Fernando Haddad, no primeiro debate entre os candidatos ao governo de SP, afirmou que é completamente contra a privatização da Sabesp. E foi além: afirmou que as tarifas de energia elétrica e das telecomunicações são altas por causa da privatização.
Fazendo um pouco de arqueologia jornalística, não foi difícil encontrar pérolas do tempo das telecomunicações estatais. A reportagem abaixo é de 27/12/1992.
Ao ler a reportagem nos lembramos que as linhas telefônicas eram consideradas investimentos, que competiam com o dólar paralelo, o ouro e as ações, e sua cotação dependia da perspectiva de a Telebrás conseguir ou não suprir a demanda por linhas.
Mas o mais cruel é observar que as linhas mais caras eram justamente aquelas localizadas na periferia. Guaianazes, São Mateus, Itaquera e Parelheiros lideram os preços. Para se ter uma ideia, R$ 45 milhões (preço da linha nessas regiões) era equivalente a aproximdamente US$ 3,1 mil, já considerando a cotação do dólar no paralelo. Imagine pagar o equivalente a R$ 16 mil para ter uma linha telefônica fixa! Ou seja, a estatal prejudicava mais justamente os mais pobres. Nenhuma surpresa aqui.
É difícil fazer um paralelo com a energia elétrica, pois se trata de um mercado mais complexo e que não foi totalmente privatizado (a Eletrobrás só foi privatizada agora). Mas você pode estar certo de que o raciocínio é exatamente o mesmo. Não tenha dúvida de que, caso uma boa parte das empresas de energia elétrica não tivesse sido privatizada, o preço das tarifas seria, hoje, o menor dos nossos problemas. Estaríamos pagando o preço que fosse para garantir fornecimento. E, claro, os mais pobres seriam os mais prejudicados.
Depois de todas as evidências empilhadas nos últimos 25 anos, só defende a existência de estatais quem quer um cabide de emprego para uso político ou quem sofre de uma cegueira ideológica que impede de enxergar a realidade tal qual é. Fernando Haddad pertence a este segundo grupo, o mesmo que incluia Dilma Rousseff. São os mais perigosos, pois nada os detém. Nem a realidade.
O Estadão tem publicado uma série de reportagens sobre a agenda do próximo governo. Na terceira da série, aborda a questão das estatais, trazendo alguns números interessantes a respeito do governo Bolsonaro neste campo:
– Cerca de R$ 155 bilhões foram arrecadados com a venda de subsidiárias de estatais, como a BR Distribuidora e a TAG, da Petrobras.
– Cerca se R$ 75 bilhões foram arrecadados com a venda de participações minoritárias do BNDES em empresas como Petrobras, Vale, JBS, Marfrig e Suzano.
– Cerca de R$ 170 bilhões foram arrecadados com concessões de infraestrutura, o que inclui a descotização das hidrelétricas da Eletrobras em seu processo de privatização.
– A soma acima supera em 15%, em dólar, todas as receitas com privatizações de 1980 a 2018. Claro que não são números comparáveis diretamente, em função da inflação nos EUA no período, mas não deixa de ser um volume absolutamente respeitável.
Do lado negativo, temos a criação da NAV, para substituir a Infraero, e da ENBPar, que substituiu a Eletrobras como holding de Itaipu e Eletronuclear. Essas duas estatais são a demonstração cabal de como é difícil fechar definitivamente uma estatal. A Telebras, que continua entre nós como um zumbi, que o diga. Neste lado negativo, a reportagem acrescenta a retirada da Ceagesp da lista de privatizações, em função de uma rinha pessoal do presidente com o ex-governador. O candidato de Bolsonaro para o governo do estado terá que explicar porque seu padrinho decidiu colocar seus interesses pessoais acima dos interesses dos cidadãos do estado que pretende governar.
De qualquer forma, apesar da pisada de bola na Ceagesp e ter na Eletrobrás a única grande privatização de uma estatal de controle direto (o que, diga-se, não é pouca coisa), o saldo é inegavelmente positivo neste campo. E aqui vem, para contrastar, notinha publicada no mesmo jornal, informando que o PSB de Geraldo Alckmin está propondo para o programa do PT a criação de uma nova estatal, a Amazombras. O nome não poderia ser mais cucaracho para simbolizar ideias dinossauricas, parabéns ao marketing do PSB.
A Amazombras seria uma espécie de Embrapa para a Amazônia, uma empresa de pesquisa. Fica a questão de porque não usar a própria Embrapa para essa finalidade. Claro que essa questão é apenas retórica. Sabemos porque o PSB está propondo outra estatal. Trata-se de uma visão de mundo: o Estado precisa intervir na atividade econômica diretamente, através de empresas estatais. Pouco importa a eficiência, o que importa é a ideologia. Que se exploda o cidadão pagador de impostos.
Estatais diminuem a eficiência econômica e aumentam a concentração de renda, ao privilegiar grupos próximos ao poder. Há formas bem mais eficazes e menos intervencionistas de o Estado regular a atividade econômica. Neste ponto específico, a diferença entre o governo do PT e o governo Bolsonaro é da água para o vinho.
Claudia Safatle repercute, em sua coluna no Valor Econômico, a virada das estatais sob os governos Temer e Bolsonaro, em contraste com o desastre das gestões petistas. Safatle conhece bem o assunto: junto com Ribamar Oliveira, escreveu o livro Anatomia de um Desastre, sobre os anos Dilma, leitura obrigatória para quem quiser ter um retrato daqueles tempos, e uma das fontes que utilizei para a série de posts A Economia na Era PT.
De um prejuízo de R$ 40 bilhões em 2015, hoje as estatais geram lucro de R$ 180 bilhões. A estrela, como não poderia deixar de ser, é a Petrobras, que anunciou mais um lucro recorde nesse trimestre. Safatle faz apenas uma descrição de todas as iniciativas tomadas para essa virada, mas acho que não chega ao fundo da questão.
Quem olha os números frios pode ser tentado a concluir que se trata apenas de incompetência ou de roubalheira. Também é, mas creio que se trata de algo mais. A questão de fundo é a visão de mundo do PT. Segundo essa visão, as estatais são um instrumento para a implementação de políticas públicas, com a grande vantagem de não dependerem do processo chato de aprovação do orçamento no Congresso. A Petrobras perdeu muito, mas muito mais dinheiro com o congelamento de preços dos combustíveis (política monetária), com investimentos em refinarias e outras iniciativas (política industrial e política externa) e com manobras envolvendo o Tesouro para adiantamento de dividendos (política fiscal).
Tenho defendido aqui que, de fato, se uma estatal não serve para fazer política pública, então por que raios precisa ser estatal? Não por outro motivo, Bolsonaro já anunciou que vai trabalhar pela privatização da Petrobras em um segundo mandato. E, também, não por outro motivo, Lula e os petistas criticam toda e qualquer privatização. Trata-se de uma visão de mundo. A qual, aliás, é compartilhada pela maioria dos brasileiros.
Ter estatais que “dão lucro” é quase uma contradição em termos. Significa que não estão cumprindo a única função que lhes dá razão de existir, que é servir como instrumento para o governo implementar suas políticas por fora do orçamento. Lula e o PT estão aí para nos lembrar disso.
Brasília está em transe. Executivo (incluindo os pretendentes ao cargo), Legislativo e Judiciário juntaram-se para atacar a diretoria da Petrobras, após a decisão de mais um aumento de combustíveis.
Já escrevi aqui que a existência de uma empresa estatal somente se justifica por cinco razões:
1) Atuação em área estratégica para o país, em que a atuação privada poderia colocar em risco a segurança nacional;
2) Instrumento de fomento para o desenvolvimento do país;
3) Interesses políticos, em que a atividade da empresa pode render dividendos eleitorais;
4) Interesses corporativos dos funcionários e
5) Instrumento para acobertar esquemas de corrupção.
Desse objetivos, os dois primeiros são explícitos e os três últimos, implícitos. De qualquer forma, observe que, dentre esses cinco objetivos, não se encontra “gerar dividendos para os acionistas”.
Lembro de uma ocasião em que estive na Secretaria da Desestatização para uma reunião. Notei que o descanso de tela dos computadores exibia o artigo 173 da Constituição, que reza o seguinte: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Não está escrito “quando a atividade for lucrativa”.
Acho graça quando defendem que esta ou aquela empresa não precisa ser privatizada “porque dá lucro”. Na ausência de qualquer outro motivo, este é um motivo pelo qual a empresa deveria ser privatizada. Afinal, o governo tem mais o que fazer com nosso dinheiro além de especular na bolsa.
Diante dessa realidade, uma estatal de economia mista não faz o mínimo sentido, pois junta acionistas com objetivos completamente diferentes. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Sabesp e uma lista cada vez menor de empresas de economia mista sofrem de uma esquizofrenia insolúvel: precisam atender os cinco objetivos acima e, além disso, gerar dividendos para os acionistas, objetivos insanavelmente conflitantes.
Por que, então, acionistas minoritários aceitam ser sócios de estatais? Preço. Normalmente essas empresas são negociadas a preços mais baixos em relação aos seus pares privados, preço descontado pelo custo dos cinco objetivos acima. O problema, como sempre, é avaliar corretamente esse desconto. Ontem, as ações de Petrobras chegaram a cair quase 10%, em um sinal de que os acionistas minoritários reavaliaram o peso que o primeiro objetivo acima tem na matriz de decisão da empresa.
Como todo estudante do 1o ano de administração sabe, quanto mais valorizadas as ações de uma empresa, mais barato é o seu custo de capital. Em outras palavras, a empresa precisa emitir menos ações para obter o mesmo capital, e consegue se alavancar mais com dívidas por um custo menor. Para uma estatal, no entanto, esta não é uma preocupação, dado que seu acionista majoritário, em tese, sempre pode capitalizar a empresa a custo zero, via captação de impostos.
Claro que essa é uma possibilidade apenas em tese. Sabemos que a capacidade financeira do Estado é limitada por condicionalidades políticas. Todos gostam de ter uma empresa que subsidie combustíveis, mas ninguém gosta de pensar que pode ter seus impostos aumentados para bancar essa política. O resultado é que o custo para bancar o objetivo 1 acima torna-se igual ao de emitir dívida, que é bem maior que zero.
Alguns dirão que o governo não precisa capitalizar a empresa, afinal a empresa dá lucro, trata-se apenas de moderar o lucro em uma situação excepcional. Esse raciocínio tem dois problemas. O primeiro é a definição de “situação excepcional”. Uma vez aberta a porta, fica sempre a possibilidade de alguém achar que estamos em uma “situação excepcional”. Os acionistas minoritários sabem disso. Aliás, a única “situação excepcional” no momento é a coincidência de um preço alto de petróleo com um ano eleitoral.
O segundo e principal problema tem a ver com o natural ciclo das commodities. Os preços das commodities têm exatamente esse tipo de comportamento: sobem e caem ao sabor dos ciclos econômicos e dos choques de oferta. O que está acontecendo hoje não difere de tantos outros momentos “excepcionais” da história. Se tem uma coisa da qual podemos estar certos é de que os preços das commodities atravessarão “situações excepcionais”, tanto na alta quanto na baixa. As empresas que exploram commodities precisam aproveitar os pontos altos do ciclo para juntar reservas e para pagar dividendos excepcionais aos seus acionistas, de modo a compensar os períodos de baixa, que sempre ocorrem. Caso haja um teto para o lucro, a empresa e os acionistas terão somente o ônus do ciclo negativo, deixando de ter o bônus do ciclo positivo.
Um exemplo caricato mas real dos efeitos desse tipo de política é a PDVSA, petrolífera do estado venezuelano. Ao ser usada exclusivamente para atingir os cinco objetivos listados acima, e sem que o governo venezuelano tivesse condições financeiras para capitalizar a empresa, temos hoje a triste situação de as maiores reservas petrolíferas do mundo permanecerem deitadas em berço esplêndido por falta de capacidade de investimento em exploração.
É verdade que o preço alto dos combustíveis é um problema no mundo inteiro. Mas, para amenizar o problema, vemos países cortando impostos sobre combustíveis ou subsidiando-os com verbas orçamentárias, e não usando o balanço de uma estatal, ainda mais com sócios privados!
Voltando ao artigo 173 da Constituição e aos cinco motivos para a existência de uma estatal listados acima, entre os quais não se inclui “dar lucro”. A meu ver, a existência de uma estatal somente se justifica pelo fato de dar prejuízo. Esse prejuízo é a tradução financeira do atendimento de objetivos que, por construção, não são lucrativos para a iniciativa privada. Neste caso, o orçamento da estatal é usado como uma espécie de extensão do orçamento público para a implementação de políticas para o bem comum. Eu particularmente não gosto desse arranjo, pois tende a esconder o real custo das políticas públicas, mas, pelo menos, o uso da estatal está de acordo com os objetivos que justificam sua existência.
Em 31/03 deste ano, a Equatorial venceu o leilão de privatização da CEEE-D, a distribuidora do grupo gaúcho de energia elétrica CEEE. Ontem, a empresa publicou o seu balanço do 3o trimestre. Destaco abaixo dois trechos.
No primeiro, a empresa informa que o programa de demissões voluntárias (PDV) encerrou-se com o pedido de demissão de 46% dos funcionários.
Você não leu errado. Quarenta e seis por cento (quase metade) dos funcionários da empresa pediram demissão! Alguém poderia pensar: “puxa, então a empresa acabou”. Não, a empresa continua lá, fornecendo eletricidade. Com 46% a menos de pessoas trabalhando.
Mas será que está funcionando mesmo? Aí entra o 2o trecho: os índices DEC (que mede a duração média de interrupção de fornecimento) e FEC (que mede a frequência média de interrupção de fornecimento) foram melhores neste trimestre do que em qualquer outro nos últimos 12 meses. Ou seja, a empresa está entregando um serviço melhor com metade dos funcionários.
Isto é apenas um microcosmo desta grande empresa chamada Estado Brasileiro. Não tenho absolutamente nada contra os funcionários públicos. Tenho vários amigos que o são. Mas, infelizmente, trabalham para uma empresa extremamente ineficiente. Não que os funcionários em si sejam ineficientes. Pelo contrário, acredito que trabalhem com afinco e dedicação. A estrutura toda, no entanto, é ineficiente. Provavelmente, com uma forma mais eficiente de organizar o trabalho, um serviço melhor pudesse ser entregue com o emprego de menos pessoas.
Claro que o serviço público tem a sua própria dinâmica, que não deve ser comparada com uma empresa que visa o lucro. Mas isso não significa que exista espaço para a ineficiência. Afinal, é o dinheiro de nossos impostos que sustenta a máquina, e qualquer desperdício significa subtrair recursos de programas que poderiam mitigar a miséria dos mais necessitados. Se ganhos de eficiência em empresas privadas se transformam em lucros, ganhos de eficiência na máquina do estado se transformam em benefícios para a população.
O exemplo da CEEE-D é estarrecedor. Quantas CEEE-D existem pelas repartições desse Brasil afora?
Por motivos que não vem ao caso, sou titular de um depósito judicial. De tempos em tempos, recebo autorização do juiz para sacar parte dos recursos. Este depósito está no Banco do Brasil. A cada vez que é realizada uma TED para a minha conta, sou tungado em R$36,00.Eu não pude escolher o banco onde ficaria depositado o meu dinheiro. O sistema judicial escolheu o Banco do Brasil, que trabalha livremente com o meu dinheiro, além de me extorquir para fazer uma TED. Além desse, o Banco do Brasil conta com vários outros “monopólios naturais”, que lhe permite cobrar o que quer sem medo da concorrência. A folha de pagamentos dos servidores públicos federais é outro exemplo.
E, mesmo com todas essas “vantagens competitivas”, o Banco do Brasil vale uma fração do que valem seus pares privados: enquanto Itaú e Bradesco valem, respectivamente, R$255 bi e R$217 bi, o Banco do Brasil vale R$85 bilhões. Até o Nubank vale mais: em sua última rodada de captação de recursos, o banco do cartão roxo foi avaliado em R$130 bi.
Por que o BB, tendo tantas “vantagens competitivas naturais”, não encontra investidores dispostos a pagar mais por suas ações? O novo presidente do banco explicou: o BB é do mercado mas também é do Brasil-sil-sil. Cada brasileiro é um sócio.
O Banco do Brasil é, então, uma grande empresa familiar. Quem já trabalhou em empresas familiares sabe do que estou falando: a empresa serve para carregar nas costas membros da família que não conseguiriam se virar de outra forma. Afinal, se a empresa familiar não serve para ajudar a família, pra que serve então?
É isso: o Brasil é uma grande família, e o Banco do Brasil está aí para ajudar a família. Aos acionistas minoritários (o tal “mercado”) cabe financiar o auxílio aos brasileiros. Os minoritários até financiam, mas pagam 1/3 do que topam pagar em bancos de verdade. Todo mundo ganha: os brasileiros, que têm um banco pra chamar de seu, e os acionistas minoritários, que compram um banco baratinho.
O novo presidente do BB define à perfeição a função do banco: dar lucro para ajudar os familiares. Se o lucro é menor do que o de empresas comparáveis, é porque são muitos os familiares a serem ajudados. A família Brasil é muito grande e muito necessitada de ajuda. Portanto, antes de pedir a privatização do banco dos brasileiros, pense em tudo o que ele já fez por você. Afinal, como brasileiro, você é também um sócio do Banco do Brasil-sil-sil.
Este é o demonstrativo de resultados de uma empresa privada:
E este é o demonstrativo de resultados de uma empresa estatal:
Deu para perceber a diferença? Não? É porque não há diferença. Uma empresa estatal possui exatamente a mesma dinâmica de uma empresa privada: produz e vende algum bem ou serviço, paga fornecedores, funcionários, juros e impostos, e o que sobra é o lucro, a ser distribuído para os acionistas da empresa.
Vamos avançar um pouco mais. O balanço de uma empresa, privada ou estatal, é mais ou menos o seguinte:
Os acionistas aportam seu rico dinheirinho, tomam dinheiro dos bancos ou de outros credores e, com esse dinheiro, compram os ativos (equipamentos, imóveis etc.) que servem para produzir o bem ou o serviço. É simples.
Agora, o que acontece se a empresa tem prejuízo? Veja no diagrama abaixo:
O prejuízo causa uma diminuição no valor da empresa para os acionistas e um aumento das dívidas. No limite, podem acontecer três coisas:
Os acionistas aportam mais dinheiro.
A empresa vende ativos para pagar uma parte das dívidas.
A empresa fecha.
Tudo isso é comum às empresas privadas e estatais. Agora, vamos falar de algo que diferencia estes dois tipos de empresa.
Ambos os tipos de empresas pagam juros para os seus credores e dividendos para os seus acionistas. É neste ponto que a empresa estatal difere da empresa pública: o acionista da empresa estatal é o governo. Enquanto o acionista da empresa privada está interessado no retorno de seu capital, o governo está mais preocupado com o “retorno social” da empresa. Nesse sentido, o governo renunciaria a seus dividendos em troca de algum ganho social.
O único motivo plausível para a criação de uma empresa estatal é a geração de benefícios sociais. Estabelecer uma empresa estatal para dar lucro não faz sentido, pois não faz sentido arriscar o caixa do governo em atividades empresariais, atividade própria da iniciativa privada. O caixa do governo deve ser usado única e exclusivamente para gerar benefícios sociais, e a empresa estatal é um instrumento para alcançar este objetivo.
Quais seriam esses “benefícios sociais”? Para a tese que vamos desenvolver a seguir, pouco importa. Pode ser controlar setores estratégicos da economia, desenvolver atividades que não são lucrativas para a iniciativa privada mas que são úteis para a sociedade, geração de empregos, controle de preços de produtos ou serviços, desenvolvimento regional, apoio à indústria nacional e uma longa lista de eteceteras, somente limitada pela imaginação fértil dos responsáveis pelas políticas públicas. Como dissemos, pouco importa. O que importa é que, de alguma maneira, aquela última linha do demonstrativo de resultados, o lucro, será sacrificada em prol do benefício social.
Há basicamente duas formas em que uma empresa estatal sacrifica o lucro. Vejamos o esquema bem simplificado a seguir, que representa uma empresa privada e duas empresas estatais, A e B. As três empresas são do mesmo tamanho e atuam no mesmo setor econômico.
A primeira pizza mostra a empresa privada, que gera vendas de 100, tem custos de 75 e lucro de 25. A empresa estatal do tipo A gera os mesmos 100 de vendas, mas tem custos maiores que a empresa privada, 90, gerando lucros de apenas 10. Os custos da empresa estatal A podem ser maiores porque possui proporcionalmente mais funcionários, ou porque compra de fornecedores nacionais que vendem mais caro, ou ainda porque mantém agências pouco produtivas em localidades distantes. O fato é que, por cumprir alguma missão social, seus custos são mais altos.
Já a empresa estatal do tipo B apresenta um faturamento menor que a empresa privada, apesar de vender a mesma quantidade de mercadorias. Isso pode acontecer porque a empresa estatal B está subsidiando os preços de suas mercadorias, vendendo mais barato do que seria possível se fosse uma empresa privada. Como os custos permanecem os mesmos, o lucro é menor do que se fosse uma empresa privada.
As empresas estatais costumam ser uma mistura dos tipos A e B vistos acima. E notem que nem estamos entrando em outras searas, como a mais baixa produtividade ou a corrupção, que também diminuem o lucro, mas sem gerar benefícios sociais. A análise considera somente a parte meritória da existência da empresa estatal.
O ponto importante aqui é o seguinte: não faz sentido o Estado ser empresário, controlar uma empresa, para gerar o mesmo lucro que geraria uma empresa privada. A estatal serve tão somente para a implementação de políticas públicas. Caso contrário, o Estado estaria arriscando o seu caixa em empreendimentos, enquanto deveria estar usando esses recursos em investimentos com retorno social. Seria como um chefe de família que jogasse na loteria o dinheiro destinado a comprar alimentos para a sua casa.
Tendo isso em mente, vamos abordar os problemas envolvidos nos dois tipos de empresas estatais: a empresa de capital 100% estatal e a empresa de capital misto.
A empresa 100% estatal
Uma empresa 100% estatal (a Caixa Econômica, por exemplo) tem como seu único acionista o Tesouro Nacional. Portanto, é o Tesouro (ou seja, todos nós) que banca as políticas sociais patrocinadas pela empresa estatal. Como vimos, o custo dessas políticas sociais reflete-se na diferença entre o lucro obtido pela empresa estatal e o lucro teórico de uma empresa privada equivalente.
É importante observar que este custo é real, não é teórico. Considere o investimento alternativo: digamos que, ao invés de o governo investir seus recursos para estabelecer uma empresa estatal, investisse o mesmo montante comprando ações de uma empresa privada equivalente no mesmo ramo. Representamos estas duas possibilidades a seguir.
Neste exemplo, se o governo fosse sócio de uma empresa privada, receberia dividendos no valor de 25 dinheiros, e usaria esses recursos para investir em benefícios sociais. Note que estes 25 dinheiros passam pelo crivo do Congresso para serem gastos: trata-se de uma dotação orçamentária.
Na alternativa em que o governo estabelece uma empresa estatal, os dividendos são menores (10 dinheiros), mas o lucro não obtido (15 dinheiros) é direcionado para benefícios sociais. Note que o resultado final é rigorosamente o mesmo, em tese. Há, no entanto, duas diferenças fundamentais entre essas duas alternativas:
1) A empresa estatal, em geral, é menos eficiente do que a empresa privada. Não necessariamente porque seus empregados sejam menos produtivos, mas porque a estatal precisa funcionar sob regras relativas ao dinheiro público (regras de licitações etc.) que amarram a sua administração. Basta ver a dificuldade de a Petrobras vender as suas refinarias: o que seria uma decisão de business normal na iniciativa privada torna-se um calvário de recursos judiciais sem fim quando se trata de uma estatal. Sem contar a possibilidade de corrupção. De modo que, desses 15 dinheiros de custos adicionais, nem tudo vai para benefícios sociais. Uma parte é destinada ao pedágio da estrutura estatal.
2) Este segundo ponto é o mais importante: note que uma parte dos benefícios sociais é financiada diretamente pela empresa estatal (no exemplo, os 15 dinheiros). Não passa pelo orçamento da entidade governamental. A decisão de aplicação daquele dinheiro é terceirizada para a estatal. E quem manda na estatal? Depende da força política que se “apossa” da empresa. Então, temos um processo de dotação de recursos muito menos transparente. Neste caso, os gastos públicos estão usando uma espécie de “orçamento paralelo”, representado pelo balanço da empresa estatal, longe dos olhos do grande público. A elaboração do orçamento público é o palco onde, nas democracias, se decidem as prioridades do Estado. A estatal serve para esconder uma parte desse orçamento, em um mecanismo pouco democrático, onde alguns poucos têm o poder de decidir sobre o destino de recursos públicos.
Sobre este último ponto, vejamos um exemplo concreto, justamente aquele que mexeu com a opinião pública nos últimos dias: o preço do diesel praticado pela Petrobras. Apliquemos o esquema visto acima a este caso.
Observe como, se o governo brasileiro fosse dono de ações da Exxon (ou de uma Petrobras administrada como se empresa privada fosse), receberia 25 dinheiros de dividendos, e estes recursos passariam por uma decisão do Congresso, que poderia ou não dirigir uma parte deles (no caso, 15 dinheiros) para subsidiar os combustíveis. Já no caso da empresa estatal, o subsídio oculto representado pelo represamento dos preços dos combustíveis vai automaticamente para o subsídio aos motoristas. Quem decidiu esse subsídio? Não foi uma instância democrática, em que os recursos escassos da sociedade são disputados a tapa na confecção do Orçamento Público.
Ao invés de a Petrobras subsidiar os combustíveis, que tal o Congresso criar um fundo de estabilização dos preços dos combustíveis com recursos orçamentários? Fica aqui o desafio de encontrar os recursos no orçamento para formar esse fundo. Se não existem, vale usar o orçamento da Petrobras para esconder esses gastos dos olhos públicos?
Mas a coisa pode ficar ainda pior.
A empresa estatal de capital misto
Na empresa estatal de capital misto, investidores privados são sócios do Estado. Ou seja, a partir do que vimos acima, os investidores privados topam participar da geração de benefícios sociais através do uso de empresas estatais.
Mas, alguém poderia perguntar: por quê?
O que afinal leva um investidor privado, que tem à sua disposição inúmeras opções de investimentos em empresas privadas, a optar por colocar parte do seu dinheiro em uma empresa que, como vimos acima, por definição, usará uma parte de seu lucro para distribuir benefícios sociais?
A resposta é simples: tudo tem um preço.
O investidor privado cobrará mais caro para ser sócio de uma empresa estatal do que de uma empresa privada equivalente. O que significa este “cobrar mais caro”? Simples: pagará menos por uma fatia do capital da empresa estatal do que pagaria por uma fatia equivalente da empresa privada.
Vamos lembrar do nosso exemplo acima. A empresa privada paga 25 dinheiros de dividendos e a empresa estatal equivalente paga 10, pois 15 são os custos adicionais dos benefícios sociais. Ora, digamos que o investidor privado queira ter um retorno de 10% sobre o seu capital. Como a empresa privada paga 25 dinheiros de dividendos, este investidor estaria disposto a pagar 250 por uma fatia da empresa. Já para ser sócio da empresa estatal, o mesmo investidor estaria disposto a pagar, no máximo, 100.
Em resumo: o investimento sempre será proporcional ao retorno esperado. Mas o que isso significa na prática? Significa que a Petrobras paga mais caro pelo capital que capta no mercado.
Aliás, isso nos faz dar um passo atrás e nos perguntar: mas afinal, por que o governo precisa de sócios privados? Não seria tudo mais fácil se a empresa pertencesse totalmente ao governo? Sim, seria. O problema, como sempre, se reduz a um só: falta de dinheiro.
A empresa estatal precisa de recursos para fazer investimentos e, assim, viabilizar as suas atividades. No entanto, como sabemos, são inúmeras as necessidades competindo pelo orçamento público. Então, a solução é chamar sócios com dinheiro.
(Só um aparte: em 2010, a Petrobras fez a maior capitalização da história do mercado de capitais brasileiro para investir nos poços do pré-sal. O governo entrou com o petróleo que seria descoberto, enquanto os sócios privados entraram com o dinheiro (R$ 120 bi na época). Na época, a ação valia R$ 20 (já ajustada pelos dividendos do período), e hoje, mais de 10 anos depois, valem R$ 22. A poupança rendeu mais no período).
Ao fazer isso, o governo assume o compromisso de gerir a empresa estatal como se privada fosse. Mas é um “me engana que eu gosto”: o Estado faz de conta que não quer extrair benefícios sociais da empresa e o investidor privado faz de conta que acredita. Claro, como dissemos antes, esse jogo de faz-de-conta tem um preço: o desconto no valor da ação da empresa.
Vamos a um exemplo prático.
A Exxon produz cerca de 2,3 milhões de barris/dia de petróleo, mais ou menos o que produz a Petrobrás. No entanto, o valor de mercado da Exxon é de US$ 230 bilhões, enquanto da Petrobrás é de US$ 53 bilhões.
Ou seja, quando você compra uma ação da Exxon, você está pagando o equivalente a mais ou menos 100 mil dólares por barril/dia de produção. Já quando você compra uma ação da Petrobras, o preço de cada barril/dia de produção da petroleira brasileira vale aproximadamente 23 mil dólares, ou um quarto do valor da Exxon. O mesmo petróleo. Por quê? Porque o investidor espera, ao longo do tempo, ter quatro vezes mais lucro com Exxon do que com a Petrobras.
(A conta não é assim tão simples. Os negócios das duas empresas não são exatamente os mesmos, então a comparação precisa ser feita com cuidado. Mas a diferença de preços é suficientemente grande para fazermos o ponto aqui).
Mas o mais importante vem agora: o que isso significa para a empresa que precisa levantar recursos junto aos investidores para tocar suas operações? Significa que a Exxon consegue levantar quatro vezes mais capital do que a Petrobrás ao vender a mesma fatia da empresa. Isso se chama custo de capital. Ou seja, o trabalho e o esforço que os funcionários da Petrobras empregam para retirar um barril de petróleo de debaixo da terra vale quatro vezes menos do que o trabalho e o esforço que os funcionários da Exxon dispendem para o mesmo resultado. Tudo isso porque existe o tal “benefício social” extraído da empresa.
A propósito, os acionistas privados não têm muito do que reclamar quando, de vez em quando, o governo, acionista majoritário, rasga a fantasia e deixa explícito qual o verdadeiro objetivo da existência da empresa. Afinal, estão pagando muito mais barato do que se investissem em uma equivalente privada. Não existe almoço de graça.
Uma nota final sobre ESG
O investimento com preocupação social está na moda. A sigla ESG (Meio-ambiente, Social, Governança, na sigla em inglês) está se tornando onipresente. Segundo a filosofia ESG, toda empresa deveria se engajar em iniciativas de preservação do meio-ambiente, inclusão de minorias, diminuição das desigualdades e, ao mesmo tempo, tratar com respeito os acionistas minoritários.
Não estariam as empresas estatais justamente na vanguarda do ESG? Afinal, como já ouvi por aí, a preocupação em distribuir “benefícios sociais”, que é da própria essência das empresas estatais, deveria ser uma preocupação de todas as empresas privadas também. Gerar lucro já não seria o único e nem sequer o principal objetivo de uma empresa. As questões ESG seriam o novo paradigma dos negócios do século XXI.
O que dizer?
Em primeiro lugar, essa é uma interpretação rasa do que seja ESG. Em momento algum se pretende colocar o lucro em segundo plano. A geração de lucro continua sendo o objetivo principal das empresas, mesmo porque, sem remunerar adequadamente o capital, nenhuma empresa sobrevive para se engajar em causas sociais.
Na verdade, gerar lucro é a principal contribuição que uma empresa pode dar para a sociedade, pois significa que está adicionando valor para os seus consumidores. E é a adição de valor que gera crescimento econômico e riqueza no longo prazo. Os critérios ESG vieram justamente para garantir a geração de lucro no longo prazo, ao garantir a sustentabilidade dos negócios. Uma empresa predatória, que se aproveita de esquemas pouco éticos, pode até gerar lucros no curto prazo, mas não consegue sustentá-los ao longo do tempo. ESG significa explicitar princípios que irão garantir a sustentabilidade da geração de lucros no longo prazo. Note que não se trata de renunciar à maximização de lucros ao longo do tempo, pelo contrário.
Neste sentido, o que o governo ameaça fazer com a Petrobrás fere dois dos princípios ESG: 1) ao sugerir que pode subsidiar combustíveis, está incentivando o uso de combustíveis fósseis e 2) não está cumprindo com seu dever fiduciário junto aos acionistas privados minoritários, que têm direito a uma gestão não ruinosa da companhia.
E que fique claro que não se enquadra entre os princípios ESG a missão de apaziguar os ânimos de caminhoneiros e garantir a paz social. Esta é uma função do acionista majoritário, não da empresa por ele controlada.
Em uma página, ficamos sabendo que a Infraero consumiu R$13 bi em 7 anos, incluindo os 49% de participação nas concessionárias que estão administrando os aeroportos. E daí, pensamos: “esse governo Dilma, incompetente, com ideias jurássicas sobre economia, queimando recursos com estatais que só servem como cabides de emprego, etc etc etc”
Aí, na página seguinte, temos uma matéria sobre a Emgepron, a estatal que foi capitalizada com R$7 bi no apagar das luzes do ano passado. Expressões como “fomento à indústria nacional”, “criação de empregos”, “efeito multiplicador”, estão todos na reportagem, o que me fez olhar de novo para a data do jornal, para conferir se não estava, por engano, lendo uma entrevista do Luciano Coutinho ou do Márcio Pochmann nos tempos do governo Dilma.
O governo Bolsonaro não só não privatizou nenhuma estatal diretamente controlada pela União nesses quase 14 meses de governo, como criou mais uma, a NAV, para substituir a Infraero. Como a Infraero ainda não foi embora, as duas estão convivendo. E consumindo recursos.
Mas está tudo bem, este é o primeiro governo verdadeiramente liberal em 500 anos de história. Eu estou tranquilo.