Notinhas políticas de jornal com fontes indeterminadas são a forma de dar vestes institucionais à posição de um grupo específico. Nem vou perder meu tempo criticando o jornal que se presta a esse papel ridículo. A questão de fundo, no caso dessa notinha específica, é o seu objetivo: sugerir que certos atores, agindo dentro das leis do país, não têm o direito de se manifestarem.
Para “a Câmara” (leia-se os deputados do PT e seus satélites), e “ministros do STF” (já sabemos quem é), as Big Techs não deveriam ter voz no tal do Conselhão do Lula. Esse Conselhão, pelo seu tamanho e modus operandi, é de uma inutilidade atroz. Mas há que se conceder que Lula foi muito democrático ao escolher os nomes, contemplando tudo e quase todos (senti falta da Anitta) dentro do seu espectro ideológico. As Big Techs estão lá, provavelmente por serem atores sociais relevantes. Como diria Don Corleone, é melhor manter seus inimigos perto.
O que esses deputados e ministro do STF querem é cancelar as Big Techs do mundo dos vivos. Que coloquem suas cabeças na guilhotina, à espera da lâmina se não cumprirem sua missão de substituírem a polícia na detecção e combate ao crime, mas se mantenham caladas.
Tudo isso estaria sendo evitado se adotássemos a solução chinesa: bloqueio de toda e qualquer rede social ou serviço de mensageira no país, a não ser aqueles desenvolvidos por empresários locais, e que terceirizam ao Estado a tarefa de monitorar as redes. O Brasil (e, vale dizer, o mundo ocidental), está em busca de resolver a quadratura do círculo: como manter redes sociais em mãos privadas e, ao mesmo tempo, garantir o nível de surveillance chinês.
Obrigar que entidades privadas realizem aquilo que deveria ser de responsabilidade do Estado inviabiliza o seu modelo de negócios, e é isso o que as Big Techs estão tentando dizer. Ao impedi-las de dizer isso, o Estado brasileiro está limitando o debate democrático, no melhor estilo chinês.
A empresa nunca fez muita questão de parecer correta. Ao contrário de Meta ou Google, com sedes na disneylândia do politicamente correto, o Telegram pertence a um empreendedor russo. Já viu, né? Se nem a lei é propriamente um guia, quanto mais detalhes de convivência civilizada. O Telegram, como dizemos, está C&A para o que pensam ou dizem as autoridades brasileiras.
No entanto, mesmo com esse background, seu texto de hoje pareceu algo fora de contexto. Apesar de o PL das Fake News já ter sido retirado de pauta, e ter se decidido fatiá-lo para votar somente a parte de remuneração da mídia, vem o Telegram e entra com os dois pés no peito, lembrando muito um volante estabanado que faz uma falta violenta completamente descenecessária no meio de campo, em um lance sem perigo, e recebe o cartão vermelho.
Mas, com todo esse burburinho sobre jogadores que protagonizam lances estranhos, é de se desconfiar quando um jogador provoca a própria expulsão, assim, do nada. E foi mais ou menos isso que o Telegram fez.
Nem a maçaneta da porta de entrada da sede do Telegram achava que uma mensagem daquela iria passar incólume. No entanto, tratava-se de um risco calculado: o STF teria que ser muito macho para suspender o serviço no Brasil (usado por milhares de pessoas), ou mesmo estabelecer uma multa bilionária (milionária ok, valeria pela causa). A reação do STF foi aquela esperada, e acho que saiu melhor que a encomenda: a censura do conteúdo postado pelo Telegram, e a imposição de um texto escrito pelo próprio ministro, em uma demonstração on the job daquilo que o ministro diz não existir.
A pergunta que deve ser feita é a seguinte: depois dessa demonstração de força do STF, os deputados estão mais ou menos propensos a votarem a favor do PL das Fake News? A depender da resposta, saberemos quem se aproximou mais do seu objetivo, o Telegram ou Alexandre de Moraes.
O Telegram chutou o pau da barraca, e resolveu enviar para toda a sua base de usuários um texto descascando o PL das Fake News. Eu printei a mensagem antes que o aplicativo fosse obrigado a retirar a mensagem de sua página ou, pior, fosse tirado do ar. Vamos analisá-la.
O Telegram começa de maneira pouco diplomática, afirmando que a democracia estaria sob ataque no Brasil. Trata-se de uma opinião forte, que não se espera de uma comunicação corporativa, mas, ainda assim, uma opinião. A empresa não determina quem estaria atacando a democracia, mas entende-se que sejam os patrocinadores do PL.
Em seguida, a empresa afirma que o PL, da forma como está, poderia forçar, inclusive, o encerramento das suas atividades no Brasil. Alguns poderiam alegar que se trata de uma chantagem barata, mas a empresa pode, por suposto, ameaçar fechar suas portas a qualquer momento. Esta ameaça pode ou não ser crível, mas não parece ser um crime.
A seguir, afirma que o PL “concede poderes de censura ao governo”. Parece uma afirmação exagerada ou imprecisa, na medida em que este “poder” do governo é apenas indireto, ao exigir que as plataformas removam conteúdos inadequados. O problema do PL (e veremos isso no próximo parágrafo) é delegar às plataformas o poder de definir o que pode ou não pode ser publicado, elevando as plataformas ao status de juízes de conteúdo, sob pena, e esta é a crítica do Telegram aqui (e, de resto, de todas as outras plataformas), de serem consideradas coniventes. Ou seja, não é exato dizer que o governo será um censor, mas na medida em que as plataformas forem penalizadas por não removerem conteúdos que juízes ou agências do governo considerem inadequados, o governo passa a ter um poder discricionário sobre as plataformas que, na prática, as obriga a serem a longa manus do governo quando se trata de conteúdo na internet.
No parágrafo seguinte, o Telegram é exato ao afirmar que o PL “transfere poderes judiciais aos aplicativos”, ponto que eu já havia levantado no post em que analiso o PL. O resultado, como adiantei, é que as plataformas aplicarão critérios apertados, levando a uma hipercensura de conteúdos. Uma ameaça de morte é relativamente fácil de classificar como crime. O problema, claro, ocorre quando opiniões políticas ou de costumes podem ser classificados como “discurso de ódio” ou “ataques à democracia”. As plataformas não querem esse tipo de responsabilidade, pois não têm os instrumentos nem a legitimidade para tanto. Aliás, o próprio tratamento dado pelo STF a este texto do Telegram mostra o quão pantanoso é esse terreno.
Em seguida, a empresa afirma que o PL “cria um sistema de vigilância permanente”. Bem, isso é verdade, não opinião, está lá no art. 11: “os provedores devem atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços, envidando esforços para aprimorar o combate à disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros, que possam configurar:”, e seguem-se os crimes que as plataformas precisam vigiar, incluindo “crimes contra o Estado Democrático de Direito”, com base em decreto de 1940, editado por ninguém menos do que o ditador Getúlio Vargas!
O problema é que o Telegram ousou afirmar que este é um sistema “semelhante ao de países com regimes antidemocráticos”. Bem, isso é a opinião do Telegram. Pode estar certa, pode estar errada, mas não me parece que esta afirmação em si atente contra o Estado Democrático de Direito.
Por fim, o Telegram diz que o PL seria desnecessário, pois o país já “possui leis para lidar com as atividades criminosas que esse projeto de lei pretende abranger”. Daí, em seu estilo incendiário, o Telegram afirma que o PL “visa burlar essa estrutura legal, permitindo que uma única entidade administrativa regule o discurso se supervisão judicial independente e prévia”. Bem, o Telegram está desatualizado, pois essa parte (o da entidade supervisora) foi retirada do PL. Mas, mesmo assim, parece forte demais afirmar que o PL tem como objetivo “burlar” a atual estrutura legal, o que poderia ser interpretado como uma acusação de desonestidade por parte dos congressistas que estão por trás do PL.
No fim, o Telegram sugere que o que vai acima “apenas toca a superfície” do problema. Trata-se de recurso retórico, é óbvio que o problema está todo descrito aí acima. Além disso, menciona Google e Meta, trazendo para a arena outras empresas que também publicaram suas análises sobre o PL, inclusive com o link para essas análises. Obviamente, Google e Meta trataram de dizer que não têm nada a ver com o discurso incendiário, mas os links não mentem.
O STF (ministro Alexandre de Moraes) ordenou que o Telegram tirasse a mensagem de sua página, e substituísse por um texto em que afirma que a mensagem anterior do Telegram caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO” (assim mesmo, em caixa alta) contra nada menos que “o Congresso Nacional, o Poder Judiciário, o Estado de Direito e à Democracia Brasileira”, pois teria cometido fraude ao distorcer a discussão e os debates sobra o PL, “na tentativa de induzir e instigar os usuários a coagir os parlamentares”.
Que o Telegram, fiel ao seu estilo, não foi nem um pouco delicado ao tratar o assunto, não resta dúvida. Seu texto é forte, acusando, de várias formas, os defensores do PL de atacarem a democracia. Agora, daí vai uma distância imensa ao cometimento de algum crime tipificado, que merecesse a intervenção do judiciário. O Google publicou um texto muito mais bem-educado, e mereceu o mesmo fatwa dos representantes do Estado brasileiro. De onde se conclui que o problema não foi a forma, mas o conteúdo.
Chego a duvidar que este texto entre aspas tenha sido mesmo escrito por um ministro da Suprema Corte. O tom do texto consegue rebaixar-se ao mesmo nível do texto do Telegram, em uma falta de serenidade que fica bem para panfletos, não para decisões judiciais. Isso na forma. No conteúdo, fico realmente preocupado quando um texto de críticas a um PL, por mais que seja de uma parte interessada, por mais que tenha frases fortes, é considerado um “ataque à Democracia Brasileira”. Se esse texto do Telegram não pode, o que pode? Quem define o que pode ou não pode? Qualquer texto contra o PL das Fake News seria, por definição, anti-democrático? Preciso começar a me preocupar com o que eu escrevo aqui?
Mas o que mais me faz desconfiar de que essa retratação do Telegram não foi escrito por Alexandre de Moraes é a crase antes do verbo em “à coagir”. Nunca um ministro do STF cometeria um erro gramatical desse naipe.
Eugênio Bucci, claro, é mais um, ao lado de Flávio Dino e Alexandre de Moraes, que acha que o Google não deveria ter voz no debate nacional em temas que lhe afetam. Por que? Bucci lista dois motivos: porque o Google não é brasileiro e porque o Google é um “monopolista bilionário”.
Comecemos com o primeiro ponto. Nesse caso, a Anfavea, por exemplo, formada apenas por montadoras estrangeiras, deveria se abster de opinar em leis que lhe afetam. Sabemos que não é bem assim que a banda toca. O fato é que multinacionais, no momento que estão operando em território brasileiro, prestando serviços a brasileiros e empregando funcionários brasileiros, deveriam ter sim o direito de opinar sobre legislações que lhes afetam. Trata-se, aqui, de uma xenofobia oportunista: traga o seu dinheiro mas fique quieto.
O segundo ponto é a falácia do “poder econômico”. O Google, por acaso, usou os seus bilhões para comprar deputados? Se não, qual exatamente a relação entre os bilhões do Google e sua opinião, colocada em sua página como o seu ponto de vista sobre o assunto? Dizem que o Google privilegiou resultados de busca favoráveis à sua posição em sua primeira página, e isso configuraria abuso de poder econômico. Verdade, se isso for provado. Mas Dino, Moraes e Bucci se insurgiram foi contra o tal link com opinião na capa do Google, é sobre isso que estamos falando. E isso, desculpem-me esses democratas de fachada, faz parte do debate público.
Na verdade, Bucci está exercendo o seu “jus esperneandi”, pois o projeto, da forma como está, não tem votos no Parlamento. Acusar o Google de “conduzir” o debate é infantilizar a opinião pública e os deputados, que não conseguiriam pensar por conta própria e estariam dispostos a assumir a opinião de quem tem mais “poder”, pelo simples fato de ter mais poder. Esse debate sobre o PL das fake news virou praça de guerra justamente porque quiseram enfiá-lo goela abaixo como se fosse uma luta entre o bem de quem “está preocupado com as crianças” contra o mal representado por multinacionais bilionárias e bolsonaristas golpistas. Com esse tipo de simplificação, uma opinião contrária como a do Google realmente incomoda àqueles para quem democracia é somente mais uma palavra bonita.
Ouvi dizer que esse mesmo arrazoado de Felipe Neto vem sendo usado por jornalistas, como Natuza Neri. Faz sentido?
O artigo 19 do marco civil da internet reza o seguinte:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Seguem-se 4 parágrafos com detalhamento sobre como e em que condições se deve dar a ordem judicial.
Ou seja, o artigo 19 do MCI garante justamente a não responsabilização solidária dos provedores por danos decorrentes de conteúdo de terceiros, o que, convém destacar, tem o objetivo de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura. O que tem a ver uma coisa com a outra, poderá perguntar o leitor. Respondo: no momento em que os provedores tornam-se responsáveis pelo conteúdo de terceiros, haverá uma tendência natural de auto-proteção por parte desses mesmos provedores, que ficarão hipersensíveis a qualquer conteúdo que possa ser considerado nocivo pelo órgão regulador ou pela justiça. Isso poderia resultar em uma ameaça à liberdade de expressão por parte dos provedores, pois, em seu afã de se auto-protegerem, poderiam hipercensurar os conteúdos da rede. O espírito desse parágrafo é justamente evitar que ocorra algo do tipo.
O que propõe o PL 2360? Em seu artigo 6, o PL diz o seguinte:
Art. 6º Os provedores podem ser responsabilizados civilmente, de forma solidária:
I – pela reparação dos danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade de plataforma; e
II – por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando houver descumprimento das obrigações de dever de cuidado, na duração do protocolo de segurança de que trata a Seção IV.
Já tive oportunide de falar sobre esse tal “protocolo de segurança” em um post ontem. O fato é que, na prática, este artigo REVOGA O ARTIGO 19 DO MCI.
Então, o que Felipe Neto está dizendo é mais ou menos o seguinte: se você não der um tiro na cabeça agora, eu te mato. Obviamente, os provedores não vão dar um tiro em suas próprias cabeças, vão esperar que o STF os mate, desfilando seus doutos argumentos sobre o por quê o artigo 19 do MCI seria inconstitucional, quando seu objetivo é justamente proteger uma cláusula pétrea da Constituição, qual seja, a liberdade de expressão.
Mas o lado mais meigo desse argumento de Felipe Neto é a ameaça autoritária: se o PL não for aprovado pelos deputados, então a fúria do STF cairá sobre nossas cabeças. Como se os deputados só tivessem à disposição uma só opção, votar “sim”. Não sei porquê, lembrei da ameaça de fechamento do Congresso por parte do governo Costa e Silva quando os deputados se recusaram a cassar um colega por críticas à caserna.
Está aí como, em um único tuíte, medimos as convicções democráticas de nossos democratas.
PS.: Felipe Neto não entende de leis, entende de tuítes. Se ele escreveu isso aí, foi porque alguém assoprou. Quem será?
O que são palavras de ordem? Palavras de ordem são sentenças fortes, que captam a atenção e as emoções das pessoas, mas se prestam muito pouco, ou nada, para resolver problemas práticos.
Por exemplo, as palavras de ordem “Não somos capachos dos imperialistas!” são ditas com muita ênfase e paixão, mas significam exatamente o quê? Vamos cortar relações com os Estados Unidos? Vamos sempre assumir posições contrárias aos Estados Unidos em qualquer fórum? Significa que ter relações com os EUA ou alinhar-se aos americanos em algumas questões significa que somos “capachos”? Qual o sentido disso? Prático, nenhum. Trata-se apenas de… palavras de ordem de grêmio estudantil.
O ministro Alexandre de Moraes resolveu adotar palavras de ordem em decisões judiciais. “As redes sociais não são terra sem lei!” Sim, e daí? Quem disse que são? Até onde entendo, quem comete crime na rede é tão passível de punição quanto se tivesse cometido crime fora da rede. Não é assim? Então, o que significa exatamente “as redes sociais não são terra sem lei”? A rigor, nada, são somente palavras de ordem com o objetivo de inflamar a plateia.
As redes sociais têm lei sim, respondemos todos pelo que escrevemos. O que o PL da Fake News quer é forçar as redes sociais a servirem de braço policial do Estado, o que é beeeeeem diferente. O monopólio da força e do julgamento é do Estado. Exigir que as redes exerçam a força e o julgamento sob pena de serem coniventes, aí sim, é arbitrário.
Claro, qualquer indivíduo que saiba de um crime e não o denuncia é conivente, e deve ser julgado por omissão. O problema é assumir que as redes sociais “sabem” de tudo o que é postado em suas páginas. E mais, que julguem antes mesmo da justiça, e adotem medidas censórias.
Vamos a um exemplo simples: o 8 de janeiro. Houve uma mobilização, via redes sociais, para o evento. Atenção: o evento não era um quebra-quebra, o evento era um protesto, direito garantido pela Constituição. Um protesto como tantos outros anteriores, de várias cores e matizes. Pergunto: como poderiam as redes sociais intervir no processo? Talvez com os Cogs de Minority Report… No entanto, com a nova lei, as redes sociais responderiam solidariamente com os arruaceiros. É a isso que Alexandre de Moraes chama de “terra com lei”?
Palavras de ordem normalmente são ditadas pelo fígado, tornando simplória uma realidade complexa. E o fígado, como sabemos, não é bom conselheiro.
No livro 1984, George Orwell descreve o desejo oculto de todos os que exercem o poder: controlar a mente dos cidadãos. Na história, não bastou que o personagem principal tivesse sido preso e condenado à morte por subversão. O objetivo final, antes de ser executado, é que o criminoso amasse o Grande Irmão. E, de fato, antes de morrer, nosso personagem não consegue reprimir seu sentimento de amor ao Grande Irmão. A sua mente estava dominada.
Claro, trata-se apenas de uma fábula. Não que o domínio da mente das pessoas não ocorra. Pelo contrário, estamos, o tempo inteiro, e sem perceber, sendo bombardeados por ideias que buscam lugar em nossas mentes. Neste livre fluxo de ideias, cada um formará a sua própria, sem nem mesmo perceber como.
Frequentemente, os governantes são acometidos da ilusão de que têm o poder de controlar esse fluxo de ideias, de modo que somente as “boas ideias” possam circular. Trata-se, como disse, de mera ilusão. “Se eles se calarem, as pedras gritarão”, disse Jesus, em uma passagem em que avisa aos fariseus que sua tentativa de controlar as mentes dos discípulos é vã.
As “Big Techs” são a bola da vez na tentativa de controlar o livre fluxo de ideias. Sim, há crimes cometidos com o suporte das redes sociais, assim como havia crimes antes do advento das redes sociais. O nazismo e os tiroteios em escolas não nasceram com as redes sociais. Controlar as redes sociais não fará com que as pessoas acreditem mais nas vacinas ou no processo eleitoral. Quem não quer acreditar continuará não querendo acreditar, faça o que fizer o governante de plantão. As ideias são como água, passam por qualquer fresta. A mente das pessoas é incontrolável.
1984 é somente uma fábula. Ninguém, no final, amará o Grande Irmão contra a sua vontade.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, chegou à conclusão correta: toda essa discussão sobre a PL das Fake News é ociosa. No final, o STF e “outras agências do Estado” resolverão o problema. Ontem, o ministro Alexandre de Moraes já chamou na chincha os diretores das Big Techs. Daí para encontrar alguma alínea de nossa profícua Constituição que justifique multas e até prisão é piece of cake. Se até Flávio Dino, recém-chegado ao ministério, já encontrou uma forma de tascar uma multa de um milhão por hora ao Google com base no Código de Defesa do Consumidor (?!?), ao ministro do STF certamente não faltará criatividade.
Aliás, editorial do Estadão de hoje chama a atenção justamente para a invasão de competência do STF no caso da determinação do índice de correção do FGTS, assunto que deveria ser tratado pelo Legislativo.
A conclusão que chegamos é que tanto faz o que vai escrito na Constituição. No limite, poderia haver apenas um artigo, rezando algo assim:
Constituição do Brasil
Artigo único: é direito de todos os brasileiros serem felizes.
Parágrafo único: revogam-se todas as disposições em contrário.
Pronto. A partir daí, os luminares do STF decidiriam todas as questões com base no que acham que seja o belo, o bom e o justo. É basicamente isso que nos está dizendo o ministro da Justiça (não sem razão). Nesse mundo de Flávio Dino, a tarefa dos Congressistas se limitaria a aprovar emendas parlamentares, desde que cumprissem o mandamento de fazerem todos os brasileiros felizes. Senão, nem isso.
Chamou-me a atenção uma foto de uma matéria de O Globo, mostrando um gramado em frente ao Congresso, com mochilas escolares espalhadas. A legenda nos informa que se trata de um movimento (não nomeado) que teria colocado os objetos para “lembrar as vítimas dos massacres em escolas”, de modo a pressionar pela aprovação da lei das Fake News.
A foto, sem dúvida, é tocante, e parte do pressuposto de que os massacres em escolas têm relação com as redes sociais. Portanto, seria necessária a regulação das redes para que tragédias desse gênero fossem evitadas.
Estamos, obviamente, chocados pelos últimos eventos ocorridos (a facada na professora e o assassinato das crianças na creche). Mas, como qualquer correlação, precisa-se provar relação de causalidade entre os dois eventos. Aliás, antes disso até, é necessário que se prove a correlação.
No Brasil, felizmente, não temos um número de eventos desse tipo que nos permita fazer qualquer inferência. Vamos, então, para os EUA, a terra das redes sociais e dos tiroteios em escolas. O Washington Post publicou recentemente uma estatística com todos os eventos desse tipo desde o massacre de Columbine, em 1999. Além disso, o site Our World in Data tem uma estatística de quantos lares americanos usam redes sociais desde 2005 (o Facebook é de 2004) até 2019. Fiz então um gráfico com as duas variáveis para tentar observar alguma correlação (gráfico 1).
Podemos observar algumas coisas interessantes:
1) Houve 359 tiroteios entre 1999 e 2022, dos quais 58 (16%) ocorreram sem que houvesse a existência de redes sociais.
2) Há uma certa estabilidade no número de eventos entre 2005 e 2016, mesmo com a explosão do número de usuários de redes sociais.
3) Há um salto no número de eventos a partir de 2018 (com exceção de 2020, ano da pandemia), depois que o número de usuários se estabiliza no patamar atual.
A relação entre número de eventos e número de usuários, se houvesse uma correlação perfeita, deveria ser constante no tempo. O que observamos, no entanto, é que há grande variação ano a ano (gráfico 2), variando entre 0,03 e 0,22 eventos para cada milhão de usuários (tirei os anos de 2004 e 2005 pois os números ficam distorcidos pelo pequeno número de usuários).
Por fim, a correlação (gráfico 3). Podemos observar que há uma leve tendência de aumento de eventos na medida em que aumenta o número de usuários: são 5 eventos adicionais para cada 100 milhões de usuários adicionais (p-value desse coeficiente de 0,6%). O r2 é de 0,3. Portanto, há alguma correlação, ainda que fraca. Falta, obviamente, provar a causalidade.
Esse foi um exercício simples, feito em alguns minutos, sem muito rigor. Seria interessante ver algo mais elaborado, considerando outras variáveis que poderiam explicar os eventos. De qualquer modo, parece uma apelação sensacionalista, que tem como objetivo usar essa suposta e longe de estar provada causalidade para mexer com os sentimentos da opinião pública e dos deputados. Mas essa manipulação o Ministério da Justiça e o STF não irão multar.
Para depois não me acusarem de estar criticando sem ter lido o texto do PL das Fake News, sim, eu li. Algumas coisas que me chamaram mais a atenção:
1) O art. 6, inciso I, prevê responsabilidade solidária dos provedores quando houver “danos causados por conteúdos gerados por terceiros, cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade”. Imagine que uma corretora de bitcoins coloque um anúncio em jornal de grande circulação, vendendo serviços de corretagem da moeda eletrônica. Essa corretora quebra, e leva a poupança de milhares de investidores. O jornal é solidário com os “danos causados”? Se não, por que os provedores seriam?
2) O art. 7 é um primor de imprecisão, onde cabe literalmente qualquer coisa. O artigo determina o dever de os provedores “identificarem, analisarem e avaliarem diligentemente os riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento dos seus serviços e dos seus sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos”. O parágrafo 2o do artigo diz que essa “identificação, análise e avaliação” dos “algoritmos” deve ocorrer para mitigar o risco de propagação de “conteúdos ilícitos”, “ameaças ao Estado Democrático de Direito”, e outros crimes, incluindo o bullying. O problema desse tipo de artigo é que parte do pressuposto de que “conteúdos ilícitos” se propagam de maneira mais fácil do que outros. Como os provedores provariam que não é assim? E se de fato for, como o poder público prova que é assim? O parágrafo primeiro remete a uma “regulamentação posterior” esse imbróglio.
3) O art. 12 prevê um tal “protocolo de segurança”, que seria instaurado quando configurada a “iminência” dos riscos descritos no art. 7 ou a negligência ou insuficiência da ação do provedor. Não está claro o que seria esse tal “protocolo de segurança”, pois suas etapas e objetivos são remetidos para regulamentação posterior. Somente sabemos, pelo art. 13, que durante a vigência do tal “protocolo”, os provedores respondem solidariamente por todos os danos provocados por terceiros, referentes aos riscos apontados no art. 7, desde que os provedores tenham conhecimento de tais riscos. E, para terem conhecimento, basta que um “internauta” avise a plataforma de alguma forma (art. 16)
Acho que o grande e insanável problema dessa legislação é tentar transformar as plataformas em braços do Estado. Sim, há crimes anunciados nas plataformas, há crimes realizados com a ajuda das plataformas. As plataformas, já hoje, procuram realizar os melhores esforços para que isso não aconteça, mas é virtualmente impossível garantir 100% de eficácia. Fazer com que as plataformas sejam punidas solidariamente com o criminoso é o mesmo que punir o policial (ou a corporação) da mesma forma que o criminoso por não ter evitado o crime. Pense: são milhões de postagens todo santo dia, como gerenciar isso, a ponto de evitar 100% dos crimes?
O que as plataformas vão fazer se essa legislação passar? Não tendo acesso aos economics de Google, Facebook e cia, meu chute é que farão uma estimativa da perda monetária em função dessas novas obrigações (que nem sequer estão claras, tem muita coisa a ser definida em regulamentação posterior), e tomarão uma decisão empresarial: cobrarão por serviços antes gratuítos, entubarão o prejuízo ou simplesmente deixarão de operar no país.
Se as plataformas procurarem minimizar o prejuízo sendo mais sensíveis aos conteúdos e derrubando mais posts, poderá haver uma diminuição do interesse dos usuários. Este trade off deverá ser objeto de análise das plataformas também.
Enfim, claro que todos gostaríamos de um mundo bom, belo e justo, em que o crime fosse combatido implacavelmente onde quer que estivesse. O problema é que a realidade é bem mais complexa do que a boa intenção de uma lei. Exigir que as plataformas combatam o crime é transferir para entes privados um dever estatal. Os moderadores de conteúdo se tornariam policiais, com o agravante de que, se falhassem em sua missão, seriam tão culpados quanto os criminosos. Pode ser que esta seja a única solução, mas desconfio de que estão jogando o bebê fora junto com a água suja da bacia.