A fome no “celeiro do mundo”

Editorial do Estadão repercute levantamento feito pelo Ipea, que mostrou um avanço da ”insegurança alimentar” no Brasil entre os anos de 2013 e 2018. O editorialista aponta a contradição entre o Brasil ser o “celeiro do mundo” e, mesmo assim, não conseguir alimentar o seu próprio povo.

Bem, não há contradição alguma. O epíteto “celeiro do mundo” vem do fato de sermos grandes produtores e exportadores de commodities, tais como soja, milho e café. Mas até que esses alimentos cheguem à mesa de alguém, é necessário um longo processo industrial e logístico. E, para pagar por isso, é preciso que a população tenha renda suficiente. Caso contrário, os alimentos aqui produzidos não chegarão magicamente à mesa da população. Por outro lado, o comércio global está justamente aí para que países que não plantam possam alimentar a sua população. Portanto, produzir alimentos não é condição necessária e nem suficiente para que a população de um país tenha o que comer.

Mas este não é o principal ponto do editorial. O editorialista aponta a “precarização das políticas sociais” como principal causa para o quadro. É no mínimo curioso apontar o desmonte de políticas sociais em um período em que o número de pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família só fez crescer. O editorial cita alguns programas específicos para endereçar o problema alimentar, e que teriam sido “desmontados” ao longo desse tempo. Não tenho acesso a esses dados, mas parece pouco crível que a insegurança alimentar de largas fatias da população tenha como causa o suposto fim de programas de distribuição de alimentos. A ser assim, o máximo que podemos aspirar como país é transformar o Brasil em um grande bandejão, em que filas de famélicos se servem da caridade do Estado. É essa a proposta?

Na verdade, estamos diante do que chamamos em econometria de “variável oculta”. Desde 2013, o número de pessoas em insegurança alimentar aumentou e, ao mesmo tempo, houve diminuição de recursos para políticas sociais. Há uma correlação entre essas duas variáveis, levando à ilusão de ótica de que há causalidade. No entanto, o que há é uma variável oculta que causa esses dois fenômenos: a estagnação da economia brasileira. Desde 2013, o fim do superciclo das commodities aliado à herança de erros de condução de política econômica e a uma máquina estatal que cresce organicamente sem limites, levaram ao quadro atual: crescimento econômico medíocre. Tempere essa receita com uma miríade de políticas concentradoras de renda, em que os famélicos subsidiam aqueles que podem ter três refeições por dia, e temos o prato pronto da “insegurança alimentar”.

Para fazer política social, é preciso que sobre dinheiro. E, para sobrar dinheiro, é necessário que a economia cresça e que o orçamento público não seja sequestrado por grupos de interesse. Aliás, quando essas duas coisas acontecerem, como que por milagre, as políticas sociais serão dispensáveis.

Viva o SUS!

O Estadão traz a história de um urbanista que viveu com dois corações durante um período. Trata-se de uma nova técnica de transplante, desenvolvida no Incor, que evita o uso de coração mecânico, procedimento caríssimo não coberto pelos planos de saúde.

A história é boa, mostra o avanço da medicina local. Mas, claro, não deixaram passar a oportunidade de fazer proselitismo pró SUS. Tanto o paciente, que “viu a finitude da vida e a importância do SUS”, quanto o repórter, que fez questão de repercutir a “visão”.

Nada é por acaso. Por trás dessa declaração inocente, está uma crítica velada a esses “neoliberais insensíveis que querem privatizar a saúde do brasileiro”. Afinal, “saúde não é mercadoria”, como bem nos lembrou, outro dia, uma ministra do STF.O curioso nessa história é que estamos falando de um urbanista, profissional de classe média, que certamente tem o seu plano de saúde privado. Foi parar no Incor provavelmente porque seu plano não cobria o procedimento necessário, e o Estado, financiado por todos nós, pagou pela sua cura. Se eu estivesse no lugar dele, também estaria tecendo loas ao SUS. Afinal, salvou a sua vida.

Tem só um pequeno problema: o SUS não foi feito para salvar a vida dos 1% mais ricos da população. O SUS foi feito para prestar atendimento de saúde para os 99% da população que não têm acesso aos hospitais particulares. Que o sistema privado é melhor que o público, não há dúvida. Se assim não fosse, não existiria a indústria de planos de saúde ou esses consultórios de baixo custo que pululam pelo país. A primeira coisa que um indivíduo faz quando começa a ganhar algum dinheiro é contratar um plano de saúde e colocar o filho na escola particular. Saúde e educação públicas são o fetiche da intelectualidade, mas cada um se defende quando se trata de resolver a própria vida.

Ficou famoso o slogan “viva o SUS” logo após tomar a vacina. Claro, uma campanha nacional de vacinação não seria possível sem a coordenação do Estado. O que não significa que os postos de aplicação precisassem ser, necessariamente, públicos. Haveria formas de parceria com a iniciativa privada. Mas, mesmo considerando a utilidade do SUS para a campanha de vacinação, vamos combinar que montar todo um sistema de saúde só para campanhas de vacinação não parece justificar-se economicamente.

O ponto é que nem a troca de um coração nem uma campanha nacional de vacinação escondem a precariedade do nosso sistema universal de saúde. Basta perguntar para as pessoas que esperam meses na fila por uma consulta ou que adentram nos hospitais públicos por esse país afora (o Incor não está no padrão SUS).

Defender o SUS tem como objetivo se contrapor a uma visão mercantilista da saúde. A saúde é um bem universal, que deve ser atendido por um sistema universal. Desde, claro, que eu tenha acesso a hospitais particulares. Sabe como é, o SUS é ótimo, desde que seja para os outros.

Vida digna

“Precisamos garantir vida digna para os brasileiros!”

Com pequenas variantes, este é, de modo geral, o discurso dos políticos brasileiros. E não somente dos políticos. Também é o discurso de todos os que, de uma forma ou de outra, acham que têm a solucionática para toda a problemática brasileira, como dizia o inesquecível Odorico Paraguaçu.

Mas, o que é uma “vida digna”?

Arriscaria dizer que “vida digna” é aquela em que o ser humano tem acesso a todos os bens essenciais à sua sobrevivência. O diabo nessa definição está em definir o que é “essencial”. O que é essencial para mim pode não ser para você, e vice-versa. Além disso, o ser humano tem a incrível capacidade de se acostumar com o seu padrão de vida, de modo que várias coisas se tornam “essenciais” ao longo do tempo. Quem já experimentou uma redução abrupta em sua renda sabe do que estou falando.

Assim, a definição de “vida digna” é algo fluido, que depende da definição do que é “essencial”. No entanto, não por isso vamos deixar de abordar o tema. A propósito, lembro de um caso que ficou famoso na Suprema Corte dos EUA.

Em 1964, o dono de um cinema apelou à Suprema Corte contra uma condenação por exibição de material obsceno. A apelação se baseava na ideia de que é impossível definir a linha que separa o obsceno da nudez artística. O juiz Potter Stewart, embasando seu voto a favor da apelação, saiu-se com a frase que até hoje é considerada o resumo daquilo que não conseguimos definir, mas conhecemos muito bem: “Eu reconheço quando eu vejo” (I know it when I see it), referindo-se a material pornográfico.

Vida digna é difícil de definir. Mas vida indigna é facilmente reconhecível quando se vê.

Em busca de uma definição do que seria essa tal “vida digna”, bati à porta do Dieese, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Se tem alguém que entende de vida digna são os sindicatos, pensei. Eles não param de defender “vida digna” para os trabalhadores.

O Dieese calcula um “Salário-Mínimo Necessário”, com base, segundo a metodologia, na Constituição de 1988, que define o salário-mínimo como aquele “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas (do trabalhador) e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.

Ok, mas como definir os gastos mínimos em cada um desses itens, de modo a garantir a tal “vida digna” ao trabalhador? Como isso é muito difícil, para não dizer impossível de se fazer, o Dieese usa uma metodologia reversa: calcula o valor de uma cesta básica mínima de alimentos e supõe que esta cesta ocupe um percentual dos gastos totais da família. Vale a pena dar uma olhada nos detalhes.

Para calcular a cesta básica de alimentação, o Dieese usa o Decreto Lei no 399, de 30/04/1938. Sim, você não entendeu errado: o Dieese considera a cesta básica de alimentação definida por uma lei de 1938, a que estabeleceu o salário-mínimo no tempo do Estado Novo. Tem até banha, espertamente substituída por óleo. Mas ok, são detalhes. O que importa vem agora.

Para calcular o “Salário-Mínimo Necessário”, o Dieese considera que o gasto com essa Cesta Básica representa 35,71% do total de gastos do trabalhador. Esse percentual, assim, tão preciso, vem de uma Pesquisa de Orçamento Familiar feita pelo próprio Dieese em 1994. Ou seja, quase 30 anos atrás! Então, ficamos assim: a vida digna do Dieese é calculada com base em uma cesta de alimentos de 1938 e uma pesquisa de orçamento familiar de 1994.

O último valor divulgado desse “Salário-Mínimo Necessário” é de fevereiro/2021: R$ 5.375,05. Este seria o montante necessário para que uma família de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças, tivesse uma “vida digna”. Uma renda per capita de R$ 1.343,76. Abaixo disso, a vida no Brasil seria indigna.

De acordo com um trabalho do IBRE-FGV, com base nos microdados da Pnad contínua do IBGE, cerca de 70% dos brasileiros recebiam abaixo deste montante em 2019. Portanto, cerca de 70% dos brasileiros tinham uma vida indigna, segundo o Dieese. Será que é isso mesmo?

Sempre que pensamos em vida indigna, associamos com a vida nas comunidades (antigas favelas). No entanto, segundo levantamento do IBGE, apenas 8% dos domicílios brasileiros encontravam-se no que o IBGE classifica como Aglomerados Sub-Normais (favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas – segundo definição do IBGE). Mesmo que esses domicílios tenham em média o dobro dos moradores dos domicílios normais, estaríamos falando de 16% da população brasileira. Restariam, portanto, 54% da população que não mora em domicílios “sub-normais”, mas, mesmo assim, levaria uma “vida indigna”, segundo o Dieese.

Os moradores de domicílios “sub-normais” têm claramente uma vida não digna, segundo os padrões comumente aceitos. E o restante? O que caracterizaria a “não dignidade”?

Podemos elencar alguns pontos:

  • Pegar ônibus/trem lotado, duas horas para ir, duas horas para voltar do trabalho;
  • Esperar anos por uma vaga para fazer cirurgia no SUS;
  • Colocar os filhos em uma escola onde é certeza que sairão sem saber o mínimo necessário de português e matemática para enfrentar um mercado de trabalho extremamente competitivo;
  • Jogar o esgoto na rua ou diretamente no rio (segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 47% da população brasileira não tinha tratamento de esgoto em 2018; ou seja, muito mais do que os 16% que supostamente moram em domicílios “sub-normais”).

Note que todos esses pontos ou são “de graça”, ou são oferecidos pelo Estado ou seu preposto em troca de uma tarifa. Saúde e educação são “deveres do Estado e direitos do Cidadão”, dizem. E esgoto e ônibus/trem só tem quando o Estado constrói (ou deixa construir) a rede de coleta ou a rede de transporte.

Portanto, a tal “vida digna” não depende só da renda da pessoa. Depende de que o Estado forneça aquilo que prometeu fornecer. Afinal, o Estado brasileiro arrecada 33% do PIB em impostos, a grandessíssima parte, direta ou indiretamente, daqueles que não tem uma “vida digna”.

Os R$ 1.343,76 do Dieese devem ser gastos com saúde (convênio) e educação (escola particular) para garantir a “vida digna” do cidadão. Obviamente não é possível. Sem contar que nem que a pessoa fosse milionária conseguiria construir uma rede de coleta de esgoto em casa ou colocar um trilho de trem. Este papel do Estado é insubstituível.

Por outro lado…

Existem hoje, no Brasil, cerca de 228 milhões de linhas de telefone celular. Ou seja, mais do que uma para cada habitante. Ok, há pessoas com mais de uma linha. Mas, vamos combinar que grande parte dos brasileiros, mesmo aqueles que vivem em domicílios “sub-normais”, dispõe de um celular. Difícil defender que celular faça parte da cesta da dignidade humana.

Você entra em qualquer domicílio “sub-normal” e vai encontrar uma TV. Segundo dados de 2018, somente 2,8% dos domicílios brasileiros não contavam com pelo menos uma TV. Uma penetração muito maior do que a coleta de esgoto, por exemplo.

O que isto significa?

Significa que uma parte relevante da “vida digna” depende não do salário, mas de serviços prestados pelo Estado. Aqueles elementos da “vida digna” que dependem da iniciativa privada, bem ou mal, chegam para a maioria dos brasileiros, mesmo considerando a renda atual média do brasileiro.

Vejamos novamente a definição de salário-mínimo de acordo com a Constituição:

Art 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

….

IV –  salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educaçãosaúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Note que destaquei os itens “educação” e “saúde” como necessidades que devem ser bancadas pelo salário-mínimo. Há aqui uma contradição em termos: nos artigos 196 e 208 da mesma Constituição lê-se o seguinte:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 208.  O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

      I –  educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Portanto, se o Estado deve ser o garantidor último da educação e da saúde, não haveria por que os incluir como gastos a serem cobertos pelo salário-mínimo. Até parece que o legislador anteviu o fiasco do Estado como provedor de serviços sociais…

Poderíamos testar dois modelos alternativos, de modo a tentar aumentar a dignidade do brasileiro:

  1. Aumentar a carga tributária para custear melhores serviços sociais ou
  2. Diminuir a carga tributária, aumentando a renda disponível para a população, e deixar que a iniciativa privada forneça serviços sociais

A primeira alternativa conta com casos de sucesso e fracasso. Entre os casos de sucesso sempre mencionados estão os países escandinavos: com uma carga tributária próxima de 45% do PIB, esses países são modelos de bem-estar social. Difícil dizer que seus habitantes não levam uma “vida digna”.

Por outro lado, os países socialistas são, em geral, exemplo do fracasso da centralização estatal no fornecimento de serviços sociais. Os fãs de Cuba não concordarão, e dirão que sua população vive uma “vida digna”. Recomendo que assistam o documentário da Netflix, Cuba e o cameraman, do cinegrafista Jon Alpert, que se tornou amigo pessoal de Fidel Castro. Tudo está lá, de modo que cada um poderá tirar suas próprias conclusões.

O segundo modelo tem menos fãs no Brasil, porque, em geral, somos viciados em Estado. Um simples estudo de viabilidade de terceirização de algumas atividades de postos de saúde se transformou no escândalo da “privatização do SUS”, com direito a comentários furibundos de vários formadores de opinião. De qualquer modo, temos exemplos de países com menor carga tributária onde a população tem, em geral, vida mais “digna” que a do brasileiro. Estados Unidos é um exemplo, onde a carga tributária de 24% do PIB não impede a “vida digna” de seus cidadãos.

Note que há um ponto em comum entre os países escandinavos e os EUA, apesar da grande diferença de carga tributária: trata-se de países ricos. E ricos aqui, ao contrário da tal “vida digna”, é um conceito muito concreto: alta renda per/capita. Será, então, que o que determina a “vida digna” da população é a riqueza do país e não o quanto o Estado recolhe dos cidadãos para lhes dar uma “vida digna”? Vejamos.

Rodei duas regressões utilizando o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano como proxy da “vida digna” dos cidadãos. Este índice é formado por três componentes: 1) renda/capita (riqueza), 2) número de anos em que as crianças ficam na escola (educação) e 3) expectativa de vida ao nascer (saúde). Como a renda/capita é um dos componentes do IDH, é natural que encontremos uma correlação positiva e bem significativa entre IDH e renda/capita, como podemos ver no gráfico abaixo:

Este gráfico nos mostra que, para cada US$1.000 de aumento da renda/capita, o IDH aumenta em 0,048. Guarde esta informação.

Como há esses dois outros componentes do IDH (educação e saúde), haverá diferenças devidas a políticas públicas nessas áreas. A questão é saber se a carga tributária tem algo a ver com esses ganhos em educação e saúde. Em outras palavras: se conseguirmos achar uma correlação entre a carga tributária e o IDH ex-renda/capita (o IDH considerando apenas os dois outros componentes), podemos dizer que vale a pena aumentar a carga tributária para aumentar o IDH. É o exercício que faço no gráfico abaixo:

Neste gráfico, correlaciono a diferença entre o IDH real e o IDH hipotético se fosse apenas função da renda/capita de cada país, que calculo usando a equação da regressão do gráfico anterior. Apesar de a correlação ser baixa, o coeficiente tem significância estatística a menos de 1% (p-value = 0,00014%), o que significa que, de fato, aumentando a carga tributária, temos uma tendência de melhora do IDH além daquele dado simplesmente pela renda/capita. Esta melhora é de 0,0015 a mais no IDH dado pela renda/capita para cada ponto percentual adicional na carga tributária.

Mas, não vamos perder a perspectiva. O gráfico anterior havia mostrado que, para cada US$1.000 de aumento na renda/capita, há um aumento do IDH de 0,048. E, no segundo gráfico, observamos um aumento adicional de 0,0015 ao IDH para cada ponto percentual de aumento na carga tributária.

Podemos observar, entretanto, que o aumento da renda/capita é muito mais importante para o aumento do IDH do que o aumento da carga tributária. Cerca de 30 vezes (0,048/0,0015) mais importante. Pode-se melhorar um pouquinho a dignidade do cidadão aumentando a carga tributária e oferecendo serviços, mas aumenta-se muito mais se conseguirmos elevar a renda/capita. O IDH sobe de escada com a carga tributária e de elevador com a renda/capita.

E nem vou aqui entrar no mérito se o aumento da carga tributária atrapalha ou não o crescimento da renda/capita. Vou dar de barato que não atrapalha. Mesmo assim, muito mais esforço se deveria dispender no aumento da renda/capita do país do que no estabelecimento de um Estado de bem-estar social com base em uma alta carga tributária. Os ganhos para o IDH seriam muito maiores. Em outras palavras: a vida do brasileiro seria muito mais “digna” se nos dedicássemos mais a enriquecer do que em montar uma rede de proteção social sem dinheiro suficiente. Mesmo porque, este modelo não parece ter dado lá muito certo.

A saúde tem preço?

Essa é uma discussão ética muito complicada: a saúde tem preço? Quanto vale uma vida humana? Seria ético deixar uma pessoa morrer pelo simples fato de não poder pagar por um leito de UTI? Questões, no mínimo, embaraçosas.

A saúde não tem preço. Mas custa muito caro.

No limite, a lógica da fila única não deveria valer apenas para o Covid-19. Afinal, doença é doença, independentemente do nome. A discussão se dá agora porque há possibilidade real de faltarem leitos no SUS. Mas, conceitualmente, deveria valer para tudo.

Não vou entrar na discussão ética, vou abordar o problema do ponto de vista estritamente econômico.

O que aconteceria se houvesse fila única nos hospitais? Ou seja, se todos os leitos estivessem à disposição de um sistema estatal de saúde? O resultado seria óbvio: não valeria mais a pena pagar por um serviço privado e seria o fim dos hospitais privados e dos convênios e seguros-saúde. Toda a saúde seria fornecida pelo Estado.

Há quem goste dessa solução. Afinal, a saúde não tem preço, e não é justo que o dinheiro determine quem vai ter mais ou menos saúde. Deveria ser tudo igual.

Sim, verdade. Mas não se iluda. Em sociedades onde o dinheiro não manda, manda quem está mais próximo do poder político. A nomenklatura se trata bem, e não tenha dúvida de que, na “fila única” da saúde, alguns teriam um fast pass, como naquelas filas da Disney. O dinheiro pode não ser o critério mais justo para se escolher quem vive ou quem morre. Mas pelo menos é mais transparente.

O paraíso atualizado

Mendigos são presos na Dinamarca por duas semanas.

Dinamarca é aquele paraíso, ao lado de Suécia e Noruega, onde o socialismo “deu certo”. Pelo menos é o que afirmam os socialistas que não sujam o shortinho, vulgo social-democratas.

O jornalista teve o cuidado de afirmar que a lei foi aprovada “somente com o apoio da direita”, numa tentativa tosca de preservar imaculado o santuário. Como se uma lei em uma democracia pudesse ser aprovada somente com os votos de um grupelho minoritário radical.

As definições de Estado de Bem-Estar Social foram atualizadas com sucesso.

Capitalismo selvagem

Muitos empresários, mas muitos mesmo, saíram da pobreza com base nas regras do capitalismo. Aliás, muitos empregados também. O fluxo de venezuelanos para o Brasil e outros países demonstra, para quem tem olhos para ver, a falácia do Estado como “indutor do desenvolvimento social”, o que quer que isso signifique.

É natural que o ex-ministro do STF invoque sua trajetória para defender um “Estado como indutor do desenvolvimento social”: como funcionário público de carreira, nunca precisou se preocupar em gerar lucro ou manter seu emprego. O Estado foi o indutor de seu próprio “desenvolvimento social”. Nunca lhe ocorreu que seu salário é pago, em última instância, pelos lucros dos empresários e pelos salários dos empregados que vivem sob as regras do capitalismo. E, no Brasil, um capitalismo que caminha com uma bola de ferro amarrada à perna, chamada “Estado indutor do desenvolvimento social”.

Não se engane: quando você ouvir alguém falar que é contra o “ultraliberalismo” ou o “capitalismo selvagem”, na verdade é contra o livre mercado mesmo. Este discurso é somente uma desculpa para manter uma grande burocracia estatal (de onde o ex-ministro tem sua origem) e um capitalismo de laços, onde se dá bem quem é amigo do rei.