Para onde aponta o grande capital

No dia 16/03/2016, o juiz Sérgio Moro levantou o sigilo do grampo no telefone do ex-presidente Lula. Era início de noite, e a Globo News deu o furo de reportagem: Dilma havia prometido enviar o “Bessias” com o termo de posse para evitar a prisão de Lula.

Assisti à curta matéria no escritório, já de saída. Intuindo que aquilo era a gota d’água para a questão do impeachment, decidi ir até a Paulista para sentir o clima. Não havia nenhuma convocação especial, mas a Paulista estava lotada. Uma manifestação espontânea daquele tamanho era tão significativa quanto a manifestação monstro que havia ocorrido três dias antes nas principais cidades brasileiras, mas que tinham sido preparadas cuidadosamente. Naquela quarta não, as pessoas estavam ali simplesmente porque pressentiam o momento da história.

Mas, para mim, o mais significativo daquela noite ainda estava por ocorrer. Encontrava-me em frente ao prédio da FIESP, quando, de repente, a fachada do prédio se iluminou com as cores verde e amarela, cruzada com uma faixa preta com a palavra “IMPEACHMENT” inscrita. Naquele momento, entendi que o jogo estava perdido para Dilma Rousseff.

Voltemos um pouco mais no tempo. Quem tem acesso aos jornais da época, sabe que o golpe de 1964 foi apoiado por todas as forças civis relevantes do país. Empresários, grande imprensa, políticos das mais diversas tendências (de Juscelino a Lacerda) se uniram contra a baderna prometida por Jango. As Forças Armadas se juntaram a um movimento que já existia na sociedade civil.

Voltando a 2016, aquele “IMPEACHMENT” inscrito na fachada da FIESP traduzia o sentimento do grande capital, que precisa de condições mínimas de governabilidade para fazer negócios. Condições essas que Dilma já havia perdido há algum tempo.

E chegamos em 2022. A FIESP e a Febraban assinam um manifesto emprestando solideriedade ao STF, ao TSE e ao processo eleitoral brasileiro.

Assim como em 1964 e 2016, o grande capital se coloca ao lado da estabilidade das instituições, condição sine qua non para fazer negócios. Pouco importa se também assinam o manifesto os suspeitos de sempre, como CUT ou OAB. A FIESP não assinou manifestos #elenao em 2018, mas decidiu assinar este. A sua assinatura neste manifesto equivale ao “IMPEACHMENT” na fachada do seu prédio. Assim como Dilma estava sozinha com os petistas, Bolsonaro está sozinho com seus seguidores.

Como último esclarecimento: a análise acima não pretende ser um veredito moral, sobre o que é certo ou errado. Trata-se apenas de uma leitura das forças que estão em jogo. Como disse Rodrigo Pacheco ontem, no dia 1o de janeiro de 2023, o Congresso Nacional dará posse ao presidente eleito nas urnas eletrônicas. A assinatura da FIESP a este manifesto não deixa margem a dúvidas quanto a isso.

A mágica da reindustrialização

Claro que uma parcela do empresariado vai apoiar Lula. Afinal, nunca antes na história desse país o BNDES atuou tanto em favor da indústria, quanto nos anos do PT.

Em abstrato a ideia faz sentido. O governo subsidia as taxas de juros, projetos antes inviáveis tornam-se economicamente viáveis e saem do papel, o governo arrecada mais impostos e consegue pagar a conta dos subsídios com folga. Isso em abstrato. No concreto, a bicicleta cai pela fadiga do ciclista.

São três os problemas com essa ideia.

O primeiro é o chamado “desconto não intencional”. Você entra em uma loja, escolhe a mercadoria e vai no caixa para pagar. Lá, você fica sabendo que aquela mercadoria está em promoção, e recebe um desconto de 10%. Aquele desconto foi um dinheiro jogado fora pela loja, porque a decisão de compra já estava feita. O mesmo ocorre com uma parcela dos subsídios. Tendo já tomado a decisão de investimento, o empresário embolsa o subsídio, engordando o seu lucro. Difícil medir qual parcela dos subsídios é simplesmente jogada no lixo, mas certamente é maior que zero.

O segundo problema é achar que somente diminuindo juros a reindustrialização do país ocorrerá como que por mágica. Muitos apontam a Coreia do Sul como um exemplo de industrialização induzida pelo estado. Sim, verdade. A questão é que juros subsidiados são apenas uma parte do pacote, que inclui mão de obra qualificada, segurança jurídica, burocracia leve, infraestrutura robusta, abertura comercial. Baixar os juros artificialmente sem ter esses outros elementos só serve para onerar os cofres públicos sem mexer o ponteiro da industrialização. Prova disso é o gráfico da participação da indústria na economia brasileira durante o governo PT (abaixo). Mesmo com toneladas de subsídios, a indústria continuou perdendo participação na economia. Falta só todo o resto.

O terceiro problema é que estamos em 2022, não em 2007. A diferença de hoje para 15 anos atrás, quando o PAC foi lançado e o BNDES começou a ser turbinado, é que tínhamos superávit primário e estávamos surfando a onda de crescimento da China. Tínhamos, portanto, espaço fiscal para esse experimento desenvolvimentista. Hoje, geramos déficit fiscal estrutural e nossa dívida bruta está 20 pontos percentuais do PIB mais alta do que há 15 anos. Nesse contexto, financiar subsídios é a receita do desastre. A taxa de juros da economia como um todo aumentará, diminuindo o crescimento potencial e aumentando a dificuldade de trazer a inflação para baixo. O resultado será menos indústria, e não mais indústria, como vimos nos anos PT.

Diz a velha sabedoria que, quando Fiesp e governo se juntam em um almoço, o melhor a se fazer é ficar de olho na própria carteira. Sábio conselho.

PS.: aqui, você pode ler o meu artigo sobre crescimento econômico nos governos do PT, em que abordo o papel do BNDES.

A Fiesp e a marcha batida para a desindustrialização

A Fiesp, sob a nova liderança de Josué Gomes, oxigenou o seu conselho, chamando nomes como Luciano Huck e Michel Temer para dar pitaco. Ok, é sempre bom ver lideranças empresariais abertas a ouvir pontos de vista fora da caixinha. No entanto, quando vemos os economistas que foram chamados para compor o novo conselho, fica claro de que massa a Fiesp é feita.

André Lara Resende é o principal arauto da Modern Monetary Theory (MMT) no Brasil. E o que diz o MMT? Simples. Um país que tem a capacidade de arrecadar impostos na própria moeda que emite pode imprimir dinheiro à vontade para fazer investimentos produtivos, sendo que não há, para isso, limite para a dívida pública ou para a base monetária. O MMT surgiu da tentativa de explicar porque os países desenvolvidos ultrapassaram em muito o limite de dívida pública que se imaginava, há não muitos anos, catastrófico, sem que a inflação desse as caras. Além disso, políticas de “quantitative easing”, em que os bancos centrais monetizam a dívida (compram dívida com dinheiro literalmente emitido para isso) também não tiveram efeito na inflação. Lara Rezende defende que a mesma experiência pode ser transplantada para países como o Brasil, ou seja, podemos imprimir dinheiro e nos endividar à vontade sem que haja efeito inflacionário relevante, desde que esse dinheiro seja usado de maneira “sábia”.

Para essa segunda parte, o uso sábio do dinheiro, a Fiesp vai ouvir os conselhos de Luciano Coutinho, o pai intelectual e operador da política de Campeões Nacionais dos governos do PT. Coutinho vai usar o dinheiro criado do nada do MMT de Lara Rezende para as “políticas de fomento ao crescimento econômico” tão caras aos desenvolvimentistas e tão importantes para manter a indústria nacional em seu estado zumbi.

Não há que se espantar. Essa é a Fiesp sendo a Fiesp. Novos nomes, velhas práticas. Daqui a 20 anos, vamos estar nos perguntando porque o Brasil continuou em sua marcha batida para a desindustrialização e colocando a culpa nos chineses e nos juros altos.

Segredo de polichinelo

A única vantagem de ser velho é ter vivido o suficiente para não se deixar enganar por grandes novidades que deveriam estar em museus, como dizia Cazuza. A última é a união da FIESP com a Febraban para “descobrir” as causas dos juros altos no Brasil.

Faz-me lembrar a epopeia, na década de 80, para “descobrir” as causas da inflação. Não se tratava, na época como hoje, de algo realmente difícil de descobrir. O dinheiro é uma mercadoria como outra qualquer. Se perde valor com o tempo (inflação) ou se seu preço é alto (juros altos), é preciso buscar no fabricante os motivos pelos quais a mercadoria tem péssima qualidade ou tem custo alto. E quem fabrica o dinheiro de um país?

O Plano Real adotou um mecanismo genial (a URV) para quebrar a inércia inflacionária. Muitos acham que esse foi o principal truque do plano, acabando com a hiperinflação como em uma espécie de passe de mágica. Nada mais falso. O Plano Real funcionou porque trocou uma inflação alta por alguma disciplina fiscal e juros mais altos. O problema é que, quase 30 anos depois, ainda não acabamos de fazer a lição de casa para que a nossa moeda não perca valor no tempo sem que seja preciso colocar os juros nas alturas.

O problema nem é tanto o tamanho da dívida. Países com moedas muito mais estáveis têm dívidas maiores do que a brasileira. O problema é de credibilidade, o que leva os financiadores a exigirem taxas de juros mais altas e prazos mais curtos para rolar a dívida pública. Construímos nosso déficit de credibilidade ao longo das décadas, e é muito difícil reverter no curto prazo. Foram confiscos explícitos e implícitos, calotes explícitos e implícitos, e um histórico de leniência com a inflação alta, mesmo depois do plano Real. A última picareta fincada no pilar da credibilidade foi a mudança casuística na regra do teto de gastos, no ano passado. Seria preciso um trabalho longo e perseverante na direção correta, sem jeitinhos malandros, para que, ao fim do processo, pagássemos taxas de juros mais civilizadas. É preciso reconhecer que nossa situação, hoje, é muito melhor que no início do Plano Real. Não há atalhos para continuarmos a progredir.

Isso quando falamos da taxa básica de juros. Quando se trata dos juros pagos em empréstimos para empresas e indivíduos, devemos acrescentar a este custo básico, já em si alto, os impostos cobrados pelo governo, que tornam caras todas as mercadorias que compramos. E não seria diferente com o dinheiro. Acrescente-se a isso a incerteza própria de um país instável como o Brasil e um sistema judiciário que tende a beneficiar o devedor, e temos um spread maior para compensar o risco de crédito.

Achar que os juros altos são o resultado da ganância dos bancos é o mesmo que atribuir os preços altos no supermercado à ganância dos empresários. Esse tipo de discurso é bom para distrair a atenção do povo da causa última dos preços e dos juros altos. Funcionou na década de 80, quando populares fecharam supermercados, para descobrirem, consternados, que a inflação, mesmo assim, não havia acabado. Hoje, essa história não cola mais, já sabemos quem é o culpado pelo fato de o dinheiro ser uma mercadoria cara. O relatório FIESP/Febraban deverá revelar esse segredo de polichinelo.

Bola na marca do pênalti

Era o dia 16/03/2016, uma quarta-feira qualquer. Final de expediente, já arrumando as coisas para ir para casa, um colega de trabalho me chama a atenção para a TV. A Globo News havia interrompido a programação para dar a bomba: o juiz Sérgio Moro havia levantado o sigilo sobre as gravações do telefone do ex-presidente Lula. Lendo a transcrição ao vivo, o repórter Marcelo Cosme tropeçava nas palavras, porque o conteúdo era uma bomba: Dilma armava para que Lula assumisse um ministério a fim de escapar da Lava-Jato. Era o famoso “termo de posse para ser usado ‘só em caso de necessidade’”, e que seria levado pelo notório “Bessias”.

Saí do escritório e, no meio do caminho, decidi me dirigir para a Paulista. Eu sabia que haveria uma manifestação espontânea lá, depois dessa divulgação. No domingo anterior a Paulista havia visto a maior manifestação popular de todos os tempos no Brasil e o ambiente político estava fervendo.

Chegando lá, já havia uma multidão, cantando “Moro, Moro” e “Lula ladrão, teu lugar é na prisão”. Bons tempos. Mas trago essas reminiscências por outro motivo.

Aquele dia me veio à lembrança quando li que a FIESP voltou atrás no tal “manifesto pela harmonia entre os poderes”. Naquela noite memorável, a fachada em neon da FIESP estampava os dizeres “impeachment já!”. Aquilo me chamou muito a atenção. As ruas já ferviam há um ano, mas somente naquele momento a FIESP assumia uma posição. Como entidade empresarial que depende de Brasília, comandada por um ser político como Paulo Skaf, aquela mensagem na fachada significava que os dias de Dilma haviam se encerrado. A FIESP, assim como o centrão, só vai na bola quando é para bater o pênalti sem goleiro.

O adiamento do tal manifesto significa que ainda tem um goleiro para defender a meta, no caso, Arthur Lira. Mas também significa que a bola está na marca do pênalti. A FIESP não patrocina esse tipo de manifesto à toa.

A gênese dos juros altos

Imagine você a Febraban fazendo um anúncio de página inteira acusando as indústrias de cobrarem preços abusivos se comparados às suas congêneres globais. Por exemplo, comparando um carro ou um computador vendido aqui e lá fora.

Faz lembrar a verborragia da Dilma, que tentou baixar os juros na marra, usando os bancos públicos. Deu no que deu.

Enquanto não forem resolvidos problemas estruturais da economia brasileira, incluindo essa excrescência chamada BNDES, que irriga boa parte do caixa das empresas da FIESP com juros subsidiados, vamos continuar convivendo com juros altos.