Burguesia proletária

Entrevista com Helô Rocha, a estilista que vestiu a primeira-dama em seu casamento e na cerimônia de posse. Depois de ficarmos sabendo que a estilista conheceu Janja através da amizade comum com Bela Gil, em cujo restaurante acertaram os detalhes do vestido para o casamento, Helô nos brinda com sua, digamos, visão sobre a indústria da moda.

Segundo a estilista da primeira-dama, roupa tem que ser cara. Roupa muito barata significa que alguém não está sendo remunerado ”adequadamente” na cadeia de produção. Por isso, para que todos sejam remunerados “adequadamente” e, mesmo assim, a roupa seja acessível, seria necessário que o governo ”apoiasse” a indústria.

É difícil saber até por onde começar. Talvez, para ser técnico, pela inconsistência econômica da proposta. A estilista sugere que o imposto pago pelos pobres seja usado para subsidiar as empresas de moda, para que essas empresas supostamente vendam roupas mais baratas para esses mesmos pobres, na heróica hipótese de que o lucro adicional proporcionado pelos subsídios fosse repassado aos preços. Isso é o que eu chamo de economia circular!

Não ocorre à estilista que nem todos os brasileiros tenham, digamos, o acesso a recursos financeiros que a primeira-dama tem. Portanto, são obrigados a espremer as roupas de que necessitam dentro de um orçamento já atulhado de outras necessidades igualmente relevantes. As roupas baratas, normalmente feitas na China por operários mal pagos, são uma benção para esses brasileiros. E, acredite, são também uma benção para esses chineses, pois a alternativa seria viver no campo em condições ainda piores. O termo “salário adequado” é muito relativo.

Mas essas questões técnicas são as menos interessantes. O que mais me chamou a atenção nessa breve entrevista é o seu aspecto, digamos, sociológico. Trata-se de um exemplo acabado de “burguesia proletária”.

Antes de continuar, quero recordar uma matéria sobre a esposa de João Doria, publicada, se não me falha a memória, na Folha de São Paulo, logo após a eleição do marido para a prefeitura de São Paulo. Bia Doria é caracterizada, então, como uma dondoca desmiolada, cheia de vontades e frivolidades. Uma autêntica representante da burguesia brasileira.

Janja não. A primeira-dama é caracterizada, logo de saída, como uma mulher forte, que sabe o que quer. O fato de ter acesso a um vestido que não saiu por menos de algumas dezenas de milhares de reais (e Deus sabe de onde saiu esse dinheiro) não a caracteriza como burguesa. Ela é uma “mulher do povo”, que se casou com um “homem do povo”. O vestido desenhado pela Helô é uma concessão que se faz à vanguarda do proletariado, assim como as dachas da nomenklatura soviética. É o que eu chamo de “burguesia proletária”.

E não adianta apontar a contradição. Na verdade, todos as brasileiras deveriam poder contar com um vestido de noiva decente. Para isso, é preciso “apoiar” a indústria da moda com muitos subsídios. Afinal, foi para isso, além de tornar a picanha mais acessível, que seu marido foi eleito. Enquanto isso, não há nada demais em que a primeira-dama tenha o seu dia de princesa.

Falta a fase 2 do plano

Já disse aqui que tenho um amigo que se converteu ao bom mocismo esquerdista. Sendo classe média alta, tem insistido no fato de que a distribuição de renda no país é muito injusta, que deveríamos taxar fortunas, que o capitalismo não funcionou para distribuir riqueza e outras coisas do tipo. O último samba de uma nota só é o programa de renda mínima do Suplicy. Segundo meu amigo, é a solução para o problema da distribuição de riqueza no país.

Sempre que converso com esse meu amigo, não consigo deixar de lembrar de um episódio do South Park, em que os garotos entram em uma caverna de duendes em busca de orientação sobre como as empresas funcionam.

Os duendes, por sua vez, estão colocando em prática um plano infalível para fazer lucro:

Fase 1: Acumular cuecas

Fase 2: ?

Fase 3: Fazer lucro

Os garotos não entendem bem como acumular cuecas gera lucros, mas os duendes estão convencidos de que vão lucrar muito com o negócio, mesmo não tendo ideia de qual é a fase 2 do plano.

Esquerdistas-raíz, também conhecidos como comunistas, têm um plano bem definido, em que sabem bem qual é a fase 2:

Fase 1: Instalar uma ditadura

Fase 2: Expropriar os meios de produção e produzir tudo de acordo com “as necessidades do povo”.

Fase 3: Povo feliz, cada um produzindo conforme sua capacidade e consumindo conforme sua necessidade.

Bem, vimos onde foi parar a antiga União Soviética, e onde estão hoje Cuba, Venezuela e Coreia do Norte. Os comunistas descobriram, da pior maneira possível, que a fase 2 não leva até a fase 3.

Mas existem os esquerdistas-bom moços. Não são trogloditas como os comunistas, não pensam em instaurar uma ditadura e nem expropriar meios de produção. Seu plano é bem mais fofo:

Fase 1: Implementar um programa de renda mínima (aqui pode ser qualquer programa social)

Fase 2: ?

Fase 3: Todos se tornam mais ricos e felizes

A fase 1 não parece tão ridícula quanto “acumular cuecas”, mas o efeito prático é o mesmo. A ideia é de que existe um caminho mágico entre o programa social e a riqueza das pessoas, como se o dinheiro necessário brotasse das cuecas dos duendes.

Este tipo de pensamento mágico é o que faz com que a esquerda esteja sempre pensando em “um outro mundo possível”, enquanto nunca passamos da Fase 1 no mundo concreto onde vivemos. Isso acontece porque a Fase 2 é muito complexa: envolve produzir mais com menos recursos, melhorar a qualidade do capital humano, atrair investimentos produtivos, diminuir a burocracia que impede o empreendedorismo e uma longa lista de medidas que poderiam fazer o dinheiro brotar para financiar o plano.

Tudo isso, no entanto, é um tanto “neoliberal” e, portanto, não conta com a simpatia do bom-mocismo esquerdista. Melhor é gastar energia na Fase 1, juntando cuecas.

A bolha nossa de cada dia

A colunista do Estadão canta em prosa e verso as vantagens de uma escola da periferia. De Nova York e por apenas um ano, que fique claro.

Quando se tratou da coisa pra valer, o ensino de seu filho aqui no Brasil durante vários anos, às favas a “diversidade” e a “experiência fora da bolha”. O filho da jornalista foi matriculado em uma boa escola classe média alta.

Não consigo pensar em exemplo mais acabado de esquerda caviar, aquela que canta as vantagens de um “outro mundo possível” enquanto não abre mão de todas as vantagens que o capitalismo mais selvagem lhe oferece.

A jornalista chega a criticar os pais nova-iorquinos que se mudam para tentar matricular seus filhos em escolas mais “brancas”, abrindo mão das supostas vantagens da diversidade sociocultural. Diversidade esta que certamente não existe na escola particular de seu filho no Brasil.

Não consigo deixar de comparar essa situação com as excursões organizadas por agências de turismo nas favelas do Rio. Os turistas visitam as favelas como se estivessem visitando um zoológico, para ver de perto aqueles bichos, como vivem, do que se alimentam. Os turistas têm, assim, uma experiência do que seja a “pobreza”.

A experiência do filho da jornalista foi como uma visita ao zoológico. Depois de ter a experiência de conviver com os bichos durante um ano, a vida real é uma boa escola particular branca. Dá asco.