Texto de João Pereira Coutinho
O futebol como ele é
Toda a gente conhece a piada: o beisebol só é suportável porque existe a cerveja.
Concordo. Já tive a experiência. Pena que os chatos, que dominam o mundo, em geral, e o esporte, em particular, queiram fazer o mesmo com o futebol.
Um exemplo: Simon Jenkins, uma das vozes lúcidas do The Guardian, sugere que os pênaltis devem ser abandonados. O futebol é um jogo de equipe?
Então é injusto fazer repousar a decisão de um jogo na sorte (ou no azar) de um indivíduo.
Jenkings não pretende regressar ao mundo pré-1978 quando os empates eram decididos por uma moeda lançada ao ar. É possível olhar para as estatísticas (a equipe que chutou mais no gol; a equipe que teve mais posse de bola; a equipa que cometeu menos faltas etc.) e decidir o vencedor. Embora a opção do colunista seja outra: alargar o tamanho do gol, por exemplo; ou, então, remover do campo o goleiro no tempo da prorrogação.
Sou contra. Frontalmente. Eu gosto dos pênaltis. Eu gosto da injustiça do momento. Eu gosto da dimensão trágica que desce ao gramado. Eu gosto da angústia dos jogadores, dos falhanços épicos, do choro e da ruína.
Nesses momentos, o futebol consegue atingir o patamar da grande arte. E a grande arte é sempre uma metáfora da vida —da beleza, do desastre, da imperfeição que a define.
E quem fala em tragédia, fala em comédia. Nunca entendi a hostilidade a Neymar. O jogador gosta de fingir? Gosta de simular dores homéricas quando alguém sopra para cima dele?Pois gosta —e ainda bem: todos os gênios têm sempre algo de farsante. Só cabeças quadradas não entendem. Uma delas, aliás, publicou um artigo ridículo no Wall Street Journal sobre as “estatísticas” de Neymar.
Na Copa, e antes do jogo fatídico com a Bélgica, o craque teve 43 quedas; esteve no chão 8 minutos e 15 segundos; o maior período de abstinência (tradução: sem fingimento) durou 34 minutos e 16 segundos (contra o México).
E parece que Neymar caiu mais quando o Brasil estava empatado (média de 9 segundos no gramado) embora tenha demorado mais tempo a recuperar quando o Brasil estava vencendo (média de 15 segundos).
Terminei o artigo com uma pergunta: que tipo de mente perturbada compila esses números?
Eu sei que tipo de mente: a mesma que recebe de braços abertos o lamentável juiz de vídeo. A esse respeito, um pouco de nostalgia: comecei a gostar de futebol por causa de um jogador português que, normalmente, não figura nos grandes livros de história. Não é um Eusébio, um Figo, um Cristiano Ronaldo. Para mim, é maior que esses todos.
O nome é Paulo Futre e lembro-me de o ver jogar, vestindo a camiseta da minha equipa (o FC Porto), com o meu saudoso pai ao lado. Teria uns 10 anos.
Recordo a velocidade. Os dribles. Os gols. Mas recordo, sobretudo e acima de tudo, o seu talento para cair na grande área. “Cair” não é o verbo; é “morrer” mesmo. Quando o defesa da equipe adversária se aproximava dele, Futre conseguia contorcer o corpo de uma forma tão agonizante que o público gritava: “Mataram-no!”
Havia choro. Havia luto. Mas, subitamente, como nos filmes de Carl Theodor Dreyer, Futre erguia-se e regressava ao mundo dos vivos. Era um milagre —e as bancadas desabavam em hossanas.
Houvesse juiz de vídeo em 1986 e esses momentos de pura cinefilia seriam impensáveis. E Futre, o primeiro Lázaro que conheci, não teria espalhado a sua arte pela Europa, onde o vi morrer mil vezes. E mil vezes ressuscitar.
Se essa Copa ensina alguma coisa é que a salvação do futebol não passa por “rigor”, “justiça” ou “verdade”. Precisa de caos, injustiça e muita falsidade. Como proceder? Três medidas urgentes.
Primeira: abandonar o juiz de vídeo. Na vida, não podemos recuar no tempo para rever e corrigir os piores momentos. Vivemos com eles porque isso é um imperativo de caráter. O mesmo vale para o futebol.
Segunda: no empate, manter os pênaltis. Ou, preferência minha, promover confrontos individuais: o jogador, radicalmente só, avança com a bola a partir do meio do campo. À sua frente, um adversário, igualmente só, da outra equipe. Manter o goleiro. No fundo, uma reatualização dos duelos medievais.
Terceira: não permitir que os jogos sejam narrados por “eruditos”. Você entende: jornalistas sem paixão que confundem futebol com física quântica. Em caso de dúvida, escutar no YouTube o jornalista da TV argentina que festejou o gol de Maradona frente a Inglaterra na Copa do México em 1986. Falo do segundo gol, quando Maradona driblou uma equipa inteira (goleiro incluso). Ali está a Maria Callas do futebol como ele é.