Nenhum governador brasileiro visitou Lula tantas vezes quanto o presidente da Argentina, Alberto Fernandez. Ontem, foi a vez de seu ministro da Economia, Sérgio Massa, na quinta visita de alto nível ao País de um dignatário argentino em 8 meses.
Dessa vez, Massa não saiu de mãos abanando. Obteve uma linha de financiamento às exportações no valor de 600 milhões de dólares, que será garantida pelo Banco do Brasil, que, por sua vez, será garantida pelo CAF – Cooperação Andina de Fomento, uma espécie de BNDES da América do Sul.
O curioso é que esse acordo só foi possível porque a Argentina concluiu a sexta revisão do seu acordo com o FMI, o que permitiu o desembolso, por parte do Fundo, de uma parcela de US$ 7,5 bilhões, dinheiro esse que serviu para quitar parcelas de dívidas com a própria CAF, além de China e Qatar. E o CAF havia emprestado o dinheiro para que a Argentina quitasse parcela da dívida que tinha com o próprio FMI. Ou seja, a Argentina está naquela fase de pagar o saldo do cheque especial de um banco entrando no cheque especial de outro banco.
As reservas da Argentina estão negativas. O que significa que, descontando o empréstimo do FMI e a linha de swap cambial com a China, o governo da Argentina está sem dólares para pagar por importações ou para servir sua dívida externa. É como se alguém fizesse o supermercado com o saldo do cheque especial.
A última renegociação com o FMI, em meados de 2022, teve condições extremamente brandas, sendo elogiada até por Joseph Stiglitz, um desenvolvimentista acima de qualquer suspeita. Pois bem. Mesmo essas condições não foram cumpridas. Nessa última revisão, a meta de chegar ao fim do ano com reservas líquidas positivas de US$ 3 bilhões foi revisada para zero. Ninguém realmente acredita que mesmo essa condição abrandada será cumprida. E o mesmo ocorre com as metas monetárias e fiscais. A verdade é que o FMI, que deveria ajudar países com problemas conjunturais de liquidez, se meteu com um empréstimo gigante em um país com problemas de solvência sem as mínimas condições políticas de resolvê-los (pausa para um merchã: no meu livro Descomplicando o Economês, explico a diferença entre problema de liquidez e de solvência). Lula, como sempre, usa o FMI como boi de piranha, mas a verdade é que nunca o FMI foi tão generoso com qualquer outro país.
Massa foi recebido por Haddad. Ambos representam um pensamento econômico que levou a Argentina aonde ela está agora. A diferença é que Haddad herdou uma economia construída por FHC e depois consertada por Temer. Se dependesse de Dilma, era só uma questão de tempo para chegarmos aonde a Argentina está hoje. Haddad sabe disso, e por isso diz uma coisa mas faz outra: o Brasil de Lula e Haddad tem uma regra de limite de gastos, manteve a meta de inflação em 3% e reajustou os preços dos combustíveis quando precisou fazê-lo. O exemplo da Argentina é suficientemente poderoso para manter os nossos desenvolvimentistas na linha, ainda que o discurso continue a ser de grêmio estudantil. Como diria Guimarães Rosa, Haddad faz o que faz não por boniteza, mas por precisão. Que seja. Melhor assim do que se deixar convencer pelo próprio discurso.
A boneca Emília, criação do genial Monteiro Lobato, de vez em quando desatava a falar bobagens. Tia Nastácia, a boa empregada de Dona Benta, dizia que, nesses momentos, Emília abria a “torneirinha de asneiras”.
Lembrei da personagem ao ler a reportagem abaixo, que transcreve trechos de uma entrevista de Lula para jornalistas estrangeiros. Tentei destacar um ou outro trecho, mas desisti. São muitas e variadas as asneiras, que botariam Emília no chinelo. Colo, então, a matéria completa, para que vocês vejam que não estou exagerando. A “torneirinha de asneiras” de Lula está mais para uma “lavadora de alta pressão de asneiras”.
Trecho da coluna de Lourival Sant’Anna sobre a visita de Fernández a Lula (lembre-se, não foi da Argentina ao Brasil) narra as dificuldades de se chegar a uma “equação” que permita financiar os argentinos sem correr o risco Argentina. Trata-se de encontrar a quadratura do círculo. Nem a solução de sempre, a China, sempre disposta a ajudar generosamente os países vítimas do imperialismo, parece disponível no momento. Com a China, só na base do escambo.
A propósito, reportagem da Bloomberg nessa semana aborda justamente esse ponto. Em uma conferência internacional, a presidente do FMI, a búlgara Kristalina Georgieva, dá a entender que a China estaria mudando a sua postura em relação aos países que não podem pagar os seus empréstimos. Segundo Georgieva, os chineses estariam mais dispostos a “negociar”, o que pressupõe que os chineses não estão tendo a mesma boa vontade do FMI. Países como a Zâmbia, em que 75% da dívida é com os chineses, estão com a faca chinesa no pescoço.
O FMI foi criado, ente outras coisas, para ajudar na estabilização financeira de países que passam por dificuldades. A ideia é emprestar dinheiro e ajudar na implementação de medidas saneadoras. Se um país particular fizesse isso (por exemplo, EUA ou China), poderia ser acusado de ingerência sobre os assuntos internos de outro país, além das resistências políticas domésticas, em países democráticos, a iniciativas desse tipo. O FMI, representando o conjunto dos países, tem essa missão e legitimidade. Além disso, cabe destacar, o FMI não age sem um convite formal do país a ser ajudado.
A China, por razões geopolíticas, emprestou dinheiro como se não houvesse amanhã para uma série de países, principalmente na África, e agora está descobrindo que as elites desses países pegaram o dinheiro e se empirulitaram, como diria o Didi. A China não tem vocação para FMI e, portanto, não tem ânimo de negociação. O que Georgieva está dizendo, em sua linguagem diplomática, é que é bem mais fácil negociar com o FMI do que com a China. Talvez Lula pudesse bater um papo com seu novo amigo, Xi Jinping, sobre facas no pescoço.
Tentei recortar um ou outro trecho da matéria acima, mas logo notei que se trata de uma peça única de rara beleza, desde o seu título, passando pela linha fina e pela legenda da foto, até o conteúdo todo.
Vamos começar por um detalhe pitoresco: Lula se reuniu durante 1-2-3-4 (quatro) horas com sua contraparte argentina. Quatro horas! Quando tenho reunião no trabalho, passou de uma hora a reunião começa a ficar terrivelmente improdutiva. Fico imaginando quatro horas de reunião. E, claro, Lula está com a agenda doméstica sussa, tem quatro horas do filé mignon do seu dia para gastar com o companheiro.
E foram quatro horas porque a visita foi só “de cortesia”, não foi oficial. Foi como se o vizinho aparecesse no meio da noite para pedir uma xícara de açúcar pra completar a receita do bolo. Quatro horas pra encontrar onde a empregada guarda esse diacho do açúcar. E não encontrou. Lula afirmou que Fernandez sai sem o açúcar, quer dizer, o dinheiro, mas “com muita disposição política”.
“Disposição política” deve ser o pito que Lula prometeu dar no FMI. “Tire a faca do pescoço do meu amigo!”, Lula dirá, assim que encontrar alguém do FMI. O FMI emprestou US$ 42 bilhões para os argentinos em condições elogiadas até por Joseph Stiglitz, um verdadeiro negócio de pai para filho. Hoje, esse dinheiro já sumiu, e os argentinos não estão pagando nada. A faca, na verdade, está com Fernández.
Não satisfeito de ter gasto 4 horas de seu dia para prometer “disposição política”, Lula enviará Haddad para Buenos Aires na semana que vem. Outro que também está sem nada para fazer aqui no Brasil, Haddad vai gastar o seu tempo pra tentar resolver o problema dos argentinos. Claro, como sabemos, trata-se de “linhas para exportação como a China faz”, então a coisa será travestida de ajuda aos exportadores. Mas, lembre-se sempre de perguntar: se os argentinos não arrumarem dólares para pagar, quem ficará com o mico?
No final, um sopro de esperança: Dilma pode dar uma mãozinha com linhas do banco dos BRICs. Dessa forma, repartiríamos o prejuízo em 4, com nossos companheiros dessa barca furada. Ao contrário do FMI, o banco dos BRICs não colocaria a faca no pescoço dos hermanos.
Enfim, de tudo isso, parece ficar cada vez mais claro que está difícil de achar o açúcar. O roto não consegue ajudar o esfarrapado, a não ser com um ombro companheiro, o que Lula chama de “disposição política”. Ele promete “todo e qualquer sacrifício”. Só não disse de quem.
Há um ano, eu comentava aqui artigo do economista Joseph Stieglitz, elogiando o acordo do FMI com a Argentina. Segundo o Nobel, pela primeira vez o FMI estava agindo corretamente, fechando um acordo “flexível”, em que o país não seria submetido a um “arrocho” sem sentido.
Bem, como era previsível, a tal “flexibilidade” não foi suficiente. Fernández vai pedir o penico para o FMI e, para tanto, pediu a ajuda de Biden. Pessoas e governos, quando se trata de dívida, costumam agir da mesma forma: trabalham no limite das possibilidades. Mais “flexibilidade” significa limite maior. E, não tenha dúvida, esse limite será utilizado. Daí, quando acontece um “imprevisto” (no caso, a maior seca dos últimos 90 anos), não há espaço de manobra. Se tem algo previsível, é que sempre ocorrerão imprevistos, seja na vida das pessoas, seja na vida dos governos.
Ao FMI não restará outra alternativa, a não ser ”flexibilizar” ainda mais o maior acordo da história com algum país, no que será novamente aplaudido por Stieglitz e seus amigos. Até que outro ”imprevisto” ocorra, e outra “flexibilização” seja solicitada. Enquanto isso, a lição de casa da austeridade vai ficando para depois, pois sempre teremos Paris, quer dizer, Washington.
Alckmin tem pouco tempo de convivência íntima com Lula e o PT, mas o ex-governador é inteligente e aprende rápido. Sua capacidade de enganar com números desenvolveu-se de maneira espantosa. Esse tuíte alcança o estado da arte da mistificação, como só os mais habilidosos artistas do PT são capazes de fazer. Vejamos.
Hoje foi publicado um estudo com base em dados do FMI, mostrando que o PIB brasileiro vem perdendo participação no PIB global desde 1980. Na reportagem da CNN, um ”especialista” afirma que essa participação veio crescendo até 2012, para depois despencar.
Alckmin aproveita a deixa e afirma, sem enrubescer, que o governo Lula deixou um país em crescimento, que depois foi destruído por Bolsonaro. No entanto, basta uma simples checagem nos números para verificar que se trata de uma grossa mentira.
No gráfico abaixo, reproduzo o estudo com base em dados do FMI.
Podemos observar que o PT pegou o Brasil com participação de 3,1% no PIB mundial (número de 2002) e deixou o governo com participação de 2,5% (número de 2016). Houve, de fato, um leve crescimento entre 2006 e 2011 (de 3,0% para 3,1%), mesmo nível de 2002, para depois despencar nos anos seguintes. Hoje, essa participação é de 2,3%, não muito diferente dos 2,5% do fim do governo PT.
O fato é que hoje temos pouco mais da metade da relevância no PIB global que tínhamos na década de 80. Essa participação despencou em dois momentos: final da década de 80 / início da década de 90, com a hiperinflação, quando passou de 4% para pouco mais de 3%, e no final do governo Dilma, quando passou de 3% para cerca de 2,5%. Houve dois momentos de “respiro”: no pós plano Real e no superciclo de commodities. Mas a tendência de declínio é clara durante todo o processo, independentemente do governo de plantão.
Não vou aqui entrar na discussão de porque isso aconteceu. O objetivo foi só demonstrar que ficamos mais pobres em relação ao mundo, e que o governo do PT colaborou para o processo. Todas as maravilhas prometidas por todos governos nos últimos 40 anos não foram capazes de reverter a tendência. E, sem querer soar pessimista, pelo andar da carruagem, os próximos 40 anos não parecem mais promissores.
O economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia e um dos mais famosos defensores de teorias desenvolvimentistas no mundo, escreve artigo publicado no Valor Econômico de 14/03, comemorando o novo acordo entre a Argentina e o FMI. O economista elogia a nova postura do FMI, que estaria privilegiando o crescimento econômico ao invés da costumeira austeridade para resolver o problema da dívida argentina. Segundo o artigo de Stiglitz, a austeridade se mostrou um veneno que somente piorou a vida do paciente. Agora, a nova abordagem tem muito mais chance de sucesso por não ignorar o componente político, pois atende às necessidades dos argentinos mais pobres.
Vamos começar pelo começo. Tanto economistas do mainstream quanto os desenvolvimentistas vão concordar que não é possível viver eternamente em déficit, a não ser que se encontre um financiador benévolo que cubra as necessidades de caixa sem contrapartidas. Ou, o que é mais comum, que se imprima dinheiro (orçamento monetário) para cobrir o déficit, gerando inflação. O que difere ortodoxos de heterodoxos é como resolver o problema do déficit eterno. Os ortodoxos defendem a redução de gastos. Já os desenvolvimentistas acreditam que o déficit deve ser coberto com as receitas geradas pelo crescimento econômico. E, para fomentar o crescimento econômico, é preciso gastar mais, não menos. Vamos explorar um pouco essa ideia.
Imagine que um país tenha um déficit primário (antes do pagamento dos juros) de 3% do PIB. Este déficit, por construção, não está sendo utilizado para fomentar o crescimento econômico pois, se estivesse, em tese, estaria gerando os recursos para o fechamento desse mesmo déficit. Como o déficit se repete ano após ano, claramente não está funcionando como indutor do crescimento. Se estivesse, repito, o déficit estaria fechando. Então, das duas uma: ou este déficit de 3% deveria ser usado para fomentar o crescimento econômico, ou o déficit deveria ser aumentado para fomentar o crescimento econômico. Manter o déficit em 3% significa retirar recursos de algum lugar para direcionar ao fomento do crescimento. Mas isso significa encontrar gastos estatais que podem ser cortados, o que normalmente esbarra na preservação de “direitos adquiridos” ou em cortes de programas sociais. Como isso geralmente é politicamente inviável, resta aumentar o déficit. Digamos, então, que o déficit seja aumentado de 3% para 4%, e esse 1% adicional seja usado em programas estatais de fomento ao crescimento. Estes programas teriam um “efeito multiplicador”, que gerariam para a sociedade mais do que os 1% investidos. No caso, teriam que gerar 4 vezes mais, para pagar o 1% de déficit adicional mais os 3% de déficit originais. Haja multiplicação dos pães! Poderíamos aumentar ainda mais o déficit, o que diminuiria o efeito multiplicador necessário para que o plano desse certo. Mas aí esbarraríamos em outra questão: a eficiência do investimento estatal.
Para que o esquema todo funcionasse, seria necessário que o governo investisse o déficit em empreendimentos com um retorno excepcional. Sabemos, no entanto, que a eficiência dos investimentos feitos por governos é prejudicada por escolhas políticas que se sobrepõem às escolhas técnicas, falta de agilidade em função das amarras típicas do uso do dinheiro público e corrupção. Portanto, e é essa experiência que temos de programas como o PAC, FIES, fomento da indústria naval e de sondas petrolíferas, campeões nacionais e uma longa lista de etceteras, o que normalmente temos é um multiplicador negativo. Em outras palavras, investimentos governamentais normalmente queimam dinheiro ao invés de multiplicarem dinheiro. Uma boa parte da recessão que nos assolou no biênio 2015/16 teve como origem os investimentos desenvolvimentistas dos anos anteriores, que cobraram o seu preço. Claro, os desenvolvimentistas dirão que o culpado pela recessão foram os esforços ortodoxos feitos em 2015, eliminando gastos que cortaram o oxigênio do crescimento econômico. Mas nem Dilma Rousseff, a rainha dos desenvolvimentistas, aguentou a cobrança dos credores que batiam à porta exigindo taxas de juros maiores se algo não fosse feito. Os credores não costumam entender a lógica do multiplicador. Sigamos.
Existe um pequeno elemento que normalmente é esquecido nas propostas dos desenvolvimentistas: a inflação. Stiglitz cita a inflação “en passant”, concedendo que “pode ser um problema para o funcionamento de uma economia de mercado”.
“Pode ser um problema”, vejam só.
A inflação, como sabemos, é o imposto mais perverso que existe, pois corrói a renda das pessoas na proporção inversa de sua riqueza. Não se trata somente do bom funcionamento dos mercados, que também é o caso. Trata-se de uma questão de justiça social, defendida com tanto denodo pelos desenvolvimentistas. Déficits são inflacionários, investimentos governamentais malfeitos são inflacionários. Não é à toa que a inflação seja invariavelmente o preço cobrado pelas políticas desenvolvimentistas. Mas este é somente um detalhe, tratado “en passant” nesse tipo de proposta. A Argentina tem a quarta maior inflação do mundo, cerca de 50% ao ano, perdendo somente para Venezuela (outra campeã de políticas desenvolvimentistas), Zimbabwe e Sudão.
Voltemos ao novo acordo com o FMI. Este acordo é resultado de uma renegociação do acordo fechado pelo ex-presidente Maurício Macri em 2018, que por sua vez foi fechado para cobrir os empréstimos tomados no exterior para fazer frente ao duplo déficit fiscal e de conta corrente do país, pois o governo Macri se recusou a usar os instrumentos heterodoxos (principalmente imprimir dinheiro) para fechar a conta. Como o programa de austeridade de Macri não funcionou (os desenvolvimentistas dirão que nunca funcionam, os ortodoxos dirão que foi muito pouco, muito tarde), Macri teve que recorrer ao FMI. E, agora, estamos em meio à renegociação dessa dívida. A Argentina pretende usar o dinheiro do novo acordo para pagar o serviço da dívida com o próprio FMI e cobrir o déficit fiscal. A novidade está nas condicionalidades, muito mais leves do que no acordo anterior. Por exemplo, no campo fiscal, existem metas de diminuição do déficit primário ao longo do tempo, mas garantindo um “crescimento real das despesas” de modo a permitir o investimento em infraestrutura e ciência e tecnologia (vide carta de intenções, item 12). São várias outras “condicionalidades” que condicionam pouco. E, como cereja do bolo, a inflação está sendo controlada pela assinatura de um acordo com mais de 150 empresas para garantir aumento de preços no máximo de 2% ao mês em produtos básicos (item 21 do mesmo documento). O FMI definitivamente não é mais o mesmo.
No dizer de Alejandro Werner, ex-diretor do FMI para o hemisfério ocidental, em artigo na Americas Quaterly crítico ao acordo, o problema da Argentina é a “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de um acordo de como financiá-lo”. Se isso não for resolvido, todo o resto é paliativo, e não há crescimento econômico que resolva. A questão é saber quanto tempo o FMI vai levar para descobrir que continua em uma barca furada. Stiglitz, em seu artigo, recomenda que o FMI tenha paciência com a Argentina e não desista ao primeiro sinal de “descarrilamento”, ou seja, de não cumprimento das metas de déficit. Afinal, segundo o prêmio Nobel, esse não cumprimento só pode ser devido a choques externos e não a dificuldades políticas domésticas, e o país não pode ser abandonado simplesmente por não ter cumprido metas que estão acima de sua capacidade. Este, afinal, é o sonho de todo desenvolvimentista: encontrar um financiador eterno, que não exige metas para continuar emprestando dinheiro ad aeternum. Ou até o efeito multiplicador funcionar.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, apela à “consciência” da comunidade internacional para fechar um acordo com o FMI. Seria cômico se não fosse trágico. Afinal, governos de esquerda costumam demonizar a instituição financeira multilateral, representante, segundo essa visão, dos interesses imperialistas. Mas sabe como é, na hora que falta pão, o pacto com o diabo parece barato.
Qual a dificuldade de um país como a Argentina fechar um acordo com o FMI? Apesar das histórias que se contam por aí, de que até o próprio FMI teria abandonado a tara pela austeridade fiscal, a realidade nua e crua é que, para soltar o dinheiro, o FMI exige do governo argentino um plano de… austeridade fiscal. Difícil, não é mesmo?
Lula se gaba de ter sido em seu governo que pagamos a dívida com o FMI e termos dispensado a sua ajuda de uma vez por todas. É verdade. Mas um pouco de história nos permitirá entender o que, de fato, aconteceu.
Em primeiro lugar, nos será útil entender para que serve o FMI. Não é difícil. Para tanto, basta entender que esse papel pintado que nós, brasileiros e argentinos, chamamos orgulhosamente de real e peso, nossas moedas nacionais, não passam de dinheiro de banco imobiliário para transações internacionais. Não são aceitos em lugar algum (quer dizer, o real é aceito na Argentina, o que é um indicativo do buraco em que los hermanos se meteram). Então, para pagar pela importação de produtos, é necessário ter um papel pintado aceito globalmente. Isso no oficial. No paralelo, os próprios cidadãos do país não confiam mais na própria moeda, e buscam abrigo em um dinheiro garantido por um governo sério. Então, o FMI serve para emprestar dólares, para que o país continue funcionando com alguma inserção internacional.
Agora que entendemos para que serve o FMI, vamos voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para a década de 90. No Brasil tivemos a eleição de FHC e, na Argentina, de Carlos Menem. Em comum, ambos foram políticos de esquerda que implementaram programas de governo “neoliberais”, incluindo privatizações e ajuste fiscal. Ambos os governos também usaram o mesmo instrumento para estabilizar a inflação: o controle do câmbio. Os argentinos, sempre mais sanguíneos, optaram por um sistema radical, o currency board, em que a paridade do austral (a então moeda argentina) com o dólar era garantida em lei pelo próprio governo. Aqui no Brasil optamos por algo mais flexível, mais de acordo com a nossa malemolência: o Banco Central mantinha uma certa paridade do real com o dólar, mas permitia uma desvalorização de cerca de 8% ao ano. Funcionava como uma espécie de currency board, mas sem regra escrita.
No início, as experiências argentina e brasileira funcionaram bem: a inflação caiu a níveis civilizados e a classe média estava contente, podendo viajar para a Disney todo ano com o dólar barato. Mas como não há artificialidade que sempre dure, distorções começaram a se acumular nas duas economias. Como ambos os governos não fizeram a lição de casa fiscal, a inflação acumulada começou a pressionar o esquema do câmbio fixo. Bastava uma fagulha para fazer explodir o barril de pólvora. Essa fagulha veio com as grandes desvalorizações cambiais dos países asiáticos em 1997 e a quebra da Rússia em 1998. Nesse dominó, Brasil e Argentina eram as próximas pedras a cair.
E é exatamente nesse ponto da história que os destinos de Brasil e Argentina se separam. No Brasil, FHC, já no início de seu segundo mandato, decide deixar o câmbio flutuar e implementa o que se convencionou chamar de “tripé macroeconômico”: câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários. Com isso, as distorções causadas pelo câmbio fixo desaparecem, e a inflação passa a ser combatida de maneira ortodoxa, com política fiscal (superávit primário) e política monetária (taxa de juros). Lula pega esse esquema já pronto e dá continuidade por alguns anos. Isso nos deu a oportunidade de cavalgar a ascensão da China com um câmbio competitivo, o que nos permitiu acumular as reservas cambiais que temos até hoje. Esse foi o contexto do “adeus ao FMI” de que tanto Lula se orgulha.
Já na Argentina, tanto Carlos Menem, como seu sucessor, Fernando de la Rua, insistem na continuidade do currency board, apesar das já evidentes distorções causadas pelo sistema. O resto da historia é conhecida: a saída do currency board é caótica, não menos do que a saída de De La Rua pelo teto da Casa Rosada. Dois presidentes caem em seguida, até que Nestor Kirchner é eleito em 2003. À diferença de Lula, Kirchner não tem uma “herança bendita” para administrar, o que lhe deixa livre para implementar a sua agenda “desenvolvimentista” desde o início, coisa que Lula só começará a fazer no segundo mandato e em bases muito mais sólidas, construídas em vários anos de ortodoxia. A Argentina, portanto, não teve condições de surfar a onda da China, e seus problemas em conseguir moeda forte se sucedem desde então.
Essa é a história. Alberto Fernández, legítimo sucessor de Menem, De La Rua, Kirchners e Macri, é mais um presidente argentino de joelhos diante do FMI porque se recusa a (ou não tem as condições políticas para) fazer a lição de casa ortodoxa. E antes que um sorriso superior se desenhe em sua boca, saiba que o Brasil caminha, a passos lentos mas seguros, para o mesmo destino, se continuarmos a fazer de conta que controlamos as contas públicas. A realidade sempre bate à porta. Sempre.
Para a nossa total não surpresa, Alberto Fernandez nomeou um “jovem ministro heterodoxo” para a Economia, discípulo de Joseph Stiglitz, um dos dois prêmios Nobel da área (o outro é o Krugman) que defende que imprimir dinheiro faz as pessoas ficarem mais ricas.
Uma das primeiras ideias do “jovem economista” é a óbvia “reestruturação” da dívida da Argentina, nome mais bonito para calote. Essa é uma medida que qualquer governo, de qualquer coloração, tomaria, dada a completa impossibilidade do país continuar pagando uma dívida impagável. O problema é o que vem depois.
Como bom discípulo de um desenvolvimentista raiz, o “jovem economista” deverá aplicar a cartilha já conhecida: gastos governamentais para “estimular” o crescimento econômico. Daí, o crescimento geraria as receitas para o governo pagar as suas dívidas. É a velha ilusão do moto-perpétuo fiscal, que só funciona, segundo os próprios proponentes da Moderna Teoria Monetária, se o governo fosse “eficiente” nos seus gastos. Aí é que mora o problema, como todos sabemos.
O “jovem economista”, no entanto, vai enfrentar um pequeno problema: convencer o FMI a continuar a financiar déficits primários. Segundo dados do FMI, o déficit primário da Argentina chegou a 4,8% do PIB em 2016! Só para comparar, o déficit primário brasileiro atingiu o pico de 2,5% do PIB no mesmo ano, e já foi um Deus-nos-acuda. Macri, com sua abordagem “vamos devagar com o andor”, reduziu o déficit para 4,2% em 2017 e, com a piora da crise e o acordo com o FMI, teve que acelerar o ajuste, fechando 2018 com um déficit de 2,2%. Para este ano, a previsão é de um déficit de 0,6% (menos negativo que o brasileiro).
Um país que gera déficits não tem capacidade de pagar suas dívidas. A matemática, neste ponto, independe de ideologia. O que os heterodoxos propõem é que se deixe a geração de superávits mais para frente, quando a economia voltar a crescer. Muito lógica essa abordagem anti-cíclica, desde que se acreditasse que governos populistas vão realmente economizar quando a economia estiver crescendo. Aliás, qual o nível de crescimento que seria o “suficiente” para começar a gerar superávits primários? São só pequenos “detalhes”.
Stiglitz sempre foi crítico aos termos desse acordo com o FMI. Para ele, essa abordagem ortodoxa não levaria a Argentina a lugar nenhum. Bem, agora teremos a oportunidade de ver o “jovem economista heterodoxo” aplicando as ideias de Stiglitz na vida real. Na minha bola de cristal, caso o FMI continue dando suporte, vejo um surto de crescimento econômico de curto prazo, seguido de nova crise da dívida, com empobrecimento geral da população. Esse é o verdadeiro moto perpétuo dos heterodoxos.
Artigo hoje no Valor, basicamente defendendo que o FMI deveria suportar os déficits fiscais da Argentina enquanto o país não volte a crescer. Afinal, a austeridade já se mostrou deletéria, e é hora de tentar “outra coisa”. Como se essa “outra coisa” não tivesse levado a Argentina para o buraco onde se encontra.
Tenho um amigo que tem primos argentinos. Segundo ele, dois deles são funcionários públicos e contam com 55 dias úteis de férias por ano, viajam para o exterior todo ano e moram bem. Ambos são peronistas e estão vibrando com a vitória de Alberto Fernandez.
Sim, o FMI deveria promover políticas fiscais expansionistas na Argentina. Afinal, como os primos do meu amigo vão conseguir manter o seu padrão de vida?