Qual a surpresa? Surpresa haveria se Lula continuasse com o programa de desestatizações. Surpresa houve quando o estatista de quatro costados, Itamar Franco, privatizou a CSN em 1993, a empresa símbolo do Estado empreendedor.
Na verdade, estamos colhendo os frutos da inoperância do “único governo verdadeiramente liberal da história do Brasil”. Guedes assumiu o ministério da Fazenda falando em R$ 1 trilhão em privatizações e venda de imóveis. Chegamos ao fim de seu governo com apenas uma das 15 estatais incluídas no Plano Nacional de Desestatização, a Eletrobras, que já tinha sido colocada na marca do pênalti pelo governo Temer, e só foi privatizada depois que o Congresso pendurou uma “manada” de jabutis no projeto, como recentemente se referiu ao coletivo do quelônio o ministro Haddad.
As outras 14 empresas na lista (Docas do ES, ABGF, Emgea, CBTU/BH, Trensurb, Ceagesp, Casa da Moeda, Serpro, Dataprev, Ceitec, Nuclep, Docas da BA, Correios e EBC) ficaram para as calendas. Como comparação, o “comunista” FHC vendeu “só” a Vale, todo o sistema Telebrás e mais 19 outras empresas menores em seu primeiro mandato.
Lula só está seguindo o seu programa de governo, não deveria ser surpresa para ninguém. Surpresa foi o desempenho pífio do governo Bolsonaro neste campo. Aliás, se há alguma surpresa, é positiva: Lula poderia ter retirado todas as 14 empresas da lista acima, não somente 7. Poderia, inclusive, ter encerrado o PND e estabelecido o PNE – Plano Nacional de Estatização. Seria congruente com seu programa e seu discurso. Podemos dizer que, em termos de privatizações, Lula está sendo mais liberal na prática do que no discurso. Ao contrário de Bolsonaro.
PS.: não adianta vir aqui e mostrar os bilhões de reais obtidos pela venda de participações minoritárias do BNDES, ou a venda de subsidiárias e refinarias da Petrobras. Isso não é venda de controle por parte da União, que é o objeto do PND.
Bolsonaro termina o mandato com uma popularidade líquida ligeiramente positiva (+2), segundo o Datafolha. Eu sei que tem muita desconfiança a respeito desse instituto de pesquisa, mas é o que tem a série mais longa, e serve bem para fazermos comparações intertemporais (ao longo do tempo), considerando que o viés, se houver, se mantém ao longo do tempo.
Considerando o histórico, a popularidade líquida de Bolsonaro no final de seu mandato é pior do que foi a de Itamar, FHC I, Lula I e II e Dilma I, mas é melhor do que foi a de Sarney, Collor, FHC II, Dilma II e Temer. Bolsonaro está ali na meiuca, não foi brilhante, nem tampouco um desastre, segundo a média das opiniões dos brasileiros.
Mas algo que eu gostaria de chamar a atenção não está neste gráfico. Segundo o mesmo Datafolha, em pesquisa divulgada no último dia primeiro, 49% dos brasileiros dizem esperar que Lula faça um governo ótimo ou bom, ao passo que 26% acham que o presidente fará um governo ruim ou péssimo.
Se esses mesmos percentuais se repetirem na primeira pesquisa de popularidade do novo governo, teríamos uma popularidade líquida de +23 pontos. Este é mais ou menos o mesmo nível de popularidade líquida que Bolsonaro tinha quando iniciou seu governo, e bem menor do que Lula I (+39) e Dilma I (+46). Claro, teremos que ver como sairão as primeiras pesquisas, que devem aparecer em 3 ou 4 meses, mas, aparentemente, o nível de boa vontade da população com Lula, hoje, é bem menor do que foi no passado.
Na campanha eleitoral de 2014, no famoso debate entre Armínio Fraga e Guido Mantega, o então ministro da Fazenda jantou o ex-banqueiro central de FHC e ex-futuro ministro da Fazenda do então candidato Aécio Neves. Armínio era tecnicamente muito mais preparado, suas ideias faziam muito mais sentido, mas, mesmo assim, Mantega ganhou o debate de goleada. Como? Criando a sua própria realidade e debatendo sobre ela. Em determinados momentos, Armínio ficava sem nem saber o que responder, tão absurda era a colocação. A narrativa tomava o lugar da realidade.
Mais ou menos assim como Haddad faz nessa entrevista ao site amigo Brasil 247.
A coisa é tão absurda, que é difícil até começar a pensar em um contra-argumento. Segundo o ministro, o mercado estava até agora distraído, observando as borboletas e as flores silvestres, enquanto o governo Bolsonaro destruía a economia do país. Bastou que o PT, em diligente trabalho, mostrasse o tamanho da herança maldita, para que o mercado corresse desesperado para a porta de saída.
Vai ficando claro porque Lula ungiu Haddad como seu potencial sucessor. Aparentemente, é um dos mais refinados inventores de realidades paralelas do partido, uma virtude muito apreciada pelos companheiros.
O único pequeno problema é que o mercado vive no mundo real, não no mundo paralelo criado pelo PT. Espero, sinceramente, para o bem de todos nós, que Haddad não seja levado a acreditar na sua própria narrativa.
PS.: Sim, o governo Bolsonaro gastou além do teto de gastos em várias ocasiões, e as taxas de juros e o câmbio refletiram esses gastos já ANTES das eleições. O que vem acontecendo no mercado APÓS as eleições, no entanto, é de exclusiva lavra do governo que ora se inicia. Cada qual com seus problemas.
Chegando ao fim dos 4 anos de governo Bolsonaro, farei uma retrospectiva de seu governo do ponto de vista de políticas econômicas. Dividirei os eventos em positivos e negativos, de acordo com minha exclusiva e particular avaliação.
Eventos positivos:
– Reforma da Previdência: talvez a maior realização deste governo, a reforma da Previdência havia sido já “amaciada” durante o governo Temer, que não conseguiu levar adiante por conta do episódio Joesley. O governo Bolsonaro teve o mérito de retomar a discussão e conseguir aprovar uma reforma com o dobro da economia prevista na reforma de Temer. Teve a parceria de Rodrigo Maia no Congresso, o que não diminui o seu mérito, pelo contrário. A reforma aprovada está longe de ser suficiente, precisaremos discutir outra reforma em breve, mas o mérito dessa reforma foi ter aprovado o limite de aposentadoria por idade, agora é só aumentar a idade. O ponto negativo foi retirar categorias, como a dos militares, da reforma. Não era necessário para a aprovação, foi uma idiosincrasia do presidente.
– Aprovação de marcos regulatórios: reformas microeconômicas são tão importantes quanto as macro. O marco do saneamento, das ferrovias, a nova regulamentação do câmbio, a lei da liberdade econômica, são todas mudanças legislativas que permitirão, ao longo do tempo, um ganho enorme de eficiência dos investimentos.
– Autonomia do Banco Central: vivemos o ineditismo de um presidente eleito que não tem disponível o cargo de presidente do BC para nomear. Este é um avanço significativo para a segurança do arcabouço monetário brasileiro. A discussão sobre a autonomia já vinha amadurecendo, mas o governo Bolsonaro teve o mérito de aprová-la.
– Privatização da Eletrobrás: única privatização do governo Bolsonaro, mas uma privatização que vale por muitas. Veio às custas de vários jabutis que pesarão na contade luz do brasileiro nos próximos anos. Mas, apesar de tudo, melhor privatizada do que estatal. Privatizada, a Eletrobras poderá levantar o capital necessário para um plano de investimentos que permita aumentar a segurança energética do país.
Eventos negativos:
– Não encaminhamento das reformas tributária e administrativa. A tributária foi reduzida por Paulo Guedes a uma proposta de substituição dos impostos sobre a folha de pagamentos por algo como uma CPMF disfarçada, jogando fora anos de discussões em torno da PEC 45, que cria um IVA único. A administrativa passou longe de qualquer discussão séria.
– Ruído na relação com a Petrobras. Apesar de não ter havido interferência real nos preços, a troca constante de comando na estatal certamente não foi positiva para a empresa.
– Redução do ICMS sobre combustíveis e outras utilities. Os efeitos de curto prazo foram positivos (redução dos preços dos combustíveis), mas os efeitos de médio prazo serão negativos, pois os Estados precisam desses impostos para equilibrarem suas contas. A conta vai chegar mais à frente.
– Desmoralização da regra do teto de gastos. Para mim, a pior herança deste governo. Em outubro de 2020, Paulo Guedes chamou Rogério Marinho, então ministro do Desenvolvimento Regional, de “fura-teto”. Era a fase ortodoxa de Guedes. Um ano depois, Guedes protagonizou o que viria a ser conhecido como “waiver day”, em que jogou a toalha diante da mudança de critério para calcular o teto de gastos para o ano seguinte, 2022. O pior da pandemia já havia passado há muito, e ficou claro que o furo no teto ocorreu para turbinar os gastos em ano eleitoral. Com isso, legitimou-se qualquer desculpa para gastos adicionais, o que abriu caminho para a PEC da gastança proposta pelo governo eleito.
Considerando prós e contras, o balanço final do governo Bolsonaro na área econômica é, na minha opinião, regular. Podemos ver o reflexo disso nos preços dos ativos. Por exemplo, a bolsa denominada em dólar reflete tanto o movimento da bolsa quanto da moeda. A seguir, temos uma tabela com as rentabilidades em dólar dos principais índices de bolsa no mundo, no período que vai de 28/12/2018 a 28/10/2022 (véspera da eleição), da pior para a melhor:
Hong Kong: -42,6%
Seul: -12,0%
Londres: -4,9%
Ibovespa: -2,5%
Tóquio: +2,2%
Frankfurt: +8,4%
Shangai: +9,2%
Sidnei: +10,3%
México: +19,5%
Istambul: +24,6%
Bombaim: +40,1%
Podemos notar que a bolsa brasileira não foi a pior do mundo no período, mas ficou longe de ficar entre as melhores. Foi uma bolsa… regular.
Claro, o próximo governo, ao que tudo vem indicando, não promete ser melhor, muito pelo contrário. Mas, para quem esperava o “primeiro governo verdadeiramente liberal desde o descobrimento do Brasil”, acho que ficaram devendo.
O MTST bloqueava avenidas para chamar a atenção da sociedade para os “problemas sociais”. Eram, com razão, chamados de barderneiros, impedindo o direito de ir e vir de cidadãos que não tinham nada a ver com aquilo.
Obviamente, os bloqueios de estradas por parte de caminhoneiros devem ser igualmente condenados. Afinal, os fins não justificam os meios, ou a causa não justifica a baderna. Os cidadãos presos nas estradas não têm nada a ver com aquilo.
É só óbvio que o silêncio constrangedor de Bolsonaro, fechado em copas no Palácio, dá margem a esse tipo de manifestação. Fim de governo melancólico.
O Estadão tem publicado uma série de reportagens sobre a agenda do próximo governo. Na terceira da série, aborda a questão das estatais, trazendo alguns números interessantes a respeito do governo Bolsonaro neste campo:
– Cerca de R$ 155 bilhões foram arrecadados com a venda de subsidiárias de estatais, como a BR Distribuidora e a TAG, da Petrobras.
– Cerca se R$ 75 bilhões foram arrecadados com a venda de participações minoritárias do BNDES em empresas como Petrobras, Vale, JBS, Marfrig e Suzano.
– Cerca de R$ 170 bilhões foram arrecadados com concessões de infraestrutura, o que inclui a descotização das hidrelétricas da Eletrobras em seu processo de privatização.
– A soma acima supera em 15%, em dólar, todas as receitas com privatizações de 1980 a 2018. Claro que não são números comparáveis diretamente, em função da inflação nos EUA no período, mas não deixa de ser um volume absolutamente respeitável.
Do lado negativo, temos a criação da NAV, para substituir a Infraero, e da ENBPar, que substituiu a Eletrobras como holding de Itaipu e Eletronuclear. Essas duas estatais são a demonstração cabal de como é difícil fechar definitivamente uma estatal. A Telebras, que continua entre nós como um zumbi, que o diga. Neste lado negativo, a reportagem acrescenta a retirada da Ceagesp da lista de privatizações, em função de uma rinha pessoal do presidente com o ex-governador. O candidato de Bolsonaro para o governo do estado terá que explicar porque seu padrinho decidiu colocar seus interesses pessoais acima dos interesses dos cidadãos do estado que pretende governar.
De qualquer forma, apesar da pisada de bola na Ceagesp e ter na Eletrobrás a única grande privatização de uma estatal de controle direto (o que, diga-se, não é pouca coisa), o saldo é inegavelmente positivo neste campo. E aqui vem, para contrastar, notinha publicada no mesmo jornal, informando que o PSB de Geraldo Alckmin está propondo para o programa do PT a criação de uma nova estatal, a Amazombras. O nome não poderia ser mais cucaracho para simbolizar ideias dinossauricas, parabéns ao marketing do PSB.
A Amazombras seria uma espécie de Embrapa para a Amazônia, uma empresa de pesquisa. Fica a questão de porque não usar a própria Embrapa para essa finalidade. Claro que essa questão é apenas retórica. Sabemos porque o PSB está propondo outra estatal. Trata-se de uma visão de mundo: o Estado precisa intervir na atividade econômica diretamente, através de empresas estatais. Pouco importa a eficiência, o que importa é a ideologia. Que se exploda o cidadão pagador de impostos.
Estatais diminuem a eficiência econômica e aumentam a concentração de renda, ao privilegiar grupos próximos ao poder. Há formas bem mais eficazes e menos intervencionistas de o Estado regular a atividade econômica. Neste ponto específico, a diferença entre o governo do PT e o governo Bolsonaro é da água para o vinho.
Ontem, o governo federal publicou suas contas. Novamente, estamos no azul. Nos últimos 12 meses, o superávit primário foi de 0,8% do PIB e, provavelmente, vamos fechar o ano com superávit primário pela primeira vez desde 2013.
Daí, alguém pode perguntar: se estamos produzindo superávit primário, por que o mercado está tão nervoso com as contas públicas? Por que não se para de falar em “risco fiscal”? O diabo, como sempre, mora nos detalhes.
Vamos comparar o primeiro semestre deste ano com o primeiro semestre do ano passado. Comparando os dois períodos, vamos ver um aumento real (acima da inflação) de 16% nas receitas e um aumento real de somente 1% nas despesas. Isso explica, em boa parte, o superávit primário deste ano. E como foram obtidos esses resultados?
Do lado das receitas, o grande destaque foi a rubrica “receitas não administradas pela Receita Federal”, que cresceram nada menos do que 55% reais no período. Refere-se, basicamente, à receita com a privatização da Eletrobrás e aos dividendos das estatais. Ou seja, o aumento da receita é “one off”, como dizemos, não é recorrente. Para a sua continuidade, dependemos de outras privatizações grandes e da continuidade dos preços do petróleo nas alturas.
Do lado das despesas, observamos que as despesas com pessoal recuaram 12% no período em termos reais e “outras despesas obrigatórias” recuaram 17%, também em termos reais. Bem, a questão do pessoal, na ausência de qualquer reforma administrativa, se baseia em um congelamento de salários que, obviamente, não tem como se sustentar no tempo. Algum tipo de reajuste deverá ser dado no futuro, eliminando esse “ganho”. E nas “outras despesas obrigatórias” temos já o efeito da “rolagem” (para não dizer calote) dos precatórios. Neste semestre, houve uma queda de 60% no pagamento de precatórios em relação ao semestre anterior. Sabemos, no entanto, que essa conta deverá ser paga algum dia, está apenas sendo adiada.
Então, ficamos assim: o governo recebeu algum dinheiro adicional que não vai se repetir, e empurrou com a barriga alguns itens que voltarão a assombrar as contas públicas no futuro. Esse “superávit primário” pode ser uma boa peça de propaganda, mas precisa de algo mais para convencer os credores da dívida.
Anteontem, foi aprovado no Senado um pacote de bondades no valor de R$ 41 bilhões. Como não há espaço no teto de gastos, foi aprovado, em conjunto, a decretação de um “estado de emergência”, o que permite gastos acima do teto. A PEC (sim, foi necessário emendar a constituição para aprovar essa despesa, dado que o teto de gastos está inscrito na constituição) foi aprovada, no primeiro turno, por incríveis 72 votos a 1 e, na segunda votação, por 67 votos a 1. Além disso, sua tramitação levou poucos dias, um verdadeiro recorde para uma PEC, que, normalmente, tem seu tempo de tramitação medida em meses, quando não em anos.
Este episódio é um suco concentrado de Brasil, e nos permite observar a realidade política e econômica brasileira de diversos ângulos. Vejamos.
1) A lenda de que Bolsonaro não realizou tudo o que queria porque é refém do Legislativo (desculpa normalmente usada para poupar o presidente da crítica de não ter avançado com reformas estruturais) cai por terra. No presidencialismo, quando o presidente quer, mas quer de verdade, a coisa acontece. Um pacote de bondades com o objetivo de ajudá-lo nas eleições foi aprovado por uma quase unanimidade na velocidade da luz. Se isso não é poder político, não sei mais o que é.
2) Dois terços dos senadores não enfrentarão eleições neste ano. Portanto, a desculpa de que estão tentando surfar em medidas populistas para ganhar votos não se aplica. A grande maioria votou por convicção mesmo. O que não deixa de ser assustador.
3) A definição de “emergência” passou a ser mais elástica. Em 2020, a pandemia, que paralisou a economia global por vários meses, foi considerada uma emergência. Ok, fazia todo sentido. Em 2021, os efeitos da pandemia ainda se faziam sentir, mas a vacinação avançava e a economia já vinha em franca reabertura. Isso não impediu que a lei orçamentária fosse aprovada prevendo uma claraboia no teto de gastos, para despesas “emergenciais” com a pandemia, o que incluía basicamente qualquer coisa. E agora, a “emergência” é o aumento dos preços dos combustíveis. Três anos seguidos de emergência, o governo já pode pedir música no Fantástico. É o jeitinho institucionalizado.
4) A banalização do conceito de emergência era tudo o que o PT queria. Fica demonstrado que esse teto de gastos é para inglês ver. Gastar acima do teto passou a ser a norma, não a exceção, o que esfrega a desmoralização da âncora fiscal na cara da nação. Não à toa, em seu programa de governo, o PT afirma que o teto de gastos está desmoralizado. E não à toa, votou em peso por mais essa pá de cal no esquema de controle das contas públicas. Somente José Serra (o único senador que votou contra) terá moral para apontar o dedo e acusar um governo do PT de ser fiscalmente irresponsável.
5) Se esse pacote de bondades era realmente imprescindível, não seria difícil encontrar espaço no orçamento para gastos de R$ 41 bilhões. Trata-se de uma situação completamente diferente da de 2020, quando foram gastos R$700 bilhões em uma verdadeira emergência. No entanto, quem disse que tem espaço em um orçamento de R$ 1,6 trilhões para acomodar mais R$ 41 bi de gastos? Cada milímetro do orçamento é defendido com unhas e dentes por interesses dos mais variados. E essa é a lição deixada por mais essa exceção na regra: todo mundo quer patrocinar bondades, desde que não signifique mexer no meu queijo.
6) Tem quem defenda que há espaço para gastar mais porque o governo tem tido sucesso na gestão fiscal, produzindo superávits primários e obtendo receitas extraordinárias, como os dividendos da Petrobras e a venda da Eletrobras. Essa é uma visão míope da realidade. Grande parte do superávit foi obtido através de receitas inflacionárias, que não foram gastas com o funcionalismo, que tem o seu salário congelado há algum tempo. É óbvio – não, é muito óbvio – que esse esquema não se sustenta no tempo. A inflação vai cair em algum momento e, mais cedo ou mais tarde, a inflação passada terá que ser incorporada ao salário dos servidores. Esse superávit primário tem muita semelhança com os programas alardeados pelo PT: conquistas grandiosas que não têm como se sustentar no tempo. Além disso, nós precisamos fazer superávit primário para diminuir a dívida pública. Se, a cada vez que fizermos superávit, inventarmos uma emergência para gastar, a nossa dívida nunca irá diminuir e o nosso gasto com juros só vai aumentar.
7) E por falar em gastos com juros, o mercado vem respondendo com mau humor a essas “flexibilizações” do teto. A taxa de juros tende a ser mais alta, pois a inflação tende a ser mais alta no futuro. Quem acredita que o governo brasileiro vai deixar de gastar como se não houvesse amanhã, permitindo que o BC traga a inflação para a meta de 3% nos próximos 10 anos, o Tesouro Direto tem uma oportunidade imperdível: título prefixado com vencimento em 2033 e pagando 13% ao ano. Ou seja, um título do governo pagando 10% ao ano acima da inflação oficial! Um negócio da China! Alguém pode desconfiar da esmola, e com razão. Afinal, por que um título do governo está pagando uma taxa de juros tão alta? Simples: porque os investidores estão desconfiados de que a inflação pode ser bem mais alta nos próximos anos, dado o comportamento fiscal do governo. Coisas como esse “pacote emergencial” por fora do teto só fazem aumentar essa desconfiança. Resultado: o custo da dívida aumenta. Se nada for feito, chegará uma hora em que nenhuma taxa satisfará os investidores. Aí, só com inflação descontrolada para rolar a dívida.
8) Os bolsonaristas que entendem tudo o que vai acima, mas ainda assim apoiam a medida, o fazem porque seria a única forma de enfrentar o PT na eleição, um partido que também não mede meios para atingir seus objetivos. Vale “fazer o diabo”, como bem disse a ex-presidenta. Seria como que uma licença para gastar em anos eleitorais, deixando a austeridade para anos não eleitorais. Pode ser. Viveríamos de criar bondades que valem somente para anos eleitorais, sendo retiradas nos outros anos, dado que não existe espaço no orçamento. Resta saber se o mercado e os eleitores se deixariam enganar por esse tipo de “bondade não permanente”.
A PEC ainda vai ser votada na Câmara, mas deverá passar por ampla maioria. E la nave do populismo va.
Gosto de ler o Fernando Reinach. Suas colunas sempre trazem descobertas interessantes em vários campos da ciência e, durante a pandemia, era uma referência serena e objetiva para entender a dinâmica da doença.
No entanto, a coluna de hoje está inexplicavelmente enviesada. Comecei a ler com interesse, pois chamou-me a atenção a chamada, que afirmava que um estudo indicava que mais de 50 mil mortes poderiam ser colocadas nas costas do governo Bolsonaro. “Como será que chegaram nesse numero?”, pensei.
Reinach começa anunciando que um estudo estimou de maneira mais fidedigna o número de óbitos por Covid. Até aí, tudo bem, sabemos que os números publicados pelos diversos órgãos de saúde ao redor do mundo são inexatos, e é sempre bom tentar chegar a uma estimativa mais próxima da realidade.
O problema é que você vai lendo, e a única informação é que, no Brasil, houve 332 óbitos/100 mil, contra a média mundial de 194 e, na Nova Zelândia, apenas 0,8. Só isso. Daí, o colunista conclui que, pelo menos, 50 mil óbitos se devem ao governo Bolsonaro, sem esclarecer de onde vem esse número.
Para tentar uma explicação, a primeira coisa que fiz foi estimar o número de óbitos no Brasil se o nosso número de óbitos per capita fosse igual à média global. Se tivéssemos 194 óbitos/100 mil ao invés de 332, teríamos tido 300 mil óbitos a menos. Ou seja, essa conta não explica os 50 mil óbitos de Reinach. Continuava o mistério da origem desse número.
Fui atrás do estudo, para ver se lá encontrava alguma explicação. Saí frustrado. O estudo é meramente descritivo, não entrando no mérito das causas das diferenças entre óbitos dos diferentes países e regiões. Portanto, concluí que Reinach tirou este número cientificamente da sua própria cabeça.
O estudo trás alguns fatos interessantes, e que podem, eventualmente, colocar em dúvida a correlação que o colunista faz entre as mortes por Covid e o governo brasileiro.
1) Em primeiro lugar, não existe somente a Nova Zelândia no mundo. Com a menção ao país da Oceania, com apenas 0,8 óbitos/100 mil, o colunista quer mostrar o incrível sucesso que outros países tiveram no combate à pandemia, em contraste com o traste que temos aqui no palácio do Planalto. No entanto, poderia mencionar também países como a Itália (376 óbitos/100 mil), Portugal (336), Espanha (314), Colômbia (327), México (543), Venezuela (478), África do Sul (462), Rep. Tcheca (361), Polônia (397), Romênia (493), entre outros. Será que todos esses países são comandados por homicidas?
2) A média global de 194 óbitos/100 mil está bem puxada para baixo pelos números da China, que apresenta apenas 1,0 óbitos/100 mil. Se desconsiderarmos a China, a média global sobe para 240 óbitos/100 mil, um número um pouco mais próximo do nosso.
3) Trata-se de um estudo estatístico e, como todo estudo dessa natureza, os autores estabelecem intervalos de confiança para as estimativas. No caso do Brasil, temos um intervalo de 293 a 419, com valor esperado de 332 óbitos/100 mil. Considerando que a média global ex-China estaria no intervalo de 190 a 306, podemos dizer, estatisticamente, que é possível que o Brasil esteja na média global ex-China, dentro do intervalo de confiança de 95% do estudo. É pouco provável, mas é possível.
4) São Paulo, estado liderado por um político que costumava encher a boca para dizer que estava “seguindo a ciência”, teve, segundo o estudo, 362 óbitos/100 mil, acima, portanto, da média nacional. Seria Doria também um homicida?
Enfim, como disse acima, pode até ser que o governo Bolsonaro tenha influenciado no número de óbitos no Brasil por Covid. Mas não é esse estudo que prova a hipótese, como afirmou o colunista.
Trata-se, portanto, de um artigo político com roupagem científica. O próprio uso da palavra “genocídio” denuncia a sua politização. Podemos até discutir se houve ou não homicídio por omissão. Mas genocídio é algo diferente, é o assassinato em massa de um minoria étnica. Usar essa palavra para fechar o artigo serve somente de panfletagem. Uma pena que Fernando Reinach tenha abandonado a ciência para se dedicar à política rasteira.
PS.: prepare-se para ouvir esse número sendo repetido por aí como se fosse uma verdade científica. Afinal, foi um cientista que afirmou, “com base” em um estudo publicado na Lancet.
A primeira medida de impacto do governo Temer foi a aprovação da PEC do teto de gastos, no final de 2016. Os credores da dívida olharam aquilo e pensaram: “Puxa, agora é pra valer! A disciplina fiscal está inscrita na Constituição! É muito difícil mudar isso, precisa de um quórum muito alto”.
De fato, o saldo positivo nas contas públicas durante 15 anos seguidos foi obtido sem que houvesse uma lei do “superávit primário”. O 2o governo FHC elevou a carga tributária, o governo Lula navegou uma onda de crescimento global e o governo Dilma, até 2014, varreu pra debaixo do tapete despesas (as famosas “pedaladas”), mas todos tinham um compromisso não escrito de manter o superávit primário, compromisso este crível, pois suportado por um track record de vários anos. Tanto era assim que, em 2015, quando o governo mandou pela primeira vez um orçamento prevendo déficit primário, foi um rebuliço tal que tiveram que mandar outro, prevendo superávit. Mas o cristal já estava trincado, principalmente porque começava a vir à tona os truques usados para obter os superávits nos anos anteriores.
Com o fim da era dos superávits primários, era necessário um movimento forte, que recuperasse a credibilidade do governo junto aos seus financiadores. Este movimento foi a PEC do teto de gastos. Inscrito na Constituição, o teto dava a garantia de que os superávits voltariam a ser produzidos no futuro. Era uma questão matemática: com as despesas aumentando somente com a inflação e as receitas aumentando com o PIB nominal, em algum momento estas ultrapassariam aquelas.
Bolsonaro, uma vez eleito, trouxe Paulo Guedes, um fiscalista de quatro costados, para comandar a economia. O ministro até cunhou um termo, os “fura-teto”, para se referir àqueles que, dentro do governo, tramavam despesas além do teto. Até que chegou o mês de outubro de 2021. Pressionado politicamente a encontrar solução para o aumento de gastos no ano seguinte, ano eleitoral, o governo patrocinou a PEC dos precatórios, que, além de postergar o pagamento dessas dívidas, espertamente mudava a data para a medição da inflação usada para o cálculo do teto. Essa mudança abriu um espaço adicional no teto, uma espécie de claraboia.
Guedes jurou que não se tratava de abandonar o teto, mas o estrago já estava feito. Ficou claro para os credores que o fato de ter uma PEC do teto não trazia segurança alguma. Uma outra PEC poderia modificá-la, e não era assim tão difícil obter quórum, se Executivo e Legislativo estivessem irmanados no mesmo objetivo de gastar além dos limites. Ali se quebrou um cristal, assim como havia acontecido em 2015.
O anúncio de uma nova PEC para subsidiar os combustíveis é apenas a confirmação dessa suspeita, a de que a PEC do teto não é um compromisso sério só pelo fato de ser uma PEC. O compromisso fiscal, no final do dia, depende da credibilidade do governo, não de uma lei.
O programa de governo do PT, recém divulgado, afirma, com todas as letras, que vai acabar com o teto de gastos, pois a regra “perdeu credibilidade”. É com dor no coração que falo isso, mas o PT está certo neste caso. O regime fiscal brasileiro perdeu credibilidade, porque fabricamos PECs ao gosto da necessidade do momento. Quem deveria guardar a chave do cofre, se presta a encenar óperas bufas, como o anúncio de ontem. Depois não entendem porque o mercado não vê muita diferença entre Lula e Bolsonaro.