A natureza do discurso político

“Sem provas, Michele diz que governos de esquerda vão ‘perseguir os cristãos’ no País”.

É muito curioso o uso da expressão “sem provas” nesse contexto. “Provas” se exigem de coisas que aconteceram no passado. Por exemplo, quando Bolsonaro afirma que “houve fraude nas eleições de 2018”, é mais do que legítimo exigir provas da afirmação.

Mesmo em relação a planos futuros frustrados, as provas referem-se aos preparativos antecedentes. Por exemplo, um plano para soltar o líder do PCC foi frustrado, e os envolvidos, presos. O plano não foi executado, mas foram encontradas provas concretas de sua execução.

Exige-se de Michele “provas” de que há um plano concreto de “perseguição de cristãos”. Como se esse tipo de coisa contasse com um “plano de execução”. A “prova”, no discurso político, é de outra natureza. Trata-se de dedução lógica: se o governo da Nicarágua está fechando igrejas e prendendo religiosos, e se Lula simpatiza com o regime de Daniel Ortega, então, deduz-se que, se as condições se repetirem aqui, um governo do PT faria a mesma coisa. Pouco importa se se trata de um possibilidade mais do que remota, pois o Brasil não é a Nicarágua. O que importa é que a “prova” existe para fins de discurso político.

O jornalista, que deve ser colaborador da agência Lupa, exige do discurso político as mesmas regras da justiça penal. Não, meu caro jornalista, não é assim que funciona. A verossimilhança já serve como “prova” do discurso político. Michele não está mentindo, como quer fazer supor a expressão “sem provas”. Michele está apenas dizendo o que acha que vai acontecer. E isso é perfeitamente legítimo. Lula e o PT é que precisam explicar a sua proximidade com o governo nicaraguense.

Democracia antisséptica

Já contei essa história, mas vou contar novamente, porque tem muita gente nova por aqui.

Na época das eleições de 2014, eu tinha um colega de trabalho que era originário do interior da Bahia. Durante a campanha, ele foi visitar a família, e voltou contando que viu um carro de som percorrendo as ruas da pequena cidade, com o locutor informando a população que Aécio Neves, se eleito, iria acabar com o Bolsa Família. Não precisa de zapzap pra espalhar feiquenius.

Ainda naquela campanha, um filmete que ficou famoso mostrava a comida sumindo da mesa de uma família pobre, caso a proposta de autonomia do Banco Central, defendida por Marina Silva, fosse aprovada.

Isso se chama discurso político. No mundo ideal de Pedro Doria, no entanto, não há espaço para o discurso político. Na democracia de Pedro Doria, os candidatos devem passar pelo escrutínio das agências verificadoras de fatos, que definirão o que pode e o que não pode ser dito. É a democracia da censura do bem.

Pedro Doria, no entanto, também faz um discurso político. Sua afirmação de que Bolsonaro tem “uma máquina publicitária exclusivamente baseada na mentira” não passaria pelo filtro de uma agência verificadora de fatos. Aliás, a menção ao grupo de Zap dos empresários bolsonaristas é bem significativa: precisamos tomar cuidado com o que escrevemos até em grupos fechados. Essa é a democracia segundo Pedro Doria.

Os candidatos “democratas” (Lula, Ciro e Tebet) precisam, segundo Pedro Doria, reagir à desinformação. Como se fossem paladinos da verdade e do bem, e não políticos que lançam mão, o tempo inteiro, de narrativas que não passariam pelo crivo de agências verificadoras. Acho Bolsonaro um pulha (pra escrever um adjetivo aceitável nesse espaço família). Mas de quem tenho realmente medo é desses paladinos do bem, que querem construir uma democracia antisséptica, onde a política não tem vez.

Só vejo verdades

Notinha de hoje na Coluna do Estadão nos informa que Manuela d’Ávila não gostou nada de um painel em um edifício de Porto Alegre. Chama de “mentiras” o que está lá escrito e vai além: diz que é um crime e pergunta quem é o criminoso que estaria pagando por aquilo.

Manuela d’Ávila foi aquela candidata que se deixou fotografar em uma missa em 2018, quando era candidata a vice-presidente. Aquilo sim era verdade. Mentira é dizer que as esquerdas apoiam a descriminalização do aborto, o desencarceramento, o desarmamento da população, a escolha livre de gênero, a invasão de propriedades improdutivas.

Talvez o único ponto de discussão fosse o apoio à censura. Ditaduras de esquerda e de direita censuram, então trata-se mais de um problema das ditaduras do que das esquerdas. No entanto, o próprio tuíte da ex-deputada é um pedido de censura ao debate político legítimo. Os adversários do presidente o chamam de genocida e golpista, em um discurso político onde procuram situar Bolsonaro em um determinado campo de ideias. Manuela, por outro lado, quer a censura, pois prefere uma missa fake a enfrentar as consequências eleitorais de suas próprias ideias.

Gabinete do Amor

Enquanto Bolsonaro contamina a eleição com o seu Gabinete do Ódio, que espalha fake news através do Telegram com a ajuda dos russos, o PT contra-ataca, montando o seu Gabinete do Amor, para distribuir true news também através do Telegram. Quem disse que o Telegram não pode igualmente servir ao bem?

Se o objetivo de Bolsonaro é destruir a democracia, o objetivo do PT claramente é defender os valores do Estado Democrático de Direito. Por isso, certamente não veremos os juízes do TSE emitindo opiniões preocupadas com o rumo da democracia brasileira diante dessa tática digital do PT.

Os nossos russos são melhores que os deles

Ontem foi o ministro Edson Fachin. Hoje é o colunista de tecnologia Pedro Doria. No centro das atenções, os temidos “hackers russos”, que teriam o poder de mudar resultados eleitorais.

Que parcela relevante de ataques cibernéticos no mundo partam da Rússia e de outros países do leste europeu não é segredo para ninguém. São verdadeiras quadrilhas especializadas. Mas o que isto tem a ver com eleições? Como em toda boa teoria da conspiração, o link entre uma coisa e outra fica a cargo da imaginação de quem acredita “que alguma coisa tem aí”.

Da mesma forma que uma grande conspiração orquestrada por “forças globalistas” foi a responsável pela eleição de Biden em 2020, Putin e os “hackers russos” estariam por trás da eleição de Trump em 2016. A não ser que fosse pela manipulação das urnas em si, fica difícil entender como “hackers” teriam o poder de mudar um resultado eleitoral. Mandar “fake news” em massa não parece ser algo que demande a ação de hackers. E, convenhamos, “fake news” estão à disposição e são usadas por ambos os lados da disputa.

No Brasil, como o TSE nos garante que as urnas são seguras e à prova de hackers, não se consegue entender direito a que Pedro Doria se refere. Quem lê a coluna à procura de evidências dessa influência em outras eleições sai de mãos vazias. É a típica sensação de se ler uma boa teoria da conspiração.

De verdade, a única influência de hackers na eleição brasileira foi a dos que invadiram as contas do Telegram de Moro e dos procuradores da Lava-Jato. As mensagens vazadas ilegalmente serviram como base (!) para a decisão do STF de soltar Lula e torná-lo elegível. Nesse sentido, as eleições brasileiras foram sim influenciadas por um ataque hacker. Mas como não são russos e amigos de Bolsonaro, tudo bem, está valendo.

Agora estou tranquilo

Agora estou tranquilo. Posso ler todos os conteúdos que recebo no Facebook, WhatsApp, Instagram, YouTube, Google, TikTok, Twitter e Kwai sem medo de estar sendo manipulado pelas forças do mal. É impagável essa sensação de paz ao saber que tudo o que vou ler é verdadeiro e bom, de acordo com critérios que eu mesmo não seria capaz de elaborar com a minha mente limitada. Que bom que existe o TSE para nos proteger desses disseminadores do mal.

Ah, e sim, não vou sequer instalar esse tal de Telegram, onde o esgoto corre a céu aberto e os guardiões da pureza e da verdade não alcançam. Nem sequer respondem aos e-mails do presidente do TSE! Será que eles sabem com quem não estão falando? Não, não vou baixar. Vai que eu me contamine e passe a acreditar naquilo que eu não deveria acreditar. Cruz, credo!

Alinhando-se a gigantes da democracia

Fui dar uma olhada a respeito da prática de bloquear aplicativos e sites ao redor do mundo. Há alguns casos.

A China é, de longe, o país que mais bloqueia o acesso a aplicativos específicos. O motivo não poderia ser outro: segurança nacional, ameaçada por ideias subversivas.

O mesmo ocorre em Cuba, que bloqueou o acesso às redes sociais durante os últimos protestos.

O governo da Índia vem bloqueando o acesso a aplicativos chineses, como forma de se proteger de “roubo de dados”.

O mesmo fez Donald Trump no apagar das luzes de seu governo, ao emitir uma ordem executiva para bloquear oito aplicativos chineses de pagamento. O motivo: tráfego de dados sensíveis e que, supostamente, ficariam disponíveis para o governo chinês. Biden revogou essa ordem em junho último, mas seu governo continua discutindo o que fazer com essa fragilidade.

Notem a diferença entre os casos de China e Cuba e os casos de India e EUA. Enquanto nestes últimos há uma preocupação com a exposição de dados para um governo hostil, nos primeiros o que há é pura e simplesmente censura de conteúdo contra seus próprios cidadãos.

Com relação especificamente ao Telegram, a notícia é de que o aplicativo já foi bloqueado em 11 países.

Na matéria, obviamente, não há uma lista desses 11 países. O número está lá somente para passar a impressão de que não estamos sozinhos, a oposição ao Telegram está se tornando generalizada. Mas não é à toa que a lista de países não foi divulgada pela reportagem.

Dando um Google, descobrimos que essa lista de países preocupados em proteger suas democracias incluem Rússia, Irã, Ucrânia, China, Cuba, Bahrein, Belarus, Paquistão e Indonésia. A justiça brasileira, ao ameaçar bloquear o Telegram, se alinha a esses gigantes da democracia. Parabéns aos envolvidos.

Segurando água com as mãos

Certamente você já tentou segurar água com as mãos em formato de concha. É questão de (pouco) tempo para a água desaparecer entre os dedos.

Essa tentativa do TSE de controlar os aplicativos de mensagem se assemelha a esse fenômeno. As mensagens chegarão ao seu destino, o que quer que o TSE faça ou deixe de fazer. Sempre foi assim ao longo da história.

Apenas para ficar nos casos mais famosos, Hitler não precisou de um aplicativo de mensagens para ganhar corações e mentes da maioria do povo alemão, assim como Stálin não precisou do WhatsApp ou do Telegram para manter toda uma sociedade sob o regime do medo durante vários anos. Claro que se essas ferramentas estivessem disponíveis eles as usariam. Mas a história mostra que não são essenciais. O que importam são as ideias, e essas se espalham como a água, por mais que se tente segurá-las.

Para não dizer que usei apenas exemplos extremos, grandes movimentos cívicos brasileiros, que tinham como objetivo a derrubada de regimes, como a marcha da família com Deus pela liberdade ou os comícios das Diretas Já, não precisaram de aplicativos de mensagens para atraírem apoio.

Claro que os aplicativos de mensagens potencializam o “problema” do compartilhamento de ideias, pois permitem um alcance maior e mais rápido. É um pouco como comparar carroças com carros, ambos servem para chegar do ponto A até o ponto B, mas o carro chega mais rápido. Mas isso não muda a natureza da coisa, como a história demonstra. Mesmo porque, as mesmas ferramentas estão disponíveis para todos. Então, o que vale, o que continua valendo, sempre, são as ideias.

E este é o ponto fundamental: grande parte das pessoas forma sua opinião e apenas DEPOIS busca informações (verdadeiras ou falsas) que confirmem o seu ponto de vista. Posso dizer que sou veterano de redes sociais. Nunca vi, em todos esses anos, uma única pessoa mudar de opinião em discussões no Facebook ou em grupos no WhatsApp. Pelo contrário, parece que as opiniões iniciais se cristalizam ainda mais depois dessas discussões. Assim, as pessoas filtram as informações que querem receber, não são a página em branco idealizada pelos ministros do TSE. Por isso, controlar os aplicativos de mensagem, além de ser uma tarefa de Sísifo, é inútil.

Por fim, não deixa de ser curioso o presidente do TSE, que é também ministro do STF, levantar o problema da falta de representante do Telegram no país apenas em relação às eleições.

O Telegram pode ser (e certamente é) usado por contraventores para planejar os seus crimes. Esse tipo de uso, no entanto, não chama a atenção do STF, que nunca levantou o problema da falta de representante do aplicativo no Brasil. O que não pode é servir de canal para feique nius durante as eleições. Pensando bem, para um STF que julga com base em mensagens hackeadas ilegalmente do próprio Telegram, está tudo muito coerente.

Narrativa ou fake news?

Notinha de hoje nos informa que o deputado Fausto Pinato denunciará à Polícia Federal sites bolsonaristas por espalharem “fake news” a seu respeito.

Eu não assisti aos vídeos a que o nobre deputado se refere. Mas quando se dá uma notícia desse tipo, o que se espera, no mínimo, é que se descreva, da melhor maneira possível, o crime cometido. Portanto, o jornalista deve ter escolhido a coisa mais escabrosa que conseguiu encontrar nos vídeos. Ou, pelo menos, deve ter mencionado aquilo que mais contrariou o deputado, segundo o próprio.

Trabalhando com essa hipótese bastante plausível, concluímos que a fake news mais escabrosa, aquela que enfureceu o deputado, foi a insinuação de que o parlamentar estaria trabalhando para “vender o Brasil para a China”.

Bem, não precisa ser um Sherlock Holmes da internet para encontrar acusações de que o governo Bolsonaro estaria “vendendo o Brasil” ao tocar um programa de privatizações. Abaixo estão três exemplos, dois de sites da órbita petista e um do insuspeito El País, campeão da democracia. Este tipo de acusação é clássica na narrativa da esquerda e foi usada contra todos os governos quando o PT estava na oposição.

Agora, temos a novidade de que uma narrativa política pode ser alçada ao status de “fake news”. Vamos ver como isso se desenvolve. Curioso para ver o STF derrubar sites usados para propagar narrativas políticas. Não deveria sobrar um em pé.

A mamata da Rouanet

O Estadão mantém uma seção de “fact checking”, em que classifica as notícias que circulam na internet em três categorias: verdadeiro, enganoso ou falso. A notícia de que os artistas estariam fulos da vida com o governo Bolsonaro porque “a mamata da Lei Rouanet” teria acabado é classificada como enganosa. Ou seja, há elementos de verdade, mas a notícia leva a conclusões falsas.

Pra não variar, o jornalista faz um trabalho bem meia boca. Até fez uma pesquisa, descobrindo que shows com Ivete Sangalo (o alvo dos posts bolsonaristas) foram patrocinados com recursos recebidos ao amparo da Lei. Mas afirma, candidamente, que os recursos não foram diretamente para a cantora, mas para a empresa de shows. Sério isso? A cantora então fez a sua performance sem receber nada? Realmente…

A checagem peca de duas formas, uma mais conceitual e outra mais prática. Do ponto de vista conceitual, esses posts são falsos porque os artistas, de maneira geral, são contra Bolsonaro no matter what. É uma questão de “lado”. Mesmo que as verbas da Lei Rouanet fossem triplicadas, Ivete Sangalo ainda assim incentivaria o coro “fora Bolsonaro” em seus shows.

A parte prática, óbvia, e que faltou no levantamento do jornalista, é comparar o financiamento cultural pela Lei Rouanet ao longo dos anos e compará-lo com o montante financiado durante o governo Bolsonaro. Houve efetiva redução? A resposta, aparentemente, é não.

Em reportagem de dezembro de 2018, um levantamento patrocinado pelo ministério da Cultura e realizado pela FGV comemorava o fato de que, para cada R$1,00 investido ao amparo da Lei Rouanet, R$1,59 havia voltado para a sociedade.

Essa mesma reportagem nos informa que esse montante que “retornou” para a sociedade (discutiremos esse conceito em outro post), totalizou R$49,8 bilhões entre 1991 e 2018. Fazendo uma regrinha de três, temos um montante total investido sob a Lei de R$31,3 bilhões. Considerando-se 27 anos, temos uma média anual de aproximadamente R$1,2 bilhões (valores já atualizados pela inflação do período). Pois bem, o governo Bolsonaro liberou R$4,9 bilhões desde o início do seu governo, ou R$1,6 bilhão ao ano. Acima, portanto, da média histórica. Infelizmente, não encontrei os dados ano a ano, o que poderia acrescentar detalhes interessantes a essa história.

Resumindo: Bolsonaro não só não acabou com a Lei Rouanet, como liberou mais dinheiro do que governos anteriores. Portanto, Ivete Sangalo não incentivou as vaias a Bolsonaro porque “a mamata acabou”. O post é falso nesses dois sentidos, mas nenhum deles foi levantado pela agência de checagem.

Prometo um outro post para discutir o tal “retorno” de 59% (R$1,59 para cada R$1,00 investido) dos incentivos da Lei Rouanet.