Os bárbaros são os outros

Fernando Gabeira ganhou meu respeito por ser um dos raros intelectuais de esquerda que não varreu para debaixo do tapete os desmandos dos governos do PT, tanto no campo econômico quanto no penal. Em vários artigos, Gabeira não se furtou a dar nome aos bois. Por isso, sempre leio com interesse suas colunas, até para entender a cabeça da esquerda, digamos, ilustrada.

Este artigo, que coloca o furacão Milei no contexto da ascensão da “extrema direita” no mundo, é alarmista até o último fio de cabelo. Aponta, em resumo, duas ameaças existenciais para a humanidade, que seriam objetivos explícitos da tal “extrema direita”: o fim da democracia e o negacionismo das mudanças climáticas. A isso, Gabeira dá o nome de “barbárie”, nada menos.

Como antídoto, e em linha com sua leitura honesta da realidade, Gabeira recomenda uma “ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita”. Infelizmente, o jornalista não nos ilumina com a sua sabedoria, especificando quais seriam esses “erros” que deveriam ser “revisados”, a não ser um genérico “resgatar os que foram deixados para trás pela globalização”, o que não deixa de ser uma crítica velada não à esquerda, mas ao neoliberalismo. Aliás, Gabeira sequer se deu ao trabalho de nomear o sujeito dos erros. Afinal, quem cometeu os erros que nos deixaram às portas da barbárie?

Bem, vou tentar preencher essa lacuna deixada pelo colunista, e que tornaria seu artigo muito mais útil e interessante. Por que, afinal, Trump, Bolsonaro, Le Pen, Netanyahu, Meloni, Milei obtiveram uma fatia relevante e, em alguns casos, majoritária, do eleitorado? Minha avaliação pessoal é de que há um erro de fundo das esquerdas e que dá margem a uma reação contrária e em direção oposta: o sentimento de “superioridade moral”.

O sentimento de superioridade moral perpassa todos os posicionamentos da esquerda, desde o identitarismo, passando pelo uso de máscaras durante a pandemia até a denúncia do aquecimento global e a defesa da democracia. Todos temas tratados desde um ponto de vista moral, em que os “bons” se contrapõem aos “malvados”. O próprio artigo de Gabeira transpira essa atitude, chamando de “bárbaros” todos aqueles que não comungam de seus pontos de vista.

É claro que há radicais com quem não se consegue conversar. Mas os há em ambos os lados do espectro político, e não me consta que Gabeira tenha chamado de “barbárie”, por exemplo, a proposta de Constituição que foi engendrada pelos esquerdistas radicais no Chile. De alguma maneira, aquilo não se constituía em uma “ameaça existencial”, era só, no máximo, uma piada de mau gosto.

Para piorar a situação, à pose insuportável de superioridade moral junta-se a hipocrisia: fica realmente difícil engolir que Lula, para quem a democracia seria relativa, seja o condutor da luta pela democracia no Brasil. E essas hipocrisias abundam em todos os campos: aliados de causas identitárias que vivem só do discurso, combatentes do aquecimento global que não dão a mínima para como os mais pobres vão bancar a tal transição energética, e assim por diante. Sendo escolhas morais, dispensam qualquer discussão adicional, basta posicionar-se no campo dos “bons”.

Gabeira é inteligente e lúcido. Espero ainda ler um artigo seu apontando os erros que levaram à ascenção da “extrema direita”. A começar com um mea culpa, que é chamar minorias relevantes da população (e, em alguns casos, maiorias) de bárbaros. Não existe apenas uma forma moralmente superior de resolver os problemas do mundo. Quando a esquerda civilizada entender isso, conseguirá isolar os poucos realmente radicais da direita.

Esquerda radical

Esquerda radical.

A palavra “radical” nos remete a algo que “não se mistura”, que “não cede a compromissos” com outras forças políticas, algo que se mantém “puro”. A palavra “radical” vem do latim “radix”, raiz. Ser radical significa, portanto, ter raizes, respeitar e ser fiel às próprias origens e convicções.

Diferente da palavra “extrema”.

“Extrema esquerda” soa a alguém que usa quaisquer métodos para impor suas ideias. É também radical, mas vai além: chega a ser criminoso. No mínimo, sugere a ideia de intolerância. O termo “extrema esquerda” normalmente é associado a grupos terroristas, à margem da lei.

Note: na imprensa, partidos na ponta esquerda do espectro político são chamados de “radicais”, enquanto na ponta direita são chamados de “extrema”. Por que será?

Legendas de centro-esquerda

PT, PSB, PSOL, PDT e PC do B.

Esses são os partidos de “centro-esquerda” segundo a Folha. Centro-esquerda!

Imaginem uma aliança entre, sei lá, o PMDB e o partido do Bolsonaro. A Folha chamaria isso de “Centro-direita” ou de uma aliança entre o “Centro” e a “Extrema-direita”?

Por que a diferença de tratamento? É só uma pergunta retórica, não perca seu tempo tentando responder.

A não tão sutil doutrinação

Estadão, coluna de Eliane Catanhêde: “… surge o primeiro movimento claro de reaglutinação de forças, e é à esquerda. As articulações projetam, inclusive, um novo personagem nesse atual cenário vazio, desolador: Guilherme Boulos. […] Como Stedile, é inteligente e tem liderança. A diferença é que Stedile parece paralisado num passado que desmoronou e Boulos acena com o futuro”. […] “Assim como a esquerda se rearticula, as demais forças também. Entretanto, a extrema direita defender a volta da ditadura militar não é articulação, é ameaça”.

Valor Econômico, sociólogo Sergio Abranches: “O Brasil, durante a maior parte do tempo, tinha uma esquerda e o resto se dizia de centro. Ninguém se assumia como de direita, no sentido de ser conservador, antifeminista, contra a liberdade de expressão generalizada. Isso é um fenômeno muito novo”.

Valor Econômico, reportagem sobre os 150 anos de Marx: “…filósofo e revolucionário do século XIX, inspiração para os movimentos de esquerda e assombração para os governos autoritários de direita,…”

O que há de comum nesses três trechos, escolhidos entre tantos outros em apenas um dia de jornal? Basta saber ler para notar a glamourização da esquerda e a satanização da direita.

Catanhêde eleva à condição de estadista um radical que queima pneus nas ruas e usa pobres coitados como massa de manobra, mas o antidemocrático é somente aquele que pede a volta da ditadura militar.

Sergio Abranches identifica a direita com a falta de liberdade de expressão, quando são os regimes de esquerda que, notoriamente, eliminam esse direito uma vez no poder.

A reportagem sobre Marx guarda o adjetivo “autoritário” para a direita, quando, mais uma vez notoriamente, os regimes de esquerda se destacaram (e ainda se destacam, vide Venezuela, Cuba e Coreia do Norte) como autoritários.

A doutrinação é sutil, mas poderosa. O tempo inteiro, estão tentando nos convencer de que a esquerda é “do bem” e a direita é “do mal”.

A reportagem do Valor, onde Sergio Abranches nos brinda com a observação acima, tenta entender a ascensão da “extrema direita”, representada por Bolsonaro. O adjetivo “extrema” é usado ao longo de toda a reportagem. Lanço aqui um desafio: encontre hoje, no jornal, o adjetivo “extrema” associado à esquerda. Boa sorte.