Este artigo foi publicado no Financial Times, e reproduzido no Valor Econômico. Faz parte do acervo cada vez mais abundante de artigos que apontam os males do capitalismo, oferecendo soluções que requerem um ser humano, digamos, especial, para darem certo.
A editora especial do FT em Nova York começa o artigo apontando o grande mal a ser combatido: “a distância histórica entre a sorte das companhias e a dos trabalhadores americanos”. Segue-se então uma peroração bastante típica sobre o contraste entre o valor das companhias em Wall Street e o salário dos trabalhadores (e o desemprego) em Main Street.
A autora até resvala no motivo principal do aumento deste distanciamento, ao reconhecer que grande parte da valorização recente da bolsa se deve à valorização das empresas de tecnologia, que empregam pouco e, em grande parte, apenas mão-de-obra muito especializada. Mas escorrega ao dizer que a valorização dessas companhias “nada tem a ver com a atual contribuição dessas companhias para a economia”. Uau, isso é que é entender o papel da inovação para a atividade econômica. Mas, seguimos.
Como, segundo a autora, 84% das ações são detidas por apenas 10% das famílias americanas, a valorização das ações somente interessaria a esses 10%. O fato de as empresas melhor capitalizadas serem capazes de investir mais e criarem mais riqueza para a sociedade como um todo é apenas um detalhe secundário. O que importa tão somente é a valorização das ações para os seus acionistas. Mr. Magoo consegue enxergar mais longe.
Em seguida, a autora desfila toda a sua ignorância sobre o papel das expectativas dos agentes econômicos, ao “acusar” a bolsa de reagir mal a “boas” notícias na economia, quando, na verdade, a bolsa já subiu ANTES da economia reagir, antecipando essa reação. Quando a economia já está se acelerando, a bolsa antecipa o fim da festa, momento em que o Fed vai começar a aumentar a taxa de juros. Isso é tão básico que dá vergonha ter que explicar para uma editora do Financial Times.
Mas o melhor do artigo não é o diagnóstico. Bem ou mal, trata-se da mesma ladainha a que já estamos acostumados. O slogan de Biden, “precisamos começar a recompensar o trabalho, não a riqueza”, é dessas platitudes que fazem o Conselheiro Acácio parecer um intelectual de primeira linha. O melhor, como eu ia dizendo, é a receita para mudar “tudo isso que está aí”, como diria Brizola.
A receita envolve “um grande estímulo fiscal”, pois a política monetária está esgotada. Mas a autora reconhece que há “uma crescente preocupação com o endividamento”. Como resolver a quadratura do círculo? Simples: o setor público deve assumir “dívidas produtivas”.
O que seriam essas tais “dívidas produtivas”? Ora, simples: dívidas que “criem empregos no curto prazo e direcione os investimentos de longo prazo para áreas estratégicas de alto crescimento, como a de tecnologia limpa”. O “limpa” tem que estar na frase, senão não seria uma solução, não é mesmo?
A autora conclui que o plano de Biden de “vários trilhões de dólares” endereça exatamente essa combinação. Seria, então, uma “dívida produtiva”. Mas, e tem sempre um mas, com o diabo metendo o rabo nos detalhes, a autora coloca uma condição: “se executado corretamente”. Quer dizer, o plano é bom, mas precisa ser bem executado. Para isso, será necessária “uma equipe de tecnocratas não apenas dispostos e competentes, mas verdadeiros líderes, com capital político suficiente para impulsionar a mudança”. Afinal, a ambição não é pequena: trata-se de, nada menos, “remodelar toda a economia americana”. Uau! Remodelar toda a economia americana desde os gabinetes da Casa Branca. Isso sim é sonhar alto.
Temos aqui no Brasil uma equipe heterodoxa pronta e acabada de “tecnocratas dispostos e competentes”, coordenados por uma “líder com capital político”, que foram injustamente dispensados em 2016, quando estavam justamente “remodelando toda a economia brasileira” através de “dívidas produtivas”. Poderíamos exportá-los para que ajudassem Biden nessa tarefa titânica.
O problema desses planos mirabolantes não é o fato de não serem bons ou de não partirem de bons diagnósticos. O problema desses planos é que exigem um novo ser humano, um que ainda vai nascer, virtuoso e bom. É o mesmo problema do socialismo: a ideia é boa, o problema é a implementação no mundo real dos seres humanos.