Democracia ou ditadura tecnocrática?

Interessante o sistema político francês. O presidente, se não tem apoio do Congresso para uma medida, pode decretar a medida sozinho. Esse poder pode ser usado uma vez a cada sessão parlamentar, a não ser em assuntos de finanças e Previdência, como é o caso.

Macron foi eleito com 59% dos votos. Mesmo assim, não parece democrático que decida, sozinho, os destinos da nação. Que o berço do Iluminismo e da separação de poderes tenha um dispositivo desse tipo parece, no mínimo, estranho.

Neste caso, até concordo com o mérito da questão. Mas não é esse o ponto. O povo, representado pelos parlamentares, pode não concordar, e tem o direito de não aprovar e colher, depois, os frutos de suas decisões. Em 2011, os gregos aprenderam uma lição amarga sobre os limites das finanças públicas, e parece que os franceses também querem passar pela mesma experiência. Não parece justo que um só homem prive os franceses desse tipo de experiência.

A ditadura tecnocrática parece ser o melhor regime, quando concordamos com suas decisões. No caso, somente 26% dos franceses concordam com Macron, segundo pesquisas. Os 74% que não concordam com ele estão tecnicamente errados. Mas quem se importa? A democracia é o regime em que a maioria detém o sagrado direito de errar.

Questionamentos sobre a carga tributária

Na superfície parece exatamente o mesmo fenômeno: motoristas protestando contra os preços dos combustíveis. Vivemos isto em maio.

Quando os caminhoneiros fizeram o seu movimento no Brasil, o preço dos combustíveis sofria dois choques: o preço do barril de petróleo superava os US$ 80 e o real havia se desvalorizado mais de 30% em relação ao dólar no ano. A Petrobras repassou esses dois choques para os preços dos combustíveis e estourou a insatisfação dos caminhoneiros.

Mas parece esquisito que o protesto francês tenha vindo à tona justamente quando o preço do petróleo atinge as mínimas do ano, por volta de US$ 50 o barril. Ocorre que, na França, o protesto não é contra o preço do combustível. Lá, o problema são os impostos que incidem sobre os combustíveis, com o objetivo de financiar energias limpas que não se sustentam economicamente.

Além disso, parece que a coisa se transformou em um protesto contra impostos de maneira geral. A perda de poder aquisitivo causada não pela inflação (que na França é baixíssima), mas pela alta carga de impostos, parece ter atingido algum limite.

A carga tributária da França era de 48% do PIB em 2015, segundo dados compilados pela Heritage Foundation. É uma das cargas mais altas do mundo. Superiores a este número temos apenas os paraísos do bem-estar social: Dinamarca (51%), Finlândia (54%), Noruega (55%) e Suécia (50%). Outros países europeus têm carga tributária semelhante. Por exemplo: Bélgica (48%), Alemanha (45%), Itália (44%), Áustria (43%). Por que então foi na França que explodiram esses protestos contra a carga tributária? Sei lá, talvez porque a França seja o berço das revoluções. O fato é que parece existir uma espécie de “malaise”, um mal estar geral com o tamanho da carga tributária. E isso em um país que entrega serviços públicos de primeira. Imagine no Brasil.

Estes protestos parecem-se mais com os protestos de 2013 do que com a greve dos caminhoneiros. O estopim foi o preço do ônibus, mas depois a coisa se tornou um protesto geral contra o governo e seus impostos muito mal gastos.

A carga tributária do Brasil, segundo o mesmo levantamento, era de 34% do PIB em 2015. Comparada com países semelhantes – África do Sul (27%’), Argentina (25%), México (24%), Colômbia (16%) – é excessivamente alta. É comparável com países como Japão (36%) e Reino Unido (34%). É bem mais alta, inclusive, do que a carga tributária dos Estados Unidos (26%).

De onde vem essa sensação (na verdade, uma constatação) de que a carga tributária não está adequada? Tributos nada mais são do que a transferência para o Estado de um grau de liberdade do indivíduo. Quando pagamos um imposto, delegamos ao Estado o que fazer com o fruto do nosso trabalho. Então, a revolta pode se dar em dois níveis: sobre as decisões do governo (que é quem opera as decisões do Estado) e sobre a própria delegação de poderes para o Estado. Na França, a coisa parece ser uma revolta contra o próprio conceito de imposto. No Brasil de 2013, os protestos eram mais na linha de exigir do governo serviços melhores em troca dos impostos.

O ponto disso tudo é que se trata de uma grande ilusão. Pagamos impostos para que o Estado supostamente patrocine políticas que beneficiem aqueles que não conseguem gerar receita por conta própria, como é o caso daqueles que tiveram azar na loteria da vida e nasceram em famílias mais pobres. O que ocorre, no entanto, é que o Estado é sequestrado por corporações dos mais diversos tipos, que agindo em nome dos “direitos adquiridos”, têm poder imenso sobre a máquina arrecadatória. Pagamos impostos para sustentar as aposentadorias dos mais ricos e os salários dos funcionários públicos, todos ganhando muito mais do que seus pares na iniciativa privada. Além de subsidiar os setores e indústrias que plantam seus lobbies em Brasília.

No Brasil, a coisa complica ainda mais pelo simples fato de sermos um país pobre. 34% de um PIB per capita medíocre significa uma arrecadação medíocre que, mesmo com toda a honestidade e competência do mundo, estaria longe de satisfazer o estado de bem-estar social prometido pela Constituição de 1988. Os líderes da socialdemocracia mentiram para o povo esse tempo todo, tentando nos convencer de que era possível ter serviços públicos de 1o mundo em um país com renda medíocre. E o tamanho do Estado para tentar esse objetivo enterrou de vez as chances do país de se tornar um país de renda alta.

Bolsonaro se elegeu prometendo diminuir a carga tributária. Vamos ver como se sai enfrentando as corporações. Não sou otimista. Os protestos na França parecerão um passeio no parque quando o país descobrir que diminuir a carga tributária e aplicar corretamente os impostos não são uma questão de boa vontade do governante de plantão.