As críticas que fortalecem o projeto de reforma tributária

O economista Felipe Salto presta um grande serviço à causa da reforma tributária, ao listar claramente quais são as suas críticas ao texto da PEC 45 (que, diga-se de passagem, ninguém conhece ainda, o relator ainda não divulgou por estar em negociações). As críticas, portanto, referem-se às ideias básicas que estão sendo discutidas. O serviço que Salto presta é mostrar que as críticas não têm fundamento na realidade. Vejamos.

A primeira e principal, que ocupa boa parte do artigo, refere-se ao Conselho Federativo. São três críticas, todas igualmente fracas: 1) não impediria que as empresas fraudassem o sistema, emitindo notas frias para se creditarem; 2) somente um Fisco estadual atuante poderia evitar as fraudes, mas os fiscos estaduais desaparecerão e 3) um mecanismo desse tipo não seria necessário para mitigar o risco de crédito no repasse de impostos entre estados.

As críticas 1 e 2 não se sustentam. Fraude sempre haverá, qualquer que seja o sistema. Se houvesse um sistema à prova de fraudes, já teria sido adotado, pode ter certeza. É por isso que existe fiscalização, que continuará existindo. Não sei de onde veio a ideia de que os fiscos estaduais serão substituídos pelo Conselho Federativo. O grande avanço do novo sistema é o sistema de compensações automáticas entre estados, e entre governos e empresas. É esse mecanismo automático que é criticado pelo economista como fonte potencial de fraudes. No entanto, trata-se de um tributo à honestidade da grande maioria das empresas envolvidas. Ao submeter o ressarcimento do crédito tributário a uma fiscalização (só recebe depois do fisco ver se está tudo certo), a proposta de Salto mantém o calvário que empresários enfrentam para empreender no país, em que créditos tributários são uma miragem.

O ponto 3 refere-se ao risco de crédito entre estados. Bem, se já vimos estados atrasando salários e aposentadorias de funcionários públicos, imagine reter indevidamente repasses de impostos para outros estados. Ainda mais com um STF tão, digamos, sensível à causa dos estados mais pobres. A crítica de Salto, com direito a bater no peito, ofendido, afirmando que São Paulo jamais reteria créditos de outros estados, não leva em consideração a história econômica do Brasil.

A segunda crítica refere-se à alíquota do IBS, que seria determinada por modelos estatísticos. Bem, se vamos ter um imposto que vai substituir dois (o ICMS e o ISS), não tem outro jeito, a não ser estimar uma alíquota. Caso contrário, continuaremos com os dois impostos atazanando a vida dos empresários. Para mitigar esse problema, o IBS começa pequeno e vai conviver durante alguns anos (5 anos é a proposta, até onde eu sei) com os outros impostos, de modo a calibrar o seu tamanho com calma.

A terceira e última crítica refere-se ao Fundo que vai ser disponibilizado pela União para bancar, por 10 anos, os incentivos já concedidos pelos estados às empresas. Salto chama isso de “previsão constitucional para a nefanda guerra fiscal”. Eu chamo de “respeito aos contratos”. Imagine você, empresário, que calculou o retorno de seu empreendimento com base no incentivo de um determinado estado, e uma outra lei se sobrepõe e diz que aquele incentivo já não existe mais. Esse dispositivo da RT está aí para proteger um contrato firmado.

Enfim, a cada vez que leio críticas detalhadas sobre o projeto da RT, mais me convenço de que o que se quer é manter o poder do Estado sobre a iniciativa privada. Todos os argumentos vão na direção de manter a discricionariedade de governadores e prefeitos, em detrimento do ambiente de negócios no Brasil. Esse projeto de reforma tributária é o que tem de mais liberal na praça. Não é à toa que vem encontrando tanta resistência.

A estatura do governante

No sábado passado, dia 24/06, comentei aqui um artigo de Mailson da Nóbrega, a respeito da reforma tributária, que criticava a pretensão de autonomia dos estados em detrimento de mais eficiência e produtividade.

Dois dias antes, 22/06, no mesmo Estadão, Felipe Salto havia feito um duro ataque ao Conselho Federativo, órgão a ser criado para a gestão do IVA. Eu havia lido o artigo de Salto, mas naquela momento ainda não havia percebido do que realmente se tratava. Destaco abaixo o trecho central do artigo, atacando a retirada da autonomia dos estados.

Mailson, dois dias depois, ataca o cerne da questão: é justamente a autonomia dos entes subnacionais que cria o pesadelo tributário em que vivemos e diminui a nossa produtividade.

Salto não diz explicitamente porque os estados fazem tanta questão de gerenciar seus próprios impostos. Aliás, nem se dá ao trabalho de definir o que seja “gerenciar”. Mas dá duas pistas em seu texto, ao apontar os problemas que o Conselho Federativo vem resolver: o risco de crédito dos entes subnacionais (um estado não repassar para o outro um crédito tributário) e a guerra fiscal entre estados. Para ambos, Salto sugere “punições severas”. Ora, e desde quando “punições severas” seguraram gestoras públicos? A LRF não impediu que estados virtualmente quebrassem, e depois encontrassem abrigo em um STF muito sensível a questões sociais. Um dos pilares do Plano Real foi justamente o fim dos bancos estaduais, ralos através dos quais os estados exerciam a sua autonomia. Ninguém pensou em substituir a privatização dos bancos estaduais por “punições severas”. A coisa só funciona com base na arquitetura da solução, não na base de leis punitivas, das quais o Brasil está cheio.

Salto sugere, ao invés da reforma tributária, uma reforma infraconstitucional do ICMS, mudando sua incidência da origem para o destino, e deixando assim, intacto, o manicômio tributário. Afinal, para que manter a autonomia, se não for para ter 27 diferentes legislações tributárias, que tanto infernizam a vida do empreendedor, principalmente o industrial? Tanto é assim, que o tal Fundo de Compensações que está sendo negociado entre União e Estados servirá justamente para compensar os efeitos do fim da guerra fiscal. Com a autonomia, os entes subnacionais poderiam continuar alegremente sua marcha batida para o precipício.

É triste ver o governador Tarcísio de Freitas liderando essa resistência dos estados. Em 1997, o “socialista” Mário Covas liderou, com não poucas resistências, o processo de privatização dos bancos estaduais, ele mesmo patrocinando a privatização do Banespa, e, alguns anos depois, a incorporação da Nossa Caixa ao Banco do Brasil. Hoje, o “liberal” Tarcísio de Freitas lidera no sentido oposto, o de manter o status quo que mina a nossa produtividade. A questão, como se vê, nao é ideológica, mas de estatura do governante.

Alquimia fiscal

Felipe Salto propõe uma solução definitiva para o problema dos precatórios: incluí-los na dívida pública e transformá-los em despesa financeira. A primeira parte é óbvia, a segunda é uma alquimia. Vejamos.

Em primeiro lugar, vamos relembrar o “problema dos precatórios”. Precatórios, como sabemos, são haveres de cidadãos e empresas contra o governo, resultado de processos transitados em julgado. Trata-se de uma despesa primária que o governo não fez no passado, a justiça julgou como devida, e agora precisa ser paga. Portanto, concordo com Salto, precatórios são dívida pública no momento em que nascem para o mundo. O problema é que consideramos como dívida pública somente a soma de todos os títulos públicos emitidos pelo Tesouro. Ao considerar os precatórios como “dívida pública”, os estamos equiparando a títulos públicos, e essa é uma parte da alquimia que Salto defende. Antes de avançar aqui, vamos continuar com a descrição do “problema dos precatórios”.

O principal “problema dos precatórios” não é a sua natureza, se é ou não dívida pública, mas o fato de que o seu pagamento sempre foi considerado uma despesa primária e, portanto, sujeito a regras fiscais, seja a produção de superávits primários, seja o teto de gastos, seja o novo arcabouço fiscal. E aí está a alquimia proposta por Salto: ao transformar os precatórios em dívida pública, seu pagamento não mais seria uma despesa primária, mas sim, seria classificada como uma “despesa financeira”. E, como sabemos, as despesas financeiras (com juros da dívida) estão longe do escrutínio do maldoso mercado. O mercado fica em cima só das despesas primárias. Assim, com essa alquimia, os precatórios ficariam a salvo do mercado, pressionando a dívida pública mas não o déficit primário, que é a principal métrica de sustentabilidade de dívida ao longo do tempo. A “solução” proposta pelo governo Bolsonaro foi jogar os precatórios em uma espécie de limbo: os precatórios atrasados (uma aberração jurídica) não são nem dívida pública e nem déficit primário, porque não são pagos. Então, de fato, precisa haver uma solução.

No entanto, a “solução” proposta por Salto tem um problema conceitual grave: confunde amortização de dívida com juros de dívida. Explico: a dívida pública nada mais é do que o resultado de despesas presentes que não são cobertas pelas receitas presentes. Essa diferença, que chamamos de “déficit primário”, é transformada em títulos públicos. Portanto, o estoque de títulos públicos nada mais é do que a soma de todos os déficits primários ao longo da história, acrescida dos juros. Há outras fontes de divida pública, como a compra de reservas internacionais e a capitalização de estatais, que não são considerados despesas primárias porque têm como contrapartida um ativo do outro lado.

Pois bem, o que Salto propõe é a equiparação do pagamento dos precatórios com o pagamento dos juros (despesa financeira). Mas o precatório não são os juros, o precatório é a dívida. Seria um caso esdrúxulo em que toda a dívida se transforma em despesa financeira. Repito: a despesa financeira são somente os juros pagos, o pagamento da dívida em si é amortização da dívida. Assim, o pagamento dos precatórios é amortização de dívida, não pagamento de juros. Portanto, pagamento de precatórios não pode ser equivalente a despesa financeira. Isso parece só um jogo de palavras, mas não é: a dívida pública, repito, tem sua origem em déficit primário ou compra de ativos, e a despesa financeira é o pagamento de juros sobre essa dívida. Não dá para os precatórios serem, ao mesmo tempo, dívida E juros (despesas financeiras).

Temos assim, como resultado dessa alquimia, a criação de um bicho fantástico: uma dívida do governo que não teve origem nem em despesa primária e nem da compra de ativos, e que se transforma 100% em despesa financeira. No limite, o governo poderia não pagar nenhuma de suas despesas primárias (aposentadorias, salários, etc), os interessados entrariam na justiça, essas despesas se transformariam em precatórios e, graças à alquimia proposta por Salto, aquelas despesas primárias se transformariam em despesas financeiras. Tudo seria, no final do dia, despesa financeira, fora do alcance das regras fiscais.

Concluindo: para transformar os precatórios em dívida pública, seria preciso emitir títulos da dívida e pagar os precatórios com esses títulos. Isso explicitaria a dívida representada pelos precatórios. Para isso, seria necessário classificar os precatórios como despesa primária, pois não há outra forma de emitir títulos públicos quando não se está comprando um ativo. Tentar uma “terceira via” para os precatórios, em que não seria nem despesa primária e nem compra de ativo é típico da alquimia malemolente brasileira. Seria melhor simplesmente tirar os precatórios da regra fiscal, com todas as consequências que disso advém, a tentar transformar a contabilidade pública em uma criatura fantástica.

Para quê controlar gastos?

Felipe Salto escreve novamente sobre a sua proposta de arcabouço fiscal, agora com mais detalhes. O controle se daria para o nível da dívida em relação ao PIB. Haveria uma meta mais ou menos frouxa até 2026 (crescimento de 9 pontos percentuais em relação ao nível de 2022), e depois uma convergência suave nos 10 anos seguintes para um nível ainda 2 pontos percentuais acima do nível alcançado em 2022, e cerca de 20 pontos percentuais acima do nível que tínhamos quando ganhamos o selo de Grau de Investimento. Salto chama esse ajuste de “esforço fiscal relevante”, mas sem um “ajuste brusco”, pois isso não seria possível.

Na sugestão se Salto, já levada ao ministro Haddad, há um teto móvel de gastos, ajustado por metade do crescimento do PIB dos 5 anos anteriores. A rigor, essa regra seria desnecessária, dado que a meta é a relação dívida/PIB, e que pode ser atingida simplesmente aumentando impostos ou recorrendo a receitas extraordinárias, como privatizações. Mas Salto sabe que a credibilidade de qualquer arcabouço, hoje, passa por alguma regra de controle de despesas. Os outros componentes da dinâmica da dívida (juros reais, crescimento do PIB e inflação) estão além do poder de controle do governo.

Aliás, esse é o problema fundamental da proposta de Salto, e que já tive oportunidade de comentar aqui: estabelecer como meta a relação dívida/PIB sem que o governo não consiga, efetivamente, controlar todas as suas variáveis, é o equivalente a não controlar nada. O mercado vai simplesmente ignorar essa meta e focar na regra de controle de gastos para fazer as suas contas. Resta saber qual será a reação de Lula quando lhe for sugerido um teto de gastos, mesmo que mitigado. Não à toa, Salto sugere um espaço de 9 pontos percentuais de crescimento da dívida/PIB até 2026. Assim, o governo Lula teria menor pressão de controle, e deixaria o abacaxi para o seu sucessor. O qual, claro, continuaria a empurrar o problema com a barriga. Claro, se a coisa toda não explodir antes.

Não me espantaria, inclusive, se houvesse, por exigência de Lula, uma espécie de “waiver” nessa nova regra do teto até 2026, desde que se cumprisse essa trajetória de dívida/PIB. Ha mais formas de atingir essa meta, além de controlar gastos. Por exemplo, baixando juros por decreto. Assim, as despesas com juros diminuiriam e, de quebra, teríamos inflação mais alta, o que também reduziria a relação dívida/PIB. Quem disse que, para controlar a dívida, precisa necessariamente controlar gastos?

Emagreça dormindo

Não é a primeira vez que leio um artigo comparando um possível novo arcabouço fiscal com o regime de metas de inflação. Felipe Salto volta ao tema, propondo um regime de “metas de dívida pública”, a exemplo do exitoso regime de controle da inflação.

Só tem um pequeno problema nessa comparação: o BC é independente, e coloca a taxa de juros onde acha necessário para levar a inflação de volta à meta. Salto não menciona a necessidade dessa agência independente, guardiã do valor da moeda. Quem será a autoridade que implementará os ajustes necessários para garantir a convergência da dívida pública para a meta? O próprio governo? O Congresso, muitas vezes sócio do Executivo na gastança? Será o lobo tomando conta do galinheiro?

Salto, assim como outros que defendem a ideia, quer um arcabouço suficientemente flexível para suportar choques, mas que conte com regras que conquistem a credibilidade do mercado. O sistema de metas de inflação não é isso. Nesse sistema, a credibilidade emana do Banco Central, não de regras. O BC não segue regras pré estabelecidas para determinar as taxas de juros. O BC avalia a situação a cada momento e determina o nível de juros que acha mais adequado. E, o mais importante, conta com credibilidade junto aos agentes econômicos, que acreditam que a autoridade monetária fará, a cada momento, hoje e no futuro, o necessário para trazer a inflação para a meta.

Na falta dessa autoridade crível, um sistema de “metas de dívida pública” precisaria contar com regras. E regras, por definição, devem ser não discricionárias para funcionar, ou seja, devem ser cumpridas independentemente da vontade de quem as implementa. E, por definição, e esse é o ponto importante, regras são regras. Regras “flexíveis” são flexíveis somente até um determinado ponto. Caso contrário, deixam de ser regras. Uma barra flexível para exercícios físicos tem a capacidade para se sobrar, mas só até certo ponto. Quando chega neste ponto, a barra (a regra) se torna rígida, e voltamos ao ponto inicial, em que o governo se vê às voltas com uma regra que não consegue cumprir. É só uma questão de tempo.

O que Felipe Salto e outros que escrevem na mesma linha querem é uma especie de dieta sem esforço. “Emagreça dormindo” é o nosso sonho de consumo. A comparação com o sistema de metas de inflação serve só para tomar emprestado verossimilhança de algo que funciona, sem que haja a mínima condição para implementar algo semelhante.

Em busca da âncora fiscal

Gosto do Felipe Salto. Acho que é um dos quadros mais bem preparados do país na área econômica, e pode vir a ocupar qualquer cargo nessa área no futuro. Mas, às vezes, acho que lhe falta a experiência de sentar-se em uma mesa de operações de uma tesouraria de banco ou de um fundo de investimento para entender a cabeça do credor da dívida pública. Tenho certeza que, em tendo essa experiência, ele pensaria duas vez antes de publicar a sua proposta de controle da dívida no Estadão de hoje.

O artigo começa com uma tese correta, mas inócua: a de que a Constituição de 1988 já traz os mecanismos de controle de dívida, não é preciso inventar mais nada.

Está correto. Mas no Brasil, sabemos que há dois tipos de lei: as que pegam e as que não pegam. No caso, a lei sobre limite de dívida foi dessas que não pegaram. E, neste caso, nem é por culpa do famoso “jeitinho brasileiro”. A exemplo do limite para a taxa de juros de 12%, também inscrito na Constituição Cidadã, o limite para a dívida pública é inexequível sem a quebra de algum contrato ou a intervenção no mercado de dívida. Limitar a dívida, por si só, poderia levar ao calote, pois os juros a aumentam.

Nos EUA há um limite de dívida. De vez em quando, vemos a ameaça de um shutdown nos serviços públicos porque a dívida está se aproximando do teto, até que o Senado aprova um “waiver” para a dívida subir até um novo patamar. Por que eles podem fazer isso lá e nós não podemos fazer isso aqui? Parece injusto. Só porque eles têm quase 250 anos de estabilidade democrática, sem nunca ter dado calote na sua dívida e poderem imprimir a moeda de reserva global, os credores não exigem deles a mesma disciplina que exigem do Brasil?

Voltemos ao nosso caso. Para que o limite da dívida não levasse a uma situação de calote ou a seguidos “waivers” que desmoralizariam a regra, Salto repete a proposta de um outro artigo seu: o limite da dívida levaria ao cálculo de um teto para os gastos. Voltaríamos, então, à situação atual, em que o teto da dívida substitui o teto de gastos como fator de tensão entre necessidade de gastos e disciplina fiscal. É neste ponto que Salto propõe uma inovação: as ”bandas” para o teto da dívida. O problema é que essa é uma “solução” que só empurra o problema com a barriga e, portanto, não é capaz de ancorar as expectativas do mercado. Vejamos.

Salto usa como exemplo as bandas de inflação que guiam a atuação do BC. Se a projeção da inflação futura está acima da meta, o BC eleva a taxa de juros, se está abaixo, diminui. Este sistema, chamado de “metas de inflação”, e introduzido no Brasil em 1999, tem sólida comprovação acadêmica e é usado com sucesso por inúmeros países. A sua premissa básica é que a inflação é fruto, em grande medida, das expectativas dos agentes econômicos. Se o BC, o guardião da moeda, tem credibilidade, os agentes econômicos sabem que, mais cedo ou mais tarde, a inflação vai cair, porque o BC vai agir para tanto. Não por outro motivo, a inflação projetada pelo relatório FOCUS, que reúne o palpite de bancos, fundos de investimento e consultorias, está por volta de 3% para 2024 em diante. E são esses agentes que formam os preços dos títulos públicos. Assim, o sistema de metas para a inflação, com o seu mecanismo de bandas, funciona com sucesso para ancorar as expectativas com relação à inflação futura e as taxas de juros de prazos mais longos.

Já para um sistema de “bandas de endividamento”, a questão é saber se é suficiente para ancorar as expectativas dos agentes econômicos com relação à trajetória da dívida. Não conheço literatura a respeito, mas desconfio que lhe falte ao menos um elemento para que funcione: a credibilidade. O BC, como emissor da moeda, conquistou sua credibilidade ao longo das últimas décadas e, recentemente, mais um pilar foi assentado, com a aprovação da sua independência formal. À União, como emissora da dívida, lhe falta essa credibilidade, que é a verdadeira âncora das expectativas.

A União leva uma vantagem sobre o BC: ao contrário da autoridade monetária, que tem apenas um instrumento indireto para lidar com a inflação, a taxa de juros, a União tem o poder de afetar diretamente o tamanho da dívida, através do controle dos gastos. Por isso, o teto de gastos é o sistema mais crível para controlar a dívida, dado que é matemático: se o governo controlar seus gastos, a dívida estará automaticamente sob controle. Ocorre que o teto se mostrou inviável politicamente. Então, se inventam maneiras de calcular o teto que pareçam “suficientemente flexíveis” para os políticos e “suficientemente inflexíveis” para os credores da dívida. Um pouco como aquelas dietas “sem sacrifício”, em que a pessoa continua tendo o prazer de comer mas o corpo entende que o número de calorias milagrosamente caiu.

É neste ponto que me parece faltar um pouco de experiência de “mesa de operações” para Felipe Salto. Um sistema como o proposto, cheio de “buracos” por onde podem passar as despesas necessárias para atender às necessidades do povo brasileiro, não tem a mínima chance de ancorar as expectativas dos agentes econômicos. Se esta é a solução política possível, a verdade é que teremos taxas de juros que correspondem a essa solução política possível. Isso, no cenário benigno, em que o BC continua no controle da situação. No maligno, teremos um descontrole inflacionário.

Mais uma proposta para o teto de gastos

Felipe Salto, atual diretor-geral da Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado Federal, entra no debate sobre como reancorar as expectativas sobre a trajetória da dívida pública. A mudança casuística da sua regra de cálculo no ano passado e o discurso do PT contra o teto demonstram que a regra atual está morta, faltando somente o enterro.

Ao contrário de outra proposta que já tive oportunidade de comentar aqui, que propunha como parâmetro um etéreo “PIB corrigido pelo ciclo econômico”, além de prever exceções – por exemplo, investimentos- a proposta de Salto tem o mérito de ser simples, direta e de fácil entendimento por todos: estabelecida uma determinada meta de superávit primário necessária para atingir uma certa relação dívida/PIB, calcula-se o teto de gastos com base em uma determinada previsão de receitas. Ele dá um exemplo numérico, reproduzido abaixo.

A ideia, como eu disse, é boa por ser simples e de fácil entendimento. No entanto, como sempre, o diabo mora nos detalhes. Dois detalhes, para ser mais exato.

O primeiro é saber qual a condição limitante, ou seja, aquela que não será mudada aconteça o que acontecer. Digamos que haja uma frustração de receitas. O que seria mudado, o tamanho dos gastos ou a meta de superávit primário? Tomando o exemplo usado por Salto: se as receitas somarem R$ 1.800 bilhões ao invés dos R$ 2.000 bilhões previstos no início do ano, o ajuste se daria pela diminuição dos gastos para R$ 1.750 bilhões ou do superávit para menos R$ 150 bilhões? A resposta técnica seria manter o superávit e cortar gastos. A resposta política já sabemos qual é.

O segundo detalhe, que na verdade é O problema central de todo esse imbróglio, é que a proposta de Salto, para funcionar, precisa ser ainda mais draconiana que o atual teto de gastos. A previsão de déficit primário para este ano é de 0,7% do PIB. Para apontar para um superávit primário em um horizonte de tempo explícito e crível, seria preciso fazer um ajuste fiscal ainda maior do que o atual. A solução política, obviamente, será apontar para um ajuste beeeeeem suave, a lá Macri na Argentina.

A grande sacada do atual finado teto de gastos é tirar da mão dos políticos e da sociedade a decisão sobre os parâmetros que comandam a trajetória da dívida. A regra, se seguida, garante matematicamente, se o país tiver crescimento positivo, que produziremos superávits primários e estabilizaremos a dívida em algum momento no futuro. Para um país como o Brasil, que cresce pouco (1% ao ano), este ajuste é bem suave, mas aceito pelos credores, porque a regra garante a convergência. Mas mesmo esse ajuste suave não se mostrou suportável para os políticos e para a sociedade, que querem retomar para si o comando dos parâmetros da dívida.

A proposta de Salto permite a retomada desse comando, ao deixar para a decisão discricionária do Congresso como vamos controlar a dívida, se por aumento de impostos ou diminuição de despesas, e em que velocidade vamos colocar a casa em ordem. Alguém dirá que esta é a coisa certa a fazer. Afinal, é a sociedade, através de seus representantes, que deve decidir sobre como e quando pagaremos a nossa dívida. Justo. Só falta combinar com os russos.

As críticas de Guedes à Instituição Fiscal Independente

A IFI, Instituição Fiscal Independente, é um instituto ligado ao Senado Federal. Foi criada em março de 2016 e instalada em novembro do mesmo ano, como resposta ao trauma causado pelas “pedaladas fiscais” do governo Dilma.

Quem acompanhava de perto as contas do governo na época sabia que algo não estava se encaixando. Mansueto Almeida, por exemplo, mantinha um blog em que apontava as incongruências e bombas-relógio que estavam em gestação nas contas públicas da época. Com o objetivo de não depender da boa vontade de especialistas eventuais, o Senado, seguindo as melhores práticas internacionais, estabeleceu a IFI, que conta com diretores com mandatos fixos. O economista Felipe Salto foi escolhido para ser o primeiro diretor-executivo em um mandato de 6 anos, em função de seu extenso currículo em finanças públicas.

Ontem, o ministro da economia, Paulo Guedes, ao ser perguntado sobre uma determinada previsão da IFI, atacou a reputação de Felipe Salto.

Vou destacar aqui três afirmações:

  1. “A IFI disse que nós iríamos furar o teto de gastos no primeiro ano”
  2. “[A IFI] disse que nós iríamos furar o teto no segundo ano”
  3. “a IFI disse que a dívida iria chegar a 100% do PIB”.

Segundo Guedes, as três previsões se comprovaram furadas. “Previsões muito fracas” e “um economista que tem errado dez em cada dez”, foram as palavras usadas.

Fui verificar se, de fato, a IFI, sob a liderança de Felipe Salto, havia feito essas previsões. Para tanto, pesquisei os Relatórios de Acompanhamento Fiscal, produzidos mensalmente pelo Instituto. Já aviso que são trabalhos densos, muito bem elaborados.

A primeira menção ao teto de gastos durante o governo Bolsonaro ocorre no relatório de maio de 2019. Podemos ler o resumo a seguir:

Podemos observar que não há projeção de rompimento do teto de gastos até 2022. Portanto, a IFI não “previu” que o teto seria furado “no primeiro ano” e nem “no segundo ano”. Pelo menos, não nesse primeiro relatório.

O trecho a seguir, do mesmo relatório, mostra um pouco como é a metodologia de trabalho de qualquer economista que faz previsões:

Observe como o economista desenha um cenário e vai adaptando-o na medida em que novas informações vão sendo conhecidas. Existe um mal-entendido sobre o trabalho do economista: ele não é pago para “acertar” o cenário, não tem uma “bola de cristal” para isso. O economista apenas aponta a direção para onde o barco está indo. Se, no meio do caminho, o barco muda de direção, ele refaz as suas premissas. Paulo Guedes sabe disso, mas, acuado, atira no mensageiro. Sigamos.

No relatório de setembro/19, a IFI novamente não prevê furo do teto:

No relatório de novembro, a IFI volta a prever o “furo” do teto de gastos para 2021 (não 2019 e nem 2020). Trata-se do “cenário-base”. No cenário otimista, o teto seria rompido somente em 2024 e, no pessimista, também em 2021. Como podemos observar no trecho abaixo do mesmo relatório, não havia risco de descumprimento do teto de gastos em 2020.

Portanto, podemos observar que as duas primeiras afirmações de Guedes não tem sustentação nos fatos. Vejamos a terceira.

Com o surgimento da crise provocada pela pandemia, não fazia mais sentido falar em teto de gastos em 2020, pois os gastos foram muito acima do teto em função do auxílio emergencial. E quanto à dívida? A primeira menção da IFI ao tamanho da dívida foi no relatório de abril/2020, ainda com muita incerteza:

Note que estamos longe dos 100% do Paulo Guedes neste momento. Mas, como disse, havia muita incerteza, e esse número seria mudado ao longo do tempo. No relatório de maio, esta previsão havia subido para 86,6% do PIB, em junho uma grande revisão para 96,1% do PIB.

Esta grande revisão se deu porque houve uma grande revisão para baixo do PIB naquele momento (maio), no olho do furacão da crise. Esta previsão somente seria mudada em novembro, com os dados de outubro, revisando o PIB para cima:

Note que essa revisão se deu porque o IFI incorporou na receita impostos que haviam sido diferidos entre abril e junho. Conservadoramente, o Instituto não havia considerado esses impostos como receitas de 2020.

A relação dívida/PIB seria novamente revista no relatório de janeiro deste ano, de 93,1% para 90,1% do PIB:

Esta revisão se deu por três fatores: uma revisão de metodologia do IBGE, que elevou o PIB nominal de 2018 e, portanto, o restante da série, um queda menor do PIB real e uma inflação maior do que a prevista inicialmente, o que aumenta o PIB nominal, diminuindo a relação dívida/PIB.

E chegamos ao fim das previsões, a relação dívida/PIB do Brasil fechou 2020 por volta de 90%. Uma previsão que variou de 84,9% a 96,1% durante um ano estupidamente conturbado como o de 2020. Em nenhum momento a previsão atingiu os “100%” do Guedes.

Paulo Guedes vem se notabilizando por prometer muito e entregar pouco, muito pouco. Penso que não tem autoridade nem moral para criticar o trabalho de uma instituição séria como a IFI.

Mais uma voz se alevanta

Esta fala não é de um economista qualquer. Esta fala é de Felipe Salto, diretor-geral do Instituto Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal. Felipe é um economista respeitado, da banda ortodoxa, mainstream. E dirige um órgão ligado a um dos poderes da República. Portanto, sua palavra tem peso.

Vejamos:

1) O BNDES não se retirou do papel de financiador. Quem se retirou foram os tomadores de empréstimos a juros subsidiados. O “papel” do BNDES perdeu sentido quando acabaram os subsídios. Não existe uma fila de tomadores desesperados por empréstimos do BNDES. Pelo contrário, sobra dinheiro no caixa, por isso o BNDES está devolvendo dinheiro para o governo.

2) Os juros subsidiados terminaram porque acabou o dinheiro. Não foi este governo que mudou isso, foi o governo Temer, que procurou arrumar a casa da mãe Joana que havia se tornado esse negócio de juros subsidiados, paraíso das empresas que tomavam dinheiro barato para aplicar no mercado financeiro.

3) Sim, os subsídios deveriam ser decididos pelo Congresso. E o foram. As dotações para o BNDES foram aprovadas pelo Congresso, e o custo dessas dotações era (ou deveria ser) do conhecimento dos congressistas. Mas estávamos na época do “Brasil Grande”, dos “Campeões Nacionais”, todo mundo feliz. Quem iria dizer alguma coisa contra, a não ser uns poucos heróis da resistência, que eram taxados de anti-patriotas?

4) Esta é mais uma voz que se alevanta para clamar por investimentos do governo. Só tem um pequeno detalhe, chamado “teto de gastos”. Os gastos obrigatórios do governo estão comendo aceleradamente a margem para investimentos e, daqui a pouco, não vai sobrar mais nada. A PEC emergencial, que poderia abrir alguma margem para ajustes, está parada no Congresso. E medidas mais estruturais, como a reforma administrativa, sequer foram enviadas pelo governo. Uma forma de “driblar” o teto de gastos é capitalizar as estatais, o que já foi feito com a Emgepron, por exemplo. Se isso realmente virar política comum, será o fim do teto de gastos na prática, com todas as suas consequências para os mercados.

5) Imaginar que há um “meio-termo” para o uso de juros subsidiados é o mesmo que dizer para um alcoólatra em recuperação que ele deveria beber “só socialmente”. Os juros subsidiados viciam, e não existe isso de “caminho do meio” para o seu uso. A experiência que vivemos deveria ter sido suficiente para demonstrar isso.

Como disse, Felipe Salto não é um economista qualquer. Ele é ouvido pelos senadores. A pressão pelo “faça alguma coisa” só está começando. Com a consequente volta da trajetória insustentável da dívida. Não será bonito estar nos mercados quando o teto de gastos for flexibilizado.