Político nunca mente. Político diz a verdade nas entrelinhas. Cabe ao interlocutor ler nessas entrelinhas. Tomar a valor de face o que político diz é querer ser enganado. Os que exigem sincericidio de políticos chamam de hipócrita o discurso que, como dizia Roberto Campos a respeito de biquínis e estatísticas, “mostram tudo e escondem o essencial”. A entrevista de Flávio Bolsonaro, hoje, no Estadão, é um exemplo acabado de mentira sincera. Destaco dois trechos.
No primeiro, o senador afirma que o pacote de bondades em tramitação no Congresso não tem nada a ver com as eleições, tendo como único objetivo “ajudar os mais pobres”.
Claro, claro. A coisa fica ainda mais ridícula quando vemos o bolsonarismo tentando nos convencer de que o país está indo de vento em popa, crescendo e gerando empregos. Pra que, então, o tal pacote? Mas nada seria capaz de fazer o político cometer sincericidio e admitir o fim eleitoreiro das medidas. Essa interpretação cabe ao interlocutor.
No segundo trecho, o senador afirma que Trump não teve nada a ver com a invasão do Capitólio. Seus seguidores simplesmente se insurgiram contra denúncias de fraudes eleitorais e o presidente não teria como controlá-los.
Aqui, a entrelinha não é tão explícita quanto no caso da PEC eleitoreira, mas também não é difícil de ler. Donald Trump passou o seu mandato inteiro desqualificando o sistema eleitoral norte-americano e, durante as eleições, repercutiu dezenas de boatos falsos a respeito de fraudes. (Tive a oportunidade de escrever um longo post a respeito, esclarecendo – para aqueles que querem ser esclarecidos – sobre cada um desses boatos). Além disso, o ainda presidente americano juntou uma galera ao lado do Capitólio para pressionar os senadores a não reconhecerem o resultado das eleições. Claro, ninguém ouviu uma ordem explícita do ex-presidente para a invasão. E precisava?
O paralelo com a situação atual no Brasil é cristalino. Ao dizer que o presidente não tem como “controlar seus seguidores”, o senador quer nos fazer crer que, depois de passar 4 anos dizendo que as eleições de 2018 foram fraudadas, que o sistema eleitoral brasileiro é vulnerável e, provavelmente, durante as eleições, espalhar boatos de fraudes, o presidente não terá qualquer responsabilidade por invasões a lá Capitólio ou qualquer outra manifestação violenta. Como se fosse necessária uma ordem explícita.
É óbvio que Flávio Bolsonaro nunca vai dizer explicitamente que a PEC em tramitação no Congresso tem fim unicamente eleitoral, ou que seu pai seria o responsável por manifestações violentas pós-eleições. Não precisa. Basta ler nas entrelinhas.