Deixando escapar os jabutis

Todos já descobriram o segredo de polichinelo desse novo “arcabouço fiscal”: o ajuste depende do aumento da arrecadação. Como não haverá novos impostos e nem aumento de alíquotas, resta saber como esse aumento de arrecadação ocorrerá. Transcrevo abaixo a fala do ministro, durante o anúncio do arcabouço.

Nós temos que fazer quem não paga imposto, pagar. E nós temos muitos setores que estão demasiadamente favorecidos com regras que foram sendo estabelecidas ao longo das décadas, e que não foram revistas por nenhum controle de resultado. Muitas caducaram do ponto de vista de eficiência, que vão ser revogadas, e nós vamos, ao longo do ano, e já começando na semana seguinte à apresentação do arcabouço, nós já vamos encaminhar para o Parlamento as medidas saneadoras que vão dar consistência para o resultado previsto nesse anúncio. Nós contamos, portanto, que, aqueles setores que estão muito beneficiados, ou setores novos que sequer estão regulamentados (falava-se muito lá na Câmara e no Senado sobre essa questão das apostas eletrônicas, que vai ser regulamentado), mas esse é um item, esse é um item de uma lista extensa de benefícios indevidos, de fraudes, de todo tipo de coisa que vocês possam imaginar, que vão ser revistas pra fechar os ralos que a gente chama de patrimonialismo brasileiro. Nós vamos ter que enfrentar a agenda contra o patrimonialismo e acabar com uma série de abusos que foram cometidos contra o Estado brasileiro, contra a base fiscal do Estado brasileiro ao longo dos anos. Isso não vai penalizar absolutamente ninguém que está com seus tributos em dia, mas sim há um esforço mundial, mundial, isso não é do Brasil, isso é um caso mundial, de acabar com os abusos que grandes empresas muitas vezes cometem contra os seus Estados nacionais que deram origem a elas. Está cheio de problema, que nós já mapeamos, uma equipe aqui da Receita e do Tesouro, passando em revista a legislação pra que nós soubéssemos identificar onde é que estão os grandes problemas, os chamados grandes jabutis. Não estamos falando dos pequenos jabutis, estamos falando dos grandes jabutis. Esses jabutis realmente é uma manada, um dos maiores rebanhos existentes hoje nesse país é a quantidade de jabuti que foi entrando no sistema tributário e que tornou esse modelo caótico. E isso não tem nada a ver com a reforma tributária que está em curso, que vai sanear outros tantos problemas.”

O plano, portanto, é enfrentar os diversos lobbies presentes no Congresso, para que setores econômicos beneficiados com incentivos fiscais deixem de sê-lo. O problema desse tipo de iniciativa, além dos lobbies, é como os agentes econômicos vão reagir ao fim dos subsídios. Três coisas podem ocorrer:

1) A empresa diminui a sua margem de lucro, mantendo o mesmo volume de vendas, o que aumenta o imposto arrecadado ou

2) A empresa mantém a sua margem de lucro, aumentando o preço do produto, o que pode fazer, a depender da elasticidade, com que diminua a demanda, o que pode ocasionar, inclusive, uma diminuição do imposto arrecadado. No limite, a empresa pode até desaparecer, pois o ponto de equilíbrio entre oferta e demanda com uma rentabilidade razoável pode não ser atingido ou

3) A empresa encontra outra maneira de operar, dentro dos meandros caóticos do sistema tributário brasileiro, mantendo seus lucros sem mexer nos preços dos seus produtos ou serviços.

Sempre que se mexe com impostos, é preciso contar com a defesa dos agentes econômicos, que sempre buscarão formas de maximizar seu lucro. E, no limite, cessarão de fornecer o produto ou serviço. Por isso, qualquer ajuste fiscal que tenha como base aumento de arrecadação é muito incerto. Este será o caso, como na piada, em que o ministro deixa escapar os jabutis.

Um plano com a cara do Brasil

Finalmente, habemus arcabouço fiscal! Faltam ainda muitos detalhes, que somente serão conhecidos após a apresentação do projeto de lei. Portanto, o que vai a seguir é somente o que foi possível deduzir de uma apresentação em Powerpoint e de algumas poucas palavras do ministro Haddad durante a apresentação.

De toda a apresentação (aliás, a piada que corre no mercado é que, desde Eike Batista, essa era a primeira vez que alguém estava tentando enganar o mercado com um Powerpoint), apenas um slide, dos 12 da apresentação, traz a regra fiscal. Ou seja, ainda faltam muitos detalhes, que devem vir com a publicação do projeto de lei. A análise a seguir, portanto, conta com certas premissas que somente serão confirmadas quando sair o texto definitivo da lei.

O slide a que me referi é o seguinte:

O plano tem, basicamente, duas partes:

  • Um “compromisso” de superávit primário e
  • Uma regra de evolução de despesas (o novo “teto de gastos”)

Foquemos, inicialmente, na regra, que diz o seguinte: as despesas do ano seguinte crescerão, em termos reais, o equivalente a 70% do crescimento das receitas nos últimos 12 meses, também em termos reais. Estes “últimos 12 meses” referem-se sempre ao período de julho de um ano até junho do ano de referência, da mesma forma que o teto de gastos originalmente previa. Assim, as despesas de 2024 crescerão tendo como base o crescimento de receitas entre julho de 2022 e junho de 2023. Vale lembrar que esse período foi modificado, no caso do teto de gastos, para janeiro-dezembro, em uma das muitas mutilações que a regra do teto sofreu durante o governo Bolsonaro. Portanto, a depender da conjuntura, esse período poderá ser modificado também.

Além disso, esse crescimento real de despesas tem um piso e um teto, 0,6% e 2,5%, respectivamente. Acresça-se que, se o objetivo de superávit primário tiver ficado abaixo do piso da banda no ano anterior, o crescimento das despesas estará limitado a 50% das receitas, e não mais a 70%. Vamos ver uma tabelinha que resume a regra:

Crescimento de receitas no ano anteriorCrescimento real de despesas para o ano seguinte, se o objetivo de superávit primário for atingidoCrescimento real de despesas para o ano seguinte, se o objetivo de superávit primário não for atingido
-1%0,6%0,6%
0%0,6%0,6%
1%70% x 1% = 0,7%0,6%
2%70% x 2% = 1,4%50% x 2% = 1,0%
3%70% x 3% = 2,1%50% x 3% = 1,5%
4%2,5%50% x 4% = 2,0%
5%2,5%50% x 5% = 2,5%
6%2,5%2,5%

A regra, portanto, é bem mais frouxa e complexa do que o teto de gastos, que previa crescimento real zero de despesas em qualquer cenário. A questão é: qual o efeito disso sobre as contas públicas?

Para entender, é preciso assumir algumas premissas.

  1. Para o crescimento do PIB, taxa Selic e IPCA, vamos usar inicialmente os números do relatório Focus até onde estes existem (2027), e depois vamos repetir os números de 2027 até 2030.
  2. Também vamos usar o Focus como premissa para o déficit de 2023 (-1%).
  3. Precisamos de uma premissa para o crescimento das receitas. Vamos usar uma elasticidade crescimento de receitas / crescimento do PIB de 2 (para cada ponto percentual de crescimento real do PIB, teremos um crescimento real de receitas de dois pontos percentuais). Quando maior for este número, mais fácil será atingir os objetivos determinados pelo plano. Assumi 2 porque é um número que parece ser o mais prevalente, conforme o gráfico abaixo. Obviamente, a elasticidade pode variar muito de ano para ano em função de receitas extraordinárias, mas é preciso assumir alguma premissa para trabalharmos.

Com as premissas vistas acima em mãos, vamos fazer o cálculo do superávit primário alcançado ao longo dos anos. É o que podemos ver no gráfico abaixo, que chamo de Cenário 1:

Observe como, com as premissas adotadas, a meta de superávit primário do plano seria alcançado somente em 2030 (estou assumindo que o próximo governo adotaria a mesma meta de superávit primário). Até 2026, que é o horizonte do governo, o superávit primário fica muito distante da meta.

Vamos analisar um segundo cenário, em que assumimos um aumento permanente de receita da ordem de 1% do PIB a partir de 2024, mantendo tudo o mais constante. Teríamos o seguinte:

Aí está o truque: para cumprir a meta de superávit primário proposta, é preciso aumentar a receita em 1% do PIB, ou cerca de R$ 100 bilhões a mais de arrecadação por ano. Resta saber quem vai pagar a conta.

Vamos agora simular um terceiro cenário, em que tiramos esse aumento de carga tributária e introduzimos um ano de recessão de -1% em 2024, mantendo todos as outras premissas constantes. Vejamos:

Observe como uma recessão (ou um crescimento mais baixo) faz com que o superávit primário se afaste de maneira dramática do objetivo. Isso acontece porque as despesas continuam crescendo, independentemente da atividade econômica. No final, lá em 2030, o superávit primário é recuperado porque as despesas passam a crescer somente à razão de 50% das receitas enquanto a meta não é recuperada. Aliás, essa é a virtude desse plano, ou de qualquer plano que tenha controle de gastos: se obedecido, mais cedo ou mais tarde se consegue gerar superávits primários, desde que o país cresça.

Finalmente, vamos a um quarto cenário, em que combinamos a recessão com o aumento permanente da carga tributária em 2024:

Note que, neste cenário, o objetivo somente seria alcançado em 2027.

Agora, vamos ao que interessa: o que aconteceria com a trajetória da dívida pública em cada um desses cenários? É o que veremos a seguir:

Observe como a relação dívida/PIB só se estabiliza e começa a cair nos cenários em que ocorre o aumento da carga tributária. Essa é a ideia do plano: uma mistura de controle de gastos com aumento de receitas. Sem esse último ingrediente, a dívida não se estabiliza.

De alguma forma, há que se concordar que esse plano fiscal tem mais a cara do Brasil do que o teto de gastos. Somos uma sociedade que exige todo tipo de direito que, no final das contas, só podem ser pagos com mais arrecadação. Essa coisa de cortar gastos não está em nosso DNA, e o teto de gastos fracassou porque não considerou este traço brasileiro. Queremos mais direitos, e o plano do governo do PT tem o mérito de explicitar o custo dessa escolha da sociedade brasileira.

Uma última consideração. O arguto leitor terá notado que o item 4 do Powerpoint prevê que “excedentes” dos superávits primários produzidos ao longo do tempo poderão ser usados para investimentos. Então, uma simulação que podemos fazer é qual seria a trajetória da dívida se o superávit primário tivesse um teto de 1% do PIB, sendo todo o excesso investido. A resposta está no gráfico abaixo:

Se não deixarmos o superávit crescer além de 1% do PIB, a dívida pública não converge, considerando as premissas de PIB, inflação e taxa de juros do Focus para os próximos anos.

Claro, sempre alguém poderá argumentar que, se o excedente for utilizado “corretamente” para investimentos, o país vai crescer mais, permitindo a redução da dívida. Seria uma espécie de “troca” entre superávit primário e investimentos. Já tentamos isso em um passado não muito distante, e não deu muito certo. Quem sabe agora vai.

ERRATA: esta é a 2a versão deste post. Na 1a, havia usado uma relação dívida/PIB de 76,0% em 2022, quando, na verdade, a relação dívida/PIB havia fechado em 72,9%, o que mudou o nível dos gráficos de dívida/PIB, mas não a sua trajetória, que é o que importa.

O substituto do teto de gastos

Depois de meses de discussões, essa é a primeira vez que vaza alguma coisa concreta sobre o novo “arcabouço fiscal”, que irá substituir a regra do teto de gastos. Este é um primeiro comentário, outros virão na medida em que os detalhes (onde, como sabemos, mora o tinhoso) forem sendo conhecidos.

Por enquanto, a única coisa que sabemos é que haverá um… teto de gastos. O critério, porém, é pior. Ao atrelar as despesas às receitas, a nova regra torna-se pró-cíclica: quanto mais o PIB cresce, mais crescem as receitas e, portanto, maior o espaço para gastar. E vice-versa, se temos um crescimento menor do PIB, ou mesmo uma recessão, menor o crescimento de receitas e, portanto, diminui o espaço para o crescimento de despesas. Na regra anterior, as despesas cresciam nominalmente, independentemente do crescimento do PIB. Assim, quando o PIB crescia menos, as despesas passavam a representar uma fatia maior do PIB, em um movimento contracíclico.

Mauro Benevides, deputado do PDT e unha e carne com Ciro Gomes, afirmou que o caráter anticíclico da nova regra estaria na diferença de 70% do crescimento das despesas para 100% do crescimento das receitas, o que permitiria fazer um ”colchão” no tempo das vacas gordas para gastar no tempo das vacas magras. O problema é que essa dinâmica colide com um dos gatilhos mencionados na reportagem, em que o limite de despesas baixaria a 50% do crescimento das receitas no exercício seguinte em caso de extrapolação do limite de 70% no exercício anterior. Ou seja, o limite de despesas diminuiria ao invés de aumentar, em caso de fraco crescimento do PIB e consequente diminuição de receitas. Entre o repórter e o deputado, alguém não entendeu a regra.

Por fim, parece que haverá metas para o superávit primário. Não ficou claro, do que vazou, se essas metas são somente projeções ou serão restrições que acionarão gatilhos. Neste último caso, teríamos redundância de regras, e não seria realmente necessário ter regras de despesas. Vivemos durante 15 anos produzindo superávits primários sem a necessidade de regras de controle de despesas. Quando as receitas desabaram, a partir de 2013, os superávits sumiram. Qual a chance de qualquer regra de limite de despesa para preservar o superávit primário sobreviver a uma desaceleração forte do PIB? Despesas públicas são, por natureza, incomprimíveis, são como contratos com a sociedade, ninguém aceita abrir mão de “direitos adquiridos”. A regra de teto não sobreviveu quando mais precisávamos dela, e o mesmo vai ocorrer com qualquer regra de limitação de despesas quando a porca torcer o rabo.

As metas de superávit declaradas pelo governo são dacronianas perto do que se alcançaria com a finada regra do teto. Ou seja, a considerar essas metas, a nova regra seria ainda mais dura do que o teto de gastos. A não ser que tenhamos um brutal aumento de carga tributária.

A demonização como modus operandi

Eliane Cantanhêde nos traz insights de uma conversa que teve com Haddad. Dois pontos me chamaram a atenção.

O primeiro foi o reconhecimento de que o PROER, um programa para resgatar bancos em dificuldades após o fim da hiperinflação, foi importante para a solidez atual do sistema bancário brasileiro. Na época, o PROER foi demonizado incansavelmente pelo PT. É bom ver um prócer do partido reconhecendo a importância do programa. Antes tarde do que nunca.

Aliás, a prática do PT é essa: demonizar políticas impopulares, mas colher os seus frutos sem conceder o mérito. Foi assim com o Plano Real, PROER, LRF, sistema de metas de inflação, BC independente. O teto de gastos era para ser mais uma dessas políticas, se não tivesse sido desmoralizado pelo governo Bolsonaro. É bem capaz de o “novo arcabouço fiscal” incluir uma regra mitigada de teto de gastos. Receberá outro nome, mas o princípio será o mesmo, de modo que o PT possa continuar a demonizar o teto sem deixar de colher seus frutos.

O segundo ponto da coluna que me chamou a atenção foi a máxima de que “o objetivo não é aumentar alíquotas, é fazer quem não paga passar a pagar”. Não pude deixar de sentir uma sensação de deja vu, lembrando de uma entrevista no Roda Viva do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, nas vésperas do lançamento do Plano Real, em que o xará do atual ministro diz exatamente a mesma coisa. O resultado, ao longo do governo FHC, foi o aumento da carga tributária. E, adivinha, quem ganha mais continua pagando menos.

Só falta o “sistema”

O senso de urgência desse governo me anima. O “desenho” do programa Desenrola, uma das promessas de campanha, foi levado ao presidente Lula ontem, apenas 65 dias após o início do mandato.

Para demonstrar que há muita urgência, o ministro da Fazenda nos informa que o secretário de Política Econômica até saiu no meio da reunião para dar uma previsão de quando um tal “sistema” ficaria pronto. Não, não dava para esperar o fim da reunião. É tanta pressa em resolver o problema dos endividados, que o secretário saiu antes de a reunião terminar para tratar do assunto do “sistema”. E o ministro da Fazenda fez questão de estressar esse ponto, para demonstrar a urgência que o assunto está merecendo por parte do governo.

Pelo visto, o secretário não voltou à reunião com a informação de quando o “sistema” ficará pronto. Pelo menos, a reportagem não traz essa informação. Ficamos todos ansiosos.

Lula já fez saber aos seus auxiliares que sem o tal “sistema”, nada feito. Ele não vai lançar um programa sem um “sistema”, só pra fazer marketing. Mas fiquem tranquilos os endividados do país. O secretário até saiu no meio da reunião para tratar do “sistema” e verificar a sua data de entrega. A coisa é urgente. Só falta o “sistema”.

A inflação do chuchu

Haddad afirma que os juros estão em um nível “fora de propósito”.

Lara Resende diz que os juros estão “errados”.

Como nenhum dos dois se dispôs a dizer quais seriam os juros “certos” ou “razoáveis”, nem compartilharam o seu modelo de determinação dos juros, a coisa soa mais a achismo. E achismo por achismo, também tenho meu palpite.

Também acho que os juros estão errados. A julgar pelos resultados dos últimos dois anos e pelo que se encaminha nesse ano de 2023, os juros deveriam ser ainda mais altos. Se o BC se encaminha para o terceiro ano de não cumprimento de meta, é porque praticou juros abaixo do que deveria. No sistema de metas de inflação, é a inflação que determina se os juros estão “certos” ou “errados”. O resto é só achismo de botequim.

Há uma concordância implícita com essa premissa quando se discute a meta de inflação. Mexer na meta só faz sentido se se acredita que o nível das taxas de juros é função da meta. Ou, mais tecnicamente, do desvio da inflação em relação à meta. Sintomaticamente, Lara Resende pouco menciona a meta em suas entrevistas e artigos. Prefere fazer uma espécie de “taxonomia da inflação”: tratar-se-ia de “inflação de oferta”, não “de demanda” e, portanto, infensa à taxa de juros. Assim, segundo o economista, o BC deveria, neste caso, assistir ao processo inflacionário passivamente, pois não haveria nada a fazer. Nos lembra os bons tempos de Mário Henrique Simonsen e sua “inflação do chuchu”, época em que o governo combatia a inflação “de oferta” na base de controle de preços da Sunab.

Voltando à racionalidade do sistema de metas (sistema este, bom lembrar, que manteve a inflação baixa em boa parte dos últimos mais de 20 anos), um aumento da meta poderia até levar a um alívio da política monetária, mas só na primeira rodada do jogo. O diabo é que trata-se de um jogo com infinitas rodadas. Já na segunda, voltaríamos exatamente ao mesmo problema, só que com uma inflação mais alta. Explicando: o que determina a taxa de juros real neutra da economia é a própria economia, não o Banco Central. Assim, se a inflação está acima da meta (qualquer que ela seja), o BC precisa praticar taxas de juros reais acima da taxa neutra – assim funciona o sistema de metas. Com a meta mudada para cima, a taxa de juros nominal também precisa subir. Se, em um primeiro momento, o aumento da meta faz com que as expectativas fiquem abaixo da nova meta, em um segundo momento todas as expectativas migram para a nova meta, e as velhas mazelas brasileiras voltam a empurrar as expectativas para cima da meta. Voltamos ao ponto inicial do jogo, mas com uma inflação mais alta.

O raciocínio acima é complexo, e é difícil de explicar em uma mesa de bar. Mais fácil colocar a culpa da inflação no chuchu da vez.

Escolinha do Professor Raimundo

Daron Acemoglu, em seu clássico Porque as Nações Fracassam (já perdi a conta de quantas vezes citei essa obra aqui), descarta a falta de conhecimento do que é certo ou errado em economia como explicação para as coisas erradas que os governos fazem. Acemoglu desfila alguns exemplos de governantes que, apesar de bem assessorados por acadêmicos reconhecidos, tomaram decisões desastrosas em função de escolhas políticas. Além disso, acrescento eu, há certo tipo de convicção enraizada ideologicamente que ignora as evidências mais comezinhas, preferindo se apegar a esquemas comprovadamente desastrosos, que se justificam pelo desejo de se fazer “justiça social”.

Tendo isso em mente, entende-se porque a sugestão de Amoedo é uma completa idiotice.

Lula não adota “políticas corretas” não porque não as conheça, mas porque ou não quer adotá-las (escolha política) ou simplesmente porque não concorda com elas (convicção ideológica). Imagine tentar convencer Lula a assistir uma “aula” com “professores ortodoxos”.

Mas há outros detalhes que tornam a idiotice realmente completa.

Amoedo caracteriza Haddad como uma espécie de “anteparo ortodoxo” dentro do governo Lula, a penúltima esperança de colocar o governo nos trilhos (a última são Alckmin e Tebet, de quem falaremos em seguida). Como se Haddad não fosse uma extensão de Lula, seu mais fiel escudeiro, e não pensasse exatamente da mesma forma. De onde tiraram a ideia de que Haddad é do mainstream econômico???

Alckmin, por sua vez, teria ideias um pouco melhores. O problema é que o ex-tucano serviu para dar à chapa de Lula aquele ar de frente ampla e, agora no governo, serve para sair naquela foto bem enquadrada tirada pelo Ricardo Stuckert, assumindo a cadeira de presidente quando Lula se ausenta. De resto, foi a terceira opção para o ministério da Indústria, e sequer teve a liberdade de nomear o presidente do BNDES, supostamente seu subordinado. Pérsio Arida, seu representante na transição, entrou mudo e saiu calado, estado em que se encontra até o momento.

Tebet, que foi injustamente esquecida por Amoedo em seu tuíte, também foi a última opção no Planejamento, em uma acomodação de última hora. O fato é que, a julgar pela avalanche de discursos populistas nesses primeiros dias de governo, ambos não passam de peças de decoração no ministério.

Pedir a Alckmin e Haddad que juntem alguns dos melhores economistas do País para uma espécie de “Escolinha do Professor Raimundo” com Lula e seus aliados políticos de esquerda é uma piada de mau gosto, um escárnio diante do desastre que vai tomando forma.

O pior de tudo é ver como ainda há quem se iluda com Lula, acreditando que tudo não passa de falta de informação. Talvez umas aulas sobre a natureza de Lula e do PT para Amoedo e todos os iludidos do mesmo naipe pudesse resolver. Quem sabe seja falta de informação.

Um poço até aqui de máguas

A se levar a sério as colunas de fofocas políticas, Haddad está um poço de mágoas com o presidente do BC, Campos Neto. Tudo isso porque o último Copom (o primeiro do governo Lula) mencionou uma “elevada incerteza” no campo fiscal. Quer dizer, não teria levado em conta o grandioso pacote de ajuste fiscal anunciado pelo ministro.

Haddad não deveria ficar chateado. Vejamos a seguir os comunicados de algumas reuniões do Copom nos últimos anos.

Copom 06/05/20: “políticas fiscais de resposta à pandemia que piorem a trajetória fiscal do país de forma prolongada”

Copom 20/01/21: “O risco fiscal elevado segue criando uma assimetria altista no balanço de riscos”

Copom 27/10/21: “recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de desancoragem das expectativas de inflação”

Copom 02/02/22: “a incerteza em relação ao arcabouço fiscal segue mantendo elevado o risco de desancoragem das expectativas de inflação”

Copom 07/12/22: “a elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais adicionais”

Copom 01/02/23: “a ainda elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais”

A primeira menção ao risco fiscal por parte da gestão de Campos Neto ocorreu no segundo Copom após o início da pandemia, em maio/20, em resposta ao grande pacote de estímulo fiscal patrocinado pelo governo. Essa menção ao risco de estímulos adicionais iria perdurar até outubro/21. Neste mês o tom muda, e entra a preocupação com o “arcabouço fiscal”. Foi o mês do “waiver day”, em que Paulo Guedes aceita a primeira de uma série de mudanças na regra do teto de gastos.

Essa menção à incerteza em relação ao arcabouço fiscal continuaria ao longo de todo o ano de 2022. No último Copom do governo Bolsonaro, foi agregada a palavra “elevada” para qualificar a incerteza, em razão da aprovação da PEC da gastança.

Chegamos então a 2023. No mundo da fantasia de Haddad, Campos Neto deveria reconhecer que um pacote mal ajambrado, que pretende repor R$ 100 bilhões dos R$ 200 bilhões da PEC da gastança, deveria fazer sumir o risco fiscal do país. Isso, em um governo em que o chefe do Executivo afirma que vai gastar mesmo, e daí?

Que permanece a elevada incerteza sobre o substituto do teto de gastos, não há dúvida. O Copom só fez reconhecer essa realidade. Se a autoridade monetária entrasse no mundo dos sonhos de Haddad, o efeito seria uma desancoragem ainda maior das expectativas de inflação. O mercado olharia para Campos como um novo Tombini, aquele que está pronto a fazer as vontades do Planalto. Já vimos esse filme antes.

A se tomar a valor da face essas fofocas, o caso demonstra o que já sabíamos, aqueles que nunca nos iludimos: o entendimento de Haddad sobre economia é tão tosco quanto o de seu chefe, tendo apenas um verniz da Vila Madalena.

Torneira de asneiras

“Então ele quer chegar à inflação padrão europeu, e não, nós temos que chegar à inflação padrão Brasil. Uma inflação de 4,5% no Brasil, de 4%, é de bom tamanho se a economia crescer. Você, com 4% de inflação, com 4,5, com a economia crescendo, é uma coisa extraordinária”.

Esse é um pequeno trecho da verdadeira torneira de asneiras que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, resolveu abrir em uma entrevista ao repórter do Pravda, quer dizer, da Rede TV, Kennedy Alencar. Vejamos se Lula tem razão em dizer que 3% é inflação “nível europeu”.

Na tabela abaixo, temos um levantamento das metas de inflação nos vários países do mundo que adotam essa sistemática. O levantemento é de 2021, por isso mostra o Brasil com meta de 3,75%.

No nível dos 3% de inflação temos: Albânia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Georgia, Hungria, Indonésia, México, Filipinas e Sérvia. Destes, apenas Albânia, Hungria e Sérvia são europeus. E, sem demérito, 3a divisão da Europa.

Já os países que adotam meta de 4,5% para cima temos: África do Sul, Belarus, Jamaica, Casaquistão, Malawi, Moldávia, Sri Lanka, Tanzânia, Turquia, Uganda, Ucrânia, Uruguai, Bangladesh, Kirguistão, Tadjiquistão, Zâmbia, Gana e Uzbequistão.

Daí, você pergunta: o Brasil quer pertencer ao primeiro ou ao segundo clube? Lula acha que não temos pedigree para pertencer ao clube de Chile, Colômbia e México. Nosso clube é dos vira-latas mesmo.

Em outro trecho da entrevista, Lula afirma que “seu” presidente do BC, Henrique Meirelles, teve total autonomia durante a sua gestão, mas que eles “conversavam”. Meirelles deveria vir a público para esclarecer que tipo de “conversa” o presidente “autônomo” do BC e o presidente da República tinham.

Enfim, o Lula do 1o mandato, aquele que enganou boa parte da Faria Lima, só existiu porque o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, entendia como a economia funcionava. Fernando Haddad, com todo o seu discurso preparado e fino, pensa exatamente como o seu chefe, que só é mais bocudo que o seu ministro. Não tem o mínimo risco de dar certo.

Para não esquecer

Estou lendo o excelente livro de Marcos Mendes, “Para Não Esquecer: Políticas Públicas Que Empobrecem o Brasil”, em que o autor compila artigos de economistas com críticas qualificadas a várias políticas públicas adotadas nas últimas duas décadas.

Acabei de ler o capítulo sobre Fundos Garantidores de Crédito, que usa como exemplos o Fundo de Garantia da Construção Naval, que garantiu as operações da Sete Brasil, e o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo, que garantiu as operações do FIES. Com relação a este último, o programa custou, entre 2010 e 2017, R$ 117 bilhões aos cofres públicos. E mais: o Relatório de Riscos Fiscais do Tesouro prevê, para este ano de 2023, custos de R$ 2 bilhões e subsídio implícito (dado pelo diferencial de taxas de juros) de R$ 4 bilhões. Isso porque o programa, nos moldes antigos, terminou em 2017! Ou seja, continuamos a pagar a conta ainda hoje.

A ideia do Desenrola é justamente essa: um fundo de garantia de crédito. Ou seja, substituir os bancos e financeiras que já fecharam a torneira do crédito. O mecanismo seria o seguinte: o banco ou financeira venderiam o crédito com desconto para um banco operador do Desenrola (provavelmente BB ou Caixa), e este passaria a cobrar a dívida descontada do devedor, a juros módicos. Se o devedor não pagar nem essa dívida com desconto, o preju seria coberto pelo Tesouro, por meio de um fundo garantidor de crédito.

Tem moral hazard para todos os gostos aqui. Primeiro, em relação aos bancos, que provavelmente aproveitariam para vender seus créditos podres por um preço maior do que obteriam em operações desse tipo no mercado. Sim, porque esse tipo de operação (venda de créditos com deságio) já existe. A entrada do governo neste mercado, com o viés político de “fazer a coisa funcionar” certamente distorceria os preços, para a alegria dos bancos e financeiras.

Outro moral hazard é dos próprios devedores. Ao ter suas dívidas praticamente perdoadas, provavelmente sua propensão a tomar empréstimos aumentaria, sem necessariamente ser acompanhada de um aumento de capacidade de pagá-los. Trata-se apenas de dar mais uma volta na roda da bicicleta, para voltar a emperrar logo mais à frente, quando a inadimplência dos novos empréstimos voltar a aumentar. Já prevejo um Desenrola II – A Missão.

O FIES, apesar de suas muitas falhas de implementação, ao menos tinha um fim nobre, qual seja, aumentar a capacitação profissional dos brasileiros. Este programa, Desenrola, nem isso. A ideia é manter a roda da economia girando a qualquer preço. E aqui vai a nota cômica da reportagem: a preocupação do ministro é com a contração do crédito por conta da Selic muito alta.

Ora, o BC aumenta a Selic justamente para contrair o crédito, esse é um dos efeitos esperados para esfriar a economia e, assim, trazer a inflação de volta para a meta. Ao, candidamente, afirmar que quer expandir o crédito, o ministro da Fazenda admite que está remando na direção contrária ao da autoridade monetária. O Desenrola, ao onerar o Tesouro, significará expansão fiscal, o que poderia levar o BC a manter a taxa de juros alta durante mais tempo.

Daqui a alguns anos, quando Marcos Mendes estiver compilando o segundo volume do seu “Para Não Esquecer”, certamente o Desenrola estará ocupando um lugar de honra.