempre?
Assim, para manter a bicicleta em pé, é necessário sempre produzir novas surpresas inflacionárias. Esta era a dinâmica da época da hiperinflação, em que a inflação andava ”aos saltos”, sempre mantendo os agentes econômicos desfasados em relação ao grande vencedor no processo, a dívida do governo. Esta também era a dinâmica do processo de “crescimento” dos governos do PT, que necessitava de cada vez mais estímulos para manter a bicicleta em pé, até que o dinheiro acabou.
Comemorar a “redução da dívida” feita com base em surpresa inflacionária é o mesmo que comemorar gol claramente ilegal. A diferença é que, no futebol, o próximo jogo começa no 0 x 0 e não existe a obrigação de “compensar” o gol roubado. Já na economia, as distorções se acumulam de um jogo para o seguinte e, mais cedo ou mais tarde, precisarão ser compensadas. Pelo bem ou pelo mal.
Estou lendo A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco, que conta a história monetária do Brasil desde a década de 30 com base nas várias legislações que regeram a moeda brasileira. No capítulo sobre o plano Real, Franco relembra a primeira iniciativa de FHC como ministro da Fazenda, a edição do PAI, Programa de Ação Imediata. Copio a seguir a exposição de motivos do PAI, que fazem a fundação do Plano Real:
– O Brasil só consolidará sua democracia e reafirmará sua unidade como nação soberana se superar as carências agudas e os desequilíbrios sociais que infernizam o dia a dia da população.
– A dívida social só será resgatada se houver ao mesmo tempo a retomada do crescimento autossustentado da economia.
– A economia brasileira só voltará a crescer de forma duradoura se o país derrotar a superinflação que paralisa os investimentos e desorganiza a atividade produtiva.
– A superinflação só será definitivamente afastada do horizonte quando o governo acertar a desordem das suas contas, tanto na esfera da União como dos estados e municípios.
– E as contas públicas só serão acertadas se as forças políticas decidirem caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses menores.
Note a construção do edifício da estabilização. Ele começa com o teto e vai descendo até as fundações. O objetivo final é retomar o crescimento econômico, que permita resgatar a dívida social e reafirmar o Brasil como nação soberana. Para tanto, é preciso combater a inflação e, para isso, é preciso arrumar as contas públicas. Essa é a ordem: contas públicas arrumadas, inflação baixa, crescimento, resgate da dívida social, soberania.
O Plano Real trocou a inflação por juros altos. Comentei hoje mais cedo que o novo guru de Lula, Gabriel Galípolo, está muito preocupado com os juros altos. Este é o problema do diagnóstico desenvolvimentista, tentar começar a construir o edifício pelo teto. A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte forma: o governo faz dívida para investir no resgate da dívida social, este resgate gera crescimento, este crescimento faz com que a dívida pública diminua, jogando os juros para baixo, o que, por sua vez, retroalimenta o crescimento, em um círculo virtuoso. O problema dessa construção é iniciar com o aumento da dívida, o que pressiona os juros para cima. Por isso, Galípolo se diz preocupado com a escalada dos juros, o que sugere alguma medida heterodoxa inicial para segurar os juros enquanto a mágica do crescimento não funciona. Já vimos esse filme antes.
Não à toa, Galípolo propõe a moeda única sul-americana como ideia para robustecer a nossa “soberania monetária”. Ou seja, uma construção que começa com o teto (a soberania), sem nenhuma menção à fundação (a organização das contas públicas). Típico.
O nosso edifício foi construído pela metade. Estamos longe de uma hiperinflação, mas estamos igualmente longe de termos inflação e juros civilizados. Nos demos por satisfeitos tendo uma fundação meia-boca, o que nos leva a ter um edifício fraco: nosso crescimento é medíocre, nosso resgate da dívida social é exasperantemente lento e a nossa moeda é respeitada somente dentro de nossas fronteiras, e olhe lá. Precisamos de um novo Plano Real, que enfrente o desajuste das contas públicas de frente. Sobre este fundamento, o restante do edifício poderá ser construído com segurança. Sem isso, continuaremos em busca de soluções mágicas, que prometem o céu e entregam o inferno.
Gosto do Felipe Salto. Acho que é um dos quadros mais bem preparados do país na área econômica, e pode vir a ocupar qualquer cargo nessa área no futuro. Mas, às vezes, acho que lhe falta a experiência de sentar-se em uma mesa de operações de uma tesouraria de banco ou de um fundo de investimento para entender a cabeça do credor da dívida pública. Tenho certeza que, em tendo essa experiência, ele pensaria duas vez antes de publicar a sua proposta de controle da dívida no Estadão de hoje.
O artigo começa com uma tese correta, mas inócua: a de que a Constituição de 1988 já traz os mecanismos de controle de dívida, não é preciso inventar mais nada.
Está correto. Mas no Brasil, sabemos que há dois tipos de lei: as que pegam e as que não pegam. No caso, a lei sobre limite de dívida foi dessas que não pegaram. E, neste caso, nem é por culpa do famoso “jeitinho brasileiro”. A exemplo do limite para a taxa de juros de 12%, também inscrito na Constituição Cidadã, o limite para a dívida pública é inexequível sem a quebra de algum contrato ou a intervenção no mercado de dívida. Limitar a dívida, por si só, poderia levar ao calote, pois os juros a aumentam.
Nos EUA há um limite de dívida. De vez em quando, vemos a ameaça de um shutdown nos serviços públicos porque a dívida está se aproximando do teto, até que o Senado aprova um “waiver” para a dívida subir até um novo patamar. Por que eles podem fazer isso lá e nós não podemos fazer isso aqui? Parece injusto. Só porque eles têm quase 250 anos de estabilidade democrática, sem nunca ter dado calote na sua dívida e poderem imprimir a moeda de reserva global, os credores não exigem deles a mesma disciplina que exigem do Brasil?
Voltemos ao nosso caso. Para que o limite da dívida não levasse a uma situação de calote ou a seguidos “waivers” que desmoralizariam a regra, Salto repete a proposta de um outro artigo seu: o limite da dívida levaria ao cálculo de um teto para os gastos. Voltaríamos, então, à situação atual, em que o teto da dívida substitui o teto de gastos como fator de tensão entre necessidade de gastos e disciplina fiscal. É neste ponto que Salto propõe uma inovação: as ”bandas” para o teto da dívida. O problema é que essa é uma “solução” que só empurra o problema com a barriga e, portanto, não é capaz de ancorar as expectativas do mercado. Vejamos.
Salto usa como exemplo as bandas de inflação que guiam a atuação do BC. Se a projeção da inflação futura está acima da meta, o BC eleva a taxa de juros, se está abaixo, diminui. Este sistema, chamado de “metas de inflação”, e introduzido no Brasil em 1999, tem sólida comprovação acadêmica e é usado com sucesso por inúmeros países. A sua premissa básica é que a inflação é fruto, em grande medida, das expectativas dos agentes econômicos. Se o BC, o guardião da moeda, tem credibilidade, os agentes econômicos sabem que, mais cedo ou mais tarde, a inflação vai cair, porque o BC vai agir para tanto. Não por outro motivo, a inflação projetada pelo relatório FOCUS, que reúne o palpite de bancos, fundos de investimento e consultorias, está por volta de 3% para 2024 em diante. E são esses agentes que formam os preços dos títulos públicos. Assim, o sistema de metas para a inflação, com o seu mecanismo de bandas, funciona com sucesso para ancorar as expectativas com relação à inflação futura e as taxas de juros de prazos mais longos.
Já para um sistema de “bandas de endividamento”, a questão é saber se é suficiente para ancorar as expectativas dos agentes econômicos com relação à trajetória da dívida. Não conheço literatura a respeito, mas desconfio que lhe falte ao menos um elemento para que funcione: a credibilidade. O BC, como emissor da moeda, conquistou sua credibilidade ao longo das últimas décadas e, recentemente, mais um pilar foi assentado, com a aprovação da sua independência formal. À União, como emissora da dívida, lhe falta essa credibilidade, que é a verdadeira âncora das expectativas.
A União leva uma vantagem sobre o BC: ao contrário da autoridade monetária, que tem apenas um instrumento indireto para lidar com a inflação, a taxa de juros, a União tem o poder de afetar diretamente o tamanho da dívida, através do controle dos gastos. Por isso, o teto de gastos é o sistema mais crível para controlar a dívida, dado que é matemático: se o governo controlar seus gastos, a dívida estará automaticamente sob controle. Ocorre que o teto se mostrou inviável politicamente. Então, se inventam maneiras de calcular o teto que pareçam “suficientemente flexíveis” para os políticos e “suficientemente inflexíveis” para os credores da dívida. Um pouco como aquelas dietas “sem sacrifício”, em que a pessoa continua tendo o prazer de comer mas o corpo entende que o número de calorias milagrosamente caiu.
É neste ponto que me parece faltar um pouco de experiência de “mesa de operações” para Felipe Salto. Um sistema como o proposto, cheio de “buracos” por onde podem passar as despesas necessárias para atender às necessidades do povo brasileiro, não tem a mínima chance de ancorar as expectativas dos agentes econômicos. Se esta é a solução política possível, a verdade é que teremos taxas de juros que correspondem a essa solução política possível. Isso, no cenário benigno, em que o BC continua no controle da situação. No maligno, teremos um descontrole inflacionário.
O economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia e um dos mais famosos defensores de teorias desenvolvimentistas no mundo, escreve artigo publicado no Valor Econômico de 14/03, comemorando o novo acordo entre a Argentina e o FMI. O economista elogia a nova postura do FMI, que estaria privilegiando o crescimento econômico ao invés da costumeira austeridade para resolver o problema da dívida argentina. Segundo o artigo de Stiglitz, a austeridade se mostrou um veneno que somente piorou a vida do paciente. Agora, a nova abordagem tem muito mais chance de sucesso por não ignorar o componente político, pois atende às necessidades dos argentinos mais pobres.
Vamos começar pelo começo. Tanto economistas do mainstream quanto os desenvolvimentistas vão concordar que não é possível viver eternamente em déficit, a não ser que se encontre um financiador benévolo que cubra as necessidades de caixa sem contrapartidas. Ou, o que é mais comum, que se imprima dinheiro (orçamento monetário) para cobrir o déficit, gerando inflação. O que difere ortodoxos de heterodoxos é como resolver o problema do déficit eterno. Os ortodoxos defendem a redução de gastos. Já os desenvolvimentistas acreditam que o déficit deve ser coberto com as receitas geradas pelo crescimento econômico. E, para fomentar o crescimento econômico, é preciso gastar mais, não menos. Vamos explorar um pouco essa ideia.
Imagine que um país tenha um déficit primário (antes do pagamento dos juros) de 3% do PIB. Este déficit, por construção, não está sendo utilizado para fomentar o crescimento econômico pois, se estivesse, em tese, estaria gerando os recursos para o fechamento desse mesmo déficit. Como o déficit se repete ano após ano, claramente não está funcionando como indutor do crescimento. Se estivesse, repito, o déficit estaria fechando. Então, das duas uma: ou este déficit de 3% deveria ser usado para fomentar o crescimento econômico, ou o déficit deveria ser aumentado para fomentar o crescimento econômico. Manter o déficit em 3% significa retirar recursos de algum lugar para direcionar ao fomento do crescimento. Mas isso significa encontrar gastos estatais que podem ser cortados, o que normalmente esbarra na preservação de “direitos adquiridos” ou em cortes de programas sociais. Como isso geralmente é politicamente inviável, resta aumentar o déficit. Digamos, então, que o déficit seja aumentado de 3% para 4%, e esse 1% adicional seja usado em programas estatais de fomento ao crescimento. Estes programas teriam um “efeito multiplicador”, que gerariam para a sociedade mais do que os 1% investidos. No caso, teriam que gerar 4 vezes mais, para pagar o 1% de déficit adicional mais os 3% de déficit originais. Haja multiplicação dos pães! Poderíamos aumentar ainda mais o déficit, o que diminuiria o efeito multiplicador necessário para que o plano desse certo. Mas aí esbarraríamos em outra questão: a eficiência do investimento estatal.
Para que o esquema todo funcionasse, seria necessário que o governo investisse o déficit em empreendimentos com um retorno excepcional. Sabemos, no entanto, que a eficiência dos investimentos feitos por governos é prejudicada por escolhas políticas que se sobrepõem às escolhas técnicas, falta de agilidade em função das amarras típicas do uso do dinheiro público e corrupção. Portanto, e é essa experiência que temos de programas como o PAC, FIES, fomento da indústria naval e de sondas petrolíferas, campeões nacionais e uma longa lista de etceteras, o que normalmente temos é um multiplicador negativo. Em outras palavras, investimentos governamentais normalmente queimam dinheiro ao invés de multiplicarem dinheiro. Uma boa parte da recessão que nos assolou no biênio 2015/16 teve como origem os investimentos desenvolvimentistas dos anos anteriores, que cobraram o seu preço. Claro, os desenvolvimentistas dirão que o culpado pela recessão foram os esforços ortodoxos feitos em 2015, eliminando gastos que cortaram o oxigênio do crescimento econômico. Mas nem Dilma Rousseff, a rainha dos desenvolvimentistas, aguentou a cobrança dos credores que batiam à porta exigindo taxas de juros maiores se algo não fosse feito. Os credores não costumam entender a lógica do multiplicador. Sigamos.
Existe um pequeno elemento que normalmente é esquecido nas propostas dos desenvolvimentistas: a inflação. Stiglitz cita a inflação “en passant”, concedendo que “pode ser um problema para o funcionamento de uma economia de mercado”.
“Pode ser um problema”, vejam só.
A inflação, como sabemos, é o imposto mais perverso que existe, pois corrói a renda das pessoas na proporção inversa de sua riqueza. Não se trata somente do bom funcionamento dos mercados, que também é o caso. Trata-se de uma questão de justiça social, defendida com tanto denodo pelos desenvolvimentistas. Déficits são inflacionários, investimentos governamentais malfeitos são inflacionários. Não é à toa que a inflação seja invariavelmente o preço cobrado pelas políticas desenvolvimentistas. Mas este é somente um detalhe, tratado “en passant” nesse tipo de proposta. A Argentina tem a quarta maior inflação do mundo, cerca de 50% ao ano, perdendo somente para Venezuela (outra campeã de políticas desenvolvimentistas), Zimbabwe e Sudão.
Voltemos ao novo acordo com o FMI. Este acordo é resultado de uma renegociação do acordo fechado pelo ex-presidente Maurício Macri em 2018, que por sua vez foi fechado para cobrir os empréstimos tomados no exterior para fazer frente ao duplo déficit fiscal e de conta corrente do país, pois o governo Macri se recusou a usar os instrumentos heterodoxos (principalmente imprimir dinheiro) para fechar a conta. Como o programa de austeridade de Macri não funcionou (os desenvolvimentistas dirão que nunca funcionam, os ortodoxos dirão que foi muito pouco, muito tarde), Macri teve que recorrer ao FMI. E, agora, estamos em meio à renegociação dessa dívida. A Argentina pretende usar o dinheiro do novo acordo para pagar o serviço da dívida com o próprio FMI e cobrir o déficit fiscal. A novidade está nas condicionalidades, muito mais leves do que no acordo anterior. Por exemplo, no campo fiscal, existem metas de diminuição do déficit primário ao longo do tempo, mas garantindo um “crescimento real das despesas” de modo a permitir o investimento em infraestrutura e ciência e tecnologia (vide carta de intenções, item 12). São várias outras “condicionalidades” que condicionam pouco. E, como cereja do bolo, a inflação está sendo controlada pela assinatura de um acordo com mais de 150 empresas para garantir aumento de preços no máximo de 2% ao mês em produtos básicos (item 21 do mesmo documento). O FMI definitivamente não é mais o mesmo.
No dizer de Alejandro Werner, ex-diretor do FMI para o hemisfério ocidental, em artigo na Americas Quaterly crítico ao acordo, o problema da Argentina é a “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de um acordo de como financiá-lo”. Se isso não for resolvido, todo o resto é paliativo, e não há crescimento econômico que resolva. A questão é saber quanto tempo o FMI vai levar para descobrir que continua em uma barca furada. Stiglitz, em seu artigo, recomenda que o FMI tenha paciência com a Argentina e não desista ao primeiro sinal de “descarrilamento”, ou seja, de não cumprimento das metas de déficit. Afinal, segundo o prêmio Nobel, esse não cumprimento só pode ser devido a choques externos e não a dificuldades políticas domésticas, e o país não pode ser abandonado simplesmente por não ter cumprido metas que estão acima de sua capacidade. Este, afinal, é o sonho de todo desenvolvimentista: encontrar um financiador eterno, que não exige metas para continuar emprestando dinheiro ad aeternum. Ou até o efeito multiplicador funcionar.