A vacinação dos prioritários

Manchete principal do Estadão hoje dá destaque à previsão de especialistas de que a vacinação dos grupos prioritários somente terminará em setembro.

Não vou aqui culpar os especialistas, pode ter sido só uma apuração mal feita, pra não variar, mas o fato é que a matéria erra o foco. Já de antemão peço escusas pelo número de recortes anexados, mas é que são várias as incongruências. Vamos fazer uma espécie de “fact checking” da reportagem.

1. “Qualquer previsão mais otimista (do que setembro) depende que sejam vacinados pelo menos um milhão de indivíduos por dia”.

A população prioritária soma 77,5 milhões de pessoas ou 155 milhões de doses. Foram administrados até o final de março 23 milhões de doses. Faltariam, portanto, 132 milhões de doses. Considerando 1 milhão de doses por dia, temos 132 dias, ou 4,5 meses, o que resulta em meados de agosto. Portanto, essa informação é verdadeira.

2. “Na sexta o número voltou a 300 mil”.

Claro, foi sexta-feira santa. E não vacinamos nos sábados, domingos e feriados. O problema, no entanto, não é falta de doses, é que se trabalha menos nesses dias. Enquanto a vacinação não ocorrer normalmente também nos sábados, domingos e feriados, dificilmente atingiremos 1 milhão de média por dia.

3. “A campanha de vacinação já foi interrompida várias vezes por falta de imunizantes”

Quando olhamos o gráfico da evolução da vacinação, vemos interrupção nos finais de semana.

Isso não é por falta de doses. Hoje temos distribuídas 44 milhões de doses contra 23 milhões aplicadas.

4. “Por causa dessas dificuldades (para aquisição de doses prontas e do IFA) frequentemente o ministério da saúde revisa para baixo o número de doses”

As revisões têm sido feitas porque a Fiocruz não consegue produzir com o IFA que já tem, não pela dificuldade de trazer IFA. Até onde entendo, estamos conseguindo importar normalmente. Tanto que a produção da Coronavac está normal. Outra frustração é a não entrega da Covax. Mas esse é um número pequeno, e não se refere a problema de aquisição por parte do governo federal, mas de não entrega de algo que já foi comprado.

5. “No dia 31, o ministro Marcelo Queiroga voltou a baixar a previsão de entrega de vacinas de 40 milhões para 25 milhões de doses”.

Leio jornal todos os dias e não vi essa notícia. No gráfico, a informação é outra: a de que o ministro baixou a previsão no sábado (dia 3) para 30 milhões. É 25 ou 30 milhões? De qualquer forma, a última previsão para abril que eu tinha era de 36 milhões de doses e não 40 milhões. No gráfico apresentado (tendo como fonte o próprio ministério da saúde), aparece 39 milhões. Enfim, é tanto número desencontrado que fica difícil fazer qualquer estimativa com base no que a reportagem apresenta.

6. “Se a gente conseguisse chegar a 1,5 milhões de vacinados por dia […] daria para concluir todas as prioridades até agosto, setembro” (Pedro Halla, epidemiologista)

Se o ritmo fosse de 1,5 milhão por dia, chegaríamos ao fim das prioridades em 3 meses, final de junho, não “agosto, setembro”.

7. “Para metade da população receber […] duas doses até o meio do ano, seriam praticamente 2 milhões por dia” (Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da rede Análise Covid-19)

A conta está correta. O problema é o que ela está fazendo na reportagem sobre as prioridades. As prioridades representam 1/3 da população, não metade. Por que fazer a conta com metade? Mistério.

8. “Só conseguiremos ter vacinação em massa sustentada em setembro. Será quando o Brasil já estará produzindo o seu IFA e não precisará importa-lo” (Chrystina Barros, integrante do Comitê de Combate ao Coronavírus da UFRJ)

Novamente, não me parece que o problema seja de importação dos insumos, mas de capacidade de produção da Fiocruz. A produção do IFA local só vai funcionar se a Fiocruz “consertar a máquina”

Conclusão: a reportagem considera que o cronograma de entrega representado pelo gráfico que tem como fonte o ministério da saúde não será cumprido. Se os números que estão lá forem cumpridos, teremos doses suficientes para a vacinação de todo o grupo prioritário (duas doses) até meados de junho. Para tanto, duas coisas são necessárias:

1) Que a Fiocruz consiga produzir o montante prometido (o problema não parece estar na importação do IFA) e

2) Que Estados e municípios consigam elevar a média de vacinação para 1,5 milhão por dia, contando sábados, domingos e feriados. Talvez não tenham feito isso ainda porque não sentem segurança no delivery da Fiocruz. O fato é que estamos vacinando (considerando as duas doses), na média, 650 mil/dia nos últimos 7 dias. Precisamos mais que dobrar esse ritmo.

Síndrome Respiratória Aguda Grave: 2020 vs. 2009

Fui dar uma olhada no site da Fiocruz, o InfoGripe, com os agora resultados definitivos da Covid-19 em 2020. São várias e diversas conclusões interessantes.

Este site é bem interessante porque fornece várias informações que você não encontra em nenhum outro lugar: histórico de doenças respiratórias, estratificação por idade e por gênero, evolução temporal, distribuição geográfica, etc.

Comecemos pela comparação entre esta epidemia de 2020 com a epidemia de H1N1 em 2009. Para poder comparar, considerei o total de óbitos por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que inclui a Covid e outras doenças respiratórias. Como não há motivo para crer que houve uma piora dessas outras doenças (na verdade deve ter havido uma melhora, devido às medidas de distanciamento social), a diferença entre 2009 e 2020 deve se atribuir somente à Covid.

Observe como a curva da H1N1 é muito mais aguda, atingindo o pico rapidamente na 28a semana epidemiológica (3a semana de julho, que corresponde à sazonalidade normal da gripe), caindo rapidamente depois disso. Já no caso da Covid-19, houve um aumento de óbitos que demorou cerca de 7 semanas para atingir o pico, para depois cair muito mais lentamente. Este pico foi na 18a semana epidemiológica, primeira semana de maio, o que não corresponde à sazonalidade da gripe comum. E o pior: houve uma retomada a partir da 45a semana epidemiológica (2a semana de novembro), que não tem NADA a ver com sazonalidade gripal. E estamos atingindo novo pico agora em março, em pleno verão. Ou seja, acho que já ficou claro que não se trata de uma gripe como outra qualquer, como era a H1N1.

Outro ponto: observe a escala desses gráficos. O pico em 2009 foi de 0,14 óbitos/100 mil habitantes/semana, enquanto o pico em 2020 foi de 3,6 óbitos/100 mil/semana, 25 vezes maior. O total de óbitos não está nestes gráficos, mas está no site: em 2009 tivemos um total de 2.297 óbitos por SRAG; em 2020 foram 294.179, a bagatela de 128 vezes maior. O número total é várias vezes maior do que o pico porque, como disse anteriormente, a curva demorou mais a subir e demorou mais cair, além de termos uma retomada no final do ano, fazendo com que a área debaixo da curva (que é o número total de óbitos) fosse bem maior em 2020 do que em 2009.

Uma observação sobre este número de 294.179 óbitos. No site da Fiocruz, é possível separar o número de óbitos por Covid do número de óbitos por influenza: por Covid foram 195.916 (número próximo aos 194.949 reportados pelo Ministério da Saúde em 31/12/2020), enquanto os óbitos por gripe foram meros 310. Onde está a diferença de quase 100 mil óbitos não classificados como Covid ou como gripe? Não sei. São mortes por SRAG sem diagnóstico. Será que este número de óbitos por Covid está sub-avaliado? Fica a questão.

Agora vamos a uma comparação por idade. Sabemos que a Covid afetou mais os mais velhos. Mas, quanto mais?

Veja no gráfico abaixo que a grande concentração de óbitos por Covid se deu na faixa de 60 anos para cima, ao passo que, em 2009, os óbitos estão bem distribuídos em todas as faixas etárias. Mais uma evidência de que não se trata de uma gripe comum, mas algo diferente.

Ainda analisando os efeitos nas faixas etárias, elaborei outro gráfico para mostrar o drama dos mais velhos: o número de óbitos acumulados por faixa etária. Observe que, enquanto o total brasileiro foi de 1.432 óbitos/milhão por SRAG, na faixa dos 60+ o número total atingiu incríveis 7.759 óbitos/milhão.

Finalmente, vamos a uma análise por gênero, que, pelo menos para mim, foi uma surpresa: enquanto a H1N1 vitimou proporcionalmente mais mulheres, a Covid mata proporcionalmente mais os homens. É o que podemos observar no gráfico de Proporção por Gênero. Portanto, se você pertence ao gênero masculino, tome mais cuidado: o vírus gosta mais de você.

Se não fosse o Dória…

Então, é isso: não fosse a vachina do Doria, estaríamos assistindo o mundo inteiro vacinando, esperando a nossa vez em março. Se não chovesse.

Nem acho que seja uma questão ideológica anti-vacina. Parece-me mais incompetência mesmo. Falta de foco e de gestão de prioridades.

Pode até ser que a ideologia tenha levado à incompetência. Mas pouco importa a existência e a ordem dos fatores. O fato é que estamos nas mãos de amadores na gestão da vacinação.

Síndrome Respiratória Aguda Grave

O site Info Gripe, mantido pela Fiocruz, apresenta estatísticas bastante completas de hospitalizações por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave). Isso inclui todas as doenças respiratórias, incluindo a Covid-19, mesmo que não notificada. Coloquei aqui 3 gráficos retirados do site, dos anos de 2009, 2016 e 2020.

Em primeiro lugar, observe como, em cada gráfico, há um “monte” no meio, com camadas verde, amarela e laranja. Esse “monte” representa os casos sazonais de gripe, com o pico no meio do ano. As cores representam a severidade crescente do surto. Este nível de severidade é a média dos anos “normais”: 2010, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2017. Em 2009 e 2016 tivemos picos anormais, enquanto em 2011, 2018 e 2019 tivemos números bem abaixo da média.

Cada número no eixo x representa uma semana epidemiológica. Por isso, o gráfico vai até o número 52.Comecemos pelo gráfico de 2009. Este é o surto de H1N1. Observe que ele começa a acelerar na 28a semana epidemiológica, fazendo o seu pico 3 semanas depois. O pico da gripe sazonal é na 27a semana epidemiológica. ou um mês antes. Portanto, a H1N1 não respeitou a sazonalidade.

Em 2016, novo surto de H1N1, desta vez começando a acelerar na 9a semana e atingindo o pico 4 semanas depois. Bem distante, portanto, do “pico sazonal”. Observe também a escala: enquanto em 2009 o pico foi em 5,75 hospitalizações para cada 100 mil habitantes, em 2016 o pico foi 1,5. Portanto, em 2016 foi um “mini-surto”, comparado com 2009.Vamos para 2020. Em primeiro lugar, observe que a linha é vermelha, ladeada por duas linhas pontilhadas pretas. Isso acontece porque se trata de uma estimativa estatística, que depois se confirmará com os dados reais. Nos gráficos dos outros anos, já se trata de dados reais. Observe que a aceleração começou na 11a semana (08/03 a 15/03). Os dados vão até a 14a semana (27/03 a 04/04). Portanto, temos uma defasagem de uma semana nos dados, pois a 15a semana terminou ontem.

E o que podemos observar nos dados de 2020? Algumas coisas:

1) Se tivéssemos a mesma tendência de 2009, teríamos atingido o pico na 14a semana (27/03 a 04/04), com 5,75 hospitalizações/cem mil habitantes. No entanto, na 13a semana estávamos com uma estimativa de hospitalizações entre 2,75 e 6,25, com valor esperado de 4,25. Ou seja, houve claramente um achatamento da curva de hospitalizações. Tivemos 1,5 hospitalizações a menos do que a crise de H1N1 de 2009, na mesma época. Cabe ressaltar, no entanto, que esta estimativa é ainda bastante preliminar.

2) O surto não tem nada a ver com sazonalidade. Observe como a gripe sazonal provoca um número muito pequeno de hospitalizações se comparado com os surtos de 2009 e agora o de 2020. São 0,75 para cada cem mil habitantes no nível laranja, que é de atenção. Portanto, não cabe o receio de segurar o surto agora para deixá-lo crescer depois, coincidindo com a gripe sazonal. Os números da epidemia são tão maiores do que os da gripe sazonal, que este tipo de cálculo perde o sentido.

3) Se não houvesse “achatamento”, onde estaríamos agora? Se a regra fosse a mesma da H1N1, provavelmente estaríamos hoje (14a semana) em 7,5 hospitalizações/milhão de habitantes, ultrapassando o pico da H1N1. Mas o problema não é esse. O problema é onde iríamos parar. O pico da H1N1 ocorreu três semanas depois de iniciada a aceleração, pois se tratava de uma variante da influenza, que começou a ser tratada com tamiflu, remédio já conhecido. No caso do coronavírus, estamos tateando ainda, pois não é um tipo de influenza. Provavelmente, o pico não teria chegado ainda, não fossem as medidas de contingenciamento.

Em um post anterior, eu havia afirmado que acompanhar o número de hospitalizações poderia dar uma noção melhor do andamento da epidemia. Estas informações podem ajudar a entender o problema, ainda que sejam estimativas defasadas.

Saúde não é mercadoria, mas custa caro

Em artigo de hoje no Valor, o pesquisador da Fiocruz, Nilson do Rosário Costa, defende uma maior presença do Estado na assistência à saúde. O título do artigo já diz tudo: “Saúde não é mercadoria”, reverberando a presidente do STF, Carmen Lucia.

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Segundo o autor, a saúde não pode ser tratada como uma mercadoria como outra qualquer. A sua falta pode ter efeitos devastadores na vida das pessoas, e a sua necessidade pode chegar sem aviso prévio, acabando com as finanças familiares. Além disso, quem manda no tratamento são os médicos; ou seja, o consumidor não tem muita escolha sobre o que vai precisar comprar.

O autor, no entanto, reconhece que o SUS não tem sido uma boa resposta a essa demanda. Para ele, os gastos estatais com saúde deveriam aumentar substancialmente, para diminuir a dependência dos planos privados, “que são mais caros para os grupos de maior risco”, que seriam justamente os que mais precisam de assistência.

Vejamos.

O gastos da União com saúde devem totalizar algo como R$ 125 bilhões em 2018. Dividindo-se este valor por 205 milhões (população brasileira), temos o montante aproximado de R$50/mês/habitante.

Ou seja, o SUS equivale a um plano de saúde que cobrasse, na média, R$50 de mensalidade. Quanto teria que ser investido adicionalmente para que o sistema público pudesse oferecer serviços minimamente aceitáveis?

Qualquer plano mequetrefe cobra, no mínimo, R$200/mês. Estou aqui fazendo uma média entre os mais jovens e os mais velhos. Quem paga plano de saúde sabe que um plano de R$200/mês deve ser uma josta, mas é só para fazer o exercício.

Digamos, então, que aumentássemos os gastos em saúde para R$200/mês/habitante. Isso significaria quase R$400 bilhões a mais em gastos nessa rubrica. Sem cortar nada de outras rubricas, isso significaria um aumento da carga tributária de aproximadamente 6% do PIB. Obviamente, inviável. E isso, para ter um plano de saúde, repito, beeeeem mequetrefe.

Qual a solução? Não tem solução. O Brasil é um país pobre. Qualquer gasto com saúde sempre ficará muito aquém das necessidades. Enriquecer é a solução.

Uma forma de mitigar o problema é deixar que o mercado distribua os riscos através do oferecimento de seguros, e deixar aos consumidores a escolha de que tipo de risco querem correr. E garantir que, uma vez que o consumidor tenha assumido um determinado tipo de risco, a operadora não seja obrigada judicialmente a cobrir aquele risco a posteriori. Dessa forma, com os riscos devidamente precificados, o sistema seria mais eficiente, maximizando a utilização dos parcos recursos existentes.

A outra alternativa, em que papai Estado paga tudo para todos, só existe na cabeça de quem acha que o governo cria o seu próprio dinheiro.