Corrupção sempre será corrupção

O PT fez muito mal ao Brasil durante a sua longa passagem pelo governo federal. Difícil eleger o pior, mas certamente um dos maiores males foi mudar o patamar da corrupção. O Petrolão transformou em escala industrial o que era feito de maneira artesanal. A Petrobras realizou uma baixa contábil de R$ 6 bilhões por conta de contratos superfaturados. Isso fora o dinheiro devolvido por delatores, que somaram mais de um bilhão. Só o gerente Pedro Barusco devolveu quase R$ 200 milhões!

O problema dessas cifras, e esse foi o mal que o PT fez ao Brasil, além da corrupção em si, faz esses casos denunciados recentemente parecerem coisa normal. Lendo a coluna de Felipe Moura Brasil, podemos ficar tentados a nos perguntar se é sério que devemos nos preocupar por desvios de alguns milhões de reais. Afinal, esse é o Brasil de sempre, voltamos ao normal.

Os desmandos do PT curtiram a pele nacional, e agora não sentimos mais a gravidade da corrupção. E não deveria ser assim. Em primeiro lugar porque corrupção é corrupção, independentemente se tratamos de milhares, milhões ou bilhões. Trata-se apenas de oportunidade, não de caráter. O cara que rouba milhões vai roubar bilhões se tiver oportunidade.

Mas, no caso em tela, a coisa é ainda pior. O PT foi acusado, com razão, de transformar o Estado brasileiro em um balcão de negócios para sustentar o seu projeto de poder, ferindo de morte a democracia. O que faz o governo Bolsonaro senão a mesma coisa? A exemplo do PT, seu apoio político e seu projeto de poder são comprados na base da corrupção. A única diferença, ao que se saiba até o momento, é que, ao contrário do PT, Bolsonaro, ele mesmo, não desviou dinheiro para si próprio. Mas o efeito sobre o processo democrático de exercício de poder é o mesmo que do Mensalão e do Petrolão, e não são três zeros a menos que mudam a natureza da coisa.

Lembro quando, no início do governo Bolsonaro, eu defendia aqui que não existe “governo do povo” em democracia representativa, e que Bolsonaro, que havia sido eleito sem qualquer coligação e com base de pouco mais de 10% dos deputados, deveria se dedicar a montar uma base no Congresso. Recebia como resposta “aqui não tem toma lá dá cá!”, ou “o presidente vai governar com a força das ruas!”. Hoje Bolsonaro governa na base do “toma lá dá cá”, enquanto as “ruas” de Bolsonaro estão mais preocupadas com o STF.

Continuo pensando da mesma forma que quatro anos atrás: não existe solução fora da política, que supõe compartilhamento de espaços de poder. A corrupção como meio de fazer política é uma doença brasileira, que os bolsonaristas davam como curada há quatro anos e hoje preferem olhar para o outro lado. Se tem algo que Bolsonaro involuntariamente provou é que essa doença brasileira não se cura na base de voluntarismos heróicos. Na verdade, não existe cura definitiva, mas creio que um presidente que saiba fazer política pode tornar o problema administrável. Eu, tal qual Diógenes, continuo à procura de um homem com minha lanterna acesa durante o dia. Este homem, certamente, não é Lula nem tampouco Bolsonaro.

O índice de sofrimento e as chances de Bolsonaro

O economista Arthur Okun criou um índice muito simples mas poderoso para medir o humor da população. Trata-se do “Misery Index”, que você vai ver por aí traduzido como “Índice da Miséria”, mas que eu prefiro traduzir como “Índice do Sofrimento”.

O Índice do Sofrimento nada mais é do que o resultado da soma do índice de desemprego com a inflação acumulada nos últimos 12 meses. A idéia é medir o quanto o povo está sofrendo do ponto de vista da atividade econômica e da inflação, as duas principais variáveis macroeconômicas que influenciam o dia a dia do cidadão. O gráfico abaixo mostra o Índice do Sofrimento calculado desde o ano 2000 até fevereiro de 2022, quando temos os últimos dados de inflação e desemprego.

A linha vermelha mostra uma previsão deste índice, considerando as projeções para a inflação e para o desemprego segundo o relatório Focus do Banco Central. Além disso, destaco os meses das eleições e o do impeachment de Dilma Rousseff.

Em primeiro lugar, podemos observar que, nas três eleições em que houve continuidade do partido incumbente (2006, 2010 e 2014), o Índice do Sofrimento estava abaixo de 14. Por outro lado, nos dois casos em que houve troca de partido (2002 e 2018), o Índice estava acima de 16. Por ocasião do impeachment, estava acima de 20.

Pois bem. Hoje, o Índice do Sofrimento está acima de 22, em pior situação do que na época do impeachment. Não é à toa que a popularidade do presidente está em baixa. A boa notícia para Bolsonaro é que o índice tende a cair ao longo do ano, chegando nas eleições um pouco acima de 18. A má notícia é que, neste nível, o partido incumbente não conseguiu fazer o sucessor em 2002. Ou seja, a considerar esta estatística, a popularidade do presidente vai melhorar ao longo do ano, mas não na velocidade e intensidade suficientes para lhe dar um novo mandato.

Claro que esta é uma interpretação unidimensional da realidade, e baseada em poucos pontos, dado que o histórico é curto. Mas, sem dúvida, é um alerta para a campanha do presidente, que precisará de muito mais esforço do que o normal para conseguir se reeleger.

Não há termos de comparação

Há um certo afã em se colocar Lula e Bolsonaro como igualmente prejudiciais ao Brasil em todos os campos possíveis, ainda que de formas diferentes. No campo econômico, isso é verdade em alguns campos, como o da disciplina fiscal ou o da proteção a corporações do serviço público, mas não o é, de maneira alguma, em outras. É o caso da Petrobras, foco do editorial do Estadão de hoje.

Segundo o editorial, ambos os políticos querem “prejudicar a companhia em nome de seus projetos pessoais de poder”.

Na superfície, parece isso mesmo: Lula usou a empresa como um puxadinho do governo, ao passo que Bolsonaro troca de presidente como quem troca de cueca, ao sabor de suas conveniências políticas.

Mas isso é só na superfície. Se analisarmos mais a fundo, veremos diferenças fundamentais de visões de mundo. O próprio editorial lembra que a Petrobras gerou R$ 120 bilhões de prejuízo durante os governos do PT para fazer política monetária e política industrial do governo. A roubalheira, no valor de R$ 6 bilhões, foi somente a cereja do bolo. Por outro lado, Bolsonaro indicou dois presidentes para a estatal que respeitaram a sua dinâmica empresarial, e havia indicado um terceiro na mesma linha. A troca de presidentes, portanto, não foi pela política de preços ou pela desmobilização que a empresa vem adotando desde o governo Temer. Foi simplesmente para jogar o boi de piranha no rio.

Alguns dirão que a Petrobras só está praticando preços de mercado porque é obrigada a tanto por uma lei aprovada no governo Temer. Justo. Mas também é verdade que Bolsonaro não se movimentou para alterar a lei, como Lula já prometeu que o fará se eleito, em seu projeto de fazer a Petrobras great again.

É óbvio que o troca-troca de presidentes é prejudicial à companhia. Mas não há termo de comparação entre um político atrapalhado, que vê a Petrobras como um estorvo ao seu projeto de poder, e outro que fez da empresa o pivô de seus projetos megalomaníacos de poder. Neste caso, os efeitos perversos dessas duas visões de mundo para os acionistas minoritários e para o próprio Tesouro são completamente diferentes.

Menos narrativa, mais jornalismo

Meu amigo Carlos Alberto Di Franco escreve artigo no Estadão criticando seus colegas jornalistas por criarem narrativas anti-governo ao invés de se aterem aos fatos. Para tanto, cita uma série de dados econômicos supostamente objetivos, levantados pelo também jornalista José Fucs, para corroborar a sua tese, a de que não estamos caminhando para o abismo.

Parafraseando a piada, perco o amigo mas não perco a crítica. O que vai nesse artigo não passa de narrativa bolsonarista. Escrevi acima “supostamente objetivos” para qualificar os dados apresentados no artigo porque não existe isso de “dados objetivos”. Existem os dados e sua interpretação dentro de um contexto. Infelizmente, da forma como foram apresentados, não passam de narrativa. Vejamos.

Crescimento: os dados de crescimento de 2021 são apresentados como prova de que o país está indo de vento e popa, calando a boca dos críticos. Nada mais fora do contexto. Há várias formas de se interpretar esse número, e analisá-lo a seco da forma como foi feito é a única que lhe empresta algum mérito. O número é baixo comparado com o que se esperava no início do segundo semestre do ano passado, é baixo se comparado com o crescimento de outros emergentes e é baixo se analisarmos o conjunto dos anos 2020-2021. O artigo continua, afirmando que o crescimento vai “surpreender” esse ano. Bem, se crescer 1% já será uma surpresa positiva, ainda que seja um número ridiculamente baixo. Os números mostram que esse governo não conseguiu tirar o país do baixo crescimento econômico. Os números são catastróficos? Não, apenas medíocres.

Inflação: a queda da inflação programada para esse ano é destacada para mostrar que a tese dos catastrofistas de plantão não se sustenta. Sim, verdade, ainda que os 5,6% citados já estejam ultrapassados pelos choques produzidos pela guerra na Ucrânia. Mas, como eu disse, há formas e formas de mostrar os números. Por exemplo, eu poderia dizer que já faz 6 meses que a inflação está rodando acima de 10% ao mês, ao passo que, no governo Dilma, a inflação rodou acima de 10% somente durante quatro meses. Objetivo? Sim. Quer dizer alguma coisa? Não. O fato é que as pessoas estão sentindo a carestia no bolso, e não há narrativa que dê jeito nisso.

Contas Públicas: talvez seja este o item em que mais brilha a narrativa bolsonarista. Afinal, produzimos superávit primário em 2021 contra todas as expectativas! Como se esse número não tivesse sido alcançado na base de um congelamento de salários insustentável no tempo e uma inflação bem acima das expectativas, que inflou as receitas no ano. O número em si é positivo, mas falta muito contexto para entendê-lo. Curiosamente, este é o único item para o qual não se arrisca uma previsão para este ano. Sem falar no bombardeamento do teto de gastos.

Em uma coisa o meu amigo Di Franco tem razão: não é nenhuma catástrofe, nada comparável aos piores anos do governo Dilma Rousseff. Mas também não se trata de nada de que se possa ter orgulho. Minha sugestão é, em uma próxima vez, se quiser defender este governo de maneira objetiva, destacar as realizações microeconômicas, com a aprovação de diversos marcos regulatórios que irão, ao longo do tempo, aumentar a produtividade do país. Se for para citar números macroeconômicos fora do contexto, Lula tem números muito melhores para apresentar.

O paradoxo que assombra o governo Bolsonaro

Roberto Castelo Branco foi escolhido como presidente da Petrobras por Paulo Guedes. Um dos chamado “Chicago Oldies” – assim como Guedes, egresso da Universidade de Chicago – a escolha de Castelo Branco servia para demonstrar que o Brasil estava entrando em uma nova era de racionalidade na economia e no trato da coisa pública. O novo presidente era a garantia de que a Petrobras não seria mais utilizada como instrumento desenvolvimentista, nem tampouco para a implementação de políticas demagógicas às expensas de seus acionistas minoritários.

Pois bem. Castelo Branco não sobreviveu ao primeiro choque de preços do petróleo, e foi defenestrado por Bolsonaro em abril de 2021. A acusação era de que o Chicago Oldie não tinha “sensibilidade social” e, além disso, fazia o que bem entendia antes de conversar com o presidente da República. Como se a Petrobras não fosse uma empresa de economia mista regida por estatutos internos bastante rígidos. Aliás, a não interferência da presidência da República era exatamente o que diferenciava o novo governo do governo do PT. Mas, segue o jogo.

Castelo Branco caiu e, em seu lugar, Bolsonaro nomeou um militar de sua confiança (era, pelo menos, o que ele pensava), o ex-presidente da Itaipu Binacional, general Joaquim Silva e Luna. O mercado reagiu mal, pois precificou a volta da intervenção do Planalto na empresa. Estavam, o mercado e Bolsonaro, redondamente enganados. Silva e Luna tem se mostrado um liberal tão ou mais ortodoxo do que seu antecessor. As reclamações de Bolsonaro e sua entourage são um deja vu (estou abusando do francês hoje), parece que estamos vivendo abril de 2021 com outro personagem, até os termos usados são os mesmos.

A questão, agora, é saber o que Bolsonaro pretende fazer. Vai substituir Silva e Luna por alguém que, finalmente, ”converse com o presidente”? Ou continuará com Silva e Luna, apenas marcando sua posição em entrevistas como se fosse mais um brasileiro que não tem nada a ver com isso? Substituir Silva e Luna por outro liberal que vai “respeitar a lógica econômica da empresa” não resolveria nada.

O grande paradoxo que assombra o governo Bolsonaro (e não é só na questão da Petrobras) é ter um governo liberal liderado por um demagogo populista. Claro que os preços dos combustíveis são um problema político sensível, e o presidente da República não pode deixar de se posicionar a respeito. Isso é uma coisa. Outra coisa é demonizar a Petrobras ou o seu presidente por decisões que qualquer empresa privada tomaria no mesmo contexto. A não ser que se considere a Petrobras como um puxadinho do governo. Mas, nesse caso, já não se trataria de um governo liberal. Então, temos uma empresa que age de acordo com o perfil liberal e é criticada pelo presidente que lidera um governo auto-intitulado liberal. Esta é a esquizofrenia.

De qualquer modo, há que se reconhecer que estamos a anos-luz do que os governos do PT fizeram com a empresa, e prometem fazer novamente se forem eleitos. É melhor um governo esquizofrênico que reclama das suas próprias virtudes do que outro com discurso coerente mas terrivelmente equivocado.

Enquanto isso, na Sala da Justiça…

Super-Homem: amigos, temos uma emergência. O nosso presidente Mito está sob ataque desde que Despero aumentou os preços dos combustíveis.

Robin: mas Super-Homem, o Despero não foi colocado na Petrobras pelo próprio presidente?

SH: Sim, menino-prodígio. Mito e Despero foram colegas de escola, e ele acreditava que poderia contar com a lealdade do velho amigo. O nosso Mito é muito ingênuo. É por isso que estamos aqui, para defendê-lo de suas escolhas desastrosas.

Mulher-Maravilha: e agora, o que vamos fazer?

Aquaman: por que não acabamos com a raça do Despero e forçamos a Petrobras a diminuir os preços?

SH: Não é fácil. A Petrobras é defendida pela Liga da Injustiça, que só pensa em seus lucros. E o Mito não quer briga com esse pessoal.

Batman: tive uma ideia. Vamos à raiz do problema. Podemos arrancar Prometheus do poder na Rússia. A guerra acaba, os preços do petróleo derretem e a Petrobras pode baixar os preços dos combustíveis.

Robin: Santa astúcia, Batman!

SH: Não, Batman. Seria muito arriscado, ele é defendido por uma tropa de Marcianos Brancos. Além disso, o Mito tem uma quedinha por Prometheus, não sei se convém tirá-lo do poder.

Mulher-Maravilha: então vamos lançar mão de nossa especialidade, a bomba de fumaça.

SH: como seria isso, Mulher-Maravilha?

MM: Simples. Precisamos encontrar uma escorregada de algum inimigo do Mito. Jogamos isso nas redes, lideramos um linchamento moral e o pessoal esquece os preços dos combustíveis.

SH: parece uma boa ideia, Mulher Maravilha. Mas quem? Acho que já terminou a lista de inimigos do Mito que jogamos na lama das redes.

MM: Aí é que você se engana, Super-Homem. Sempre tem mais um que apoiava o MIto e depois se tornou um traíra. Estava pensando aqui no Darkseid.

SH: Sim, é verdade! Darkseid era um entusiasta do Mito, mas passou a criticá-lo sem dó nem piedade. Mas o que temos contra ele?

Batman: enquanto vocês falavam, pesquisei na minha bat-biblioteca eletrônica, e encontrei a cena de um filme de 5 anos atrás que Darkseid roteirizou, em que o protagonista é pedófilo.

MM: Uau! É disso que precisamos!

Todos assistem atentamente ao achado de Batman. Com exceção de Robin, que não tem idade para isso.

SH: Mas esse cara é o vilão da história. O fato de ser pedófilo depõe contra a pedofilia, não a favor. Além disso, se fosse assim, todo filme em que ocorrem assassinatos ou gente fumando drogas poderia ser considerado uma apologia aos assassinatos ou às drogas.

MM: Super-Homem, você já deveria saber que isso pouco importa. As mães preocupadas com a saúde moral dos seus filhos e que não conseguem controlar o que eles veem no Netflix vão reagir à palavra “pedofilia” como cães de Pavlov. Ninguém vai assistir ao filme pra conferir do que se trata. Além disso, você sabe como essas coisas funcionam, existem outros 3.451.890 filmes com conteúdos impróprios na Netflix, mas quando começarmos a nossa campanha bomba de fumaça, esse filme, que ninguém assiste há muitos anos, se tornará o principal problema moral do país.

SH: Estou começando a gostar da ideia. Mas vejo um problema exatamente nisso: esse filme tem 5 anos, vai fazer sentido ressuscita-lo agora? Não vai parecer estranho?

MM: Ora, Super-Homem, até parece que você é neófito nessas campanhas. Tanto faz, o que importa é a palavra “pedófilo” junto da palavra “Darkseid”. O resto é detalhe a que ninguém presta atenção.

Batman: Além disso, não sei se vocês notaram, o roteiro é do Darkseid, mas o ator da cena é o Starro, inimigo bem conhecido do Mito. Essa combinação é explosiva.

SH: Sim, concordo. Mãos à obra, então, amigos da Liga da Justiça!

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Na verdade, Darkseid estava disfarçado de Mulher-Maravilha na reunião da Liga da Justiça. Seu plano era promover o seu filme, no que teve estrondoso sucesso.

Trocando a democracia por fertilizantes

Após o término da 2a Guerra, meus avós maternos, tendo sobrevivido aos campos de concentração nazistas, reconstruíram suas vidas em Łódź, na Polônia. A vida voltou ao normal durante alguns anos.

No entanto, em 1956, os húngaros armaram uma revolta popular contra o governo comunista do país. A União Soviética veio em socorro e ajudou o governo húngaro a esmagar a revolta. Era a primeira vez que tropas de um país invadiam o território de outro em solo europeu desde o fim da guerra. A revolta na Hungria havia sido inspirada por outra na Polônia alguns meses antes, que substituiu o governo de corte stalinista por outro em comum acordo com a União Soviética.

Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Meu avô, observando os acontecimentos, teve receio de que a União Soviética endurecesse o regime. Ainda estava fresca em sua memória as atrocidades das tropas soviéticas na 2a guerra, que não foram exatamente gentis com os judeus. Fugir dos nazistas para cair nas mãos dos soviéticos não estava em seus planos. Foi assim que decidiram migrar para o Brasil em 1957.

Com todas as seus evidentes limitações, a democracia é superior a qualquer outro regime de governo quando a liberdade está no topo dos valores. Meus avós vieram para o Brasil porque não queriam viver novamente em um país onde não pudessem levar suas vidas em paz. A invasão da Ucrânia pela Rússia faz recordar justamente esse tempo.

Por tudo isso, fico abismado quando um presidente que tem a palavra “liberdade” na boca de maneira tão fácil e frequente, subordine a luta pela liberdade de um povo ao comércio de fertilizantes. É simplesmente chocante. Do jeito que o barco da guerra está andando, é possível que a profecia de Churchill novamente se confirme: entre a desonra e a falta de fertilizantes, escolheu a desonra, e terá a falta de fertilizantes.

Desejo vs. Realidade

No início do ano legislativo de 2021, o governo Bolsonaro estabeleceu uma série de prioridades para a pauta legislativa daquele ano. O Estadão publicou um resumo (abaixo) que guardei, para conferir no final do ano.

O resultado é a tabela abaixo: em verde, as pautas aprovadas, em vermelho, aquelas que ainda estão em tramitação.

Podemos observar um padrão: as pautas puramente microeconômicas passaram todas. Por outro lado, as pautas mais macro (reformas), aquelas ligadas ao meio ambiente e aos chamados “costumes” ficaram pelo caminho. Ou seja, o Congresso se mostrou bastante receptivo para pautas econômicas localizadas, de aumento de eficiência da economia. Quando se tratou, no entanto, dos grandes vespeiros, tanto macroeconômicos quanto ambientais ou de costumes, não adiantou ter o Centrão no comando, a coisa não andou.

Fica a pergunta: valeu à pena vender a alma ao Centrão? A não ser que o objetivo tenha sido outro, além de tocar a pauta legislativa.

Quando quer, o governo bate o bumbo

A Câmara aprovou ontem o novo marco regulatório das ferrovias, que permite a construção por meio de simples autorização ao invés de concessão. Esse novo marco deve permitir o surgimento de ferrovias privadas de acordo com necessidades específicas das empresas.

O marco das ferrovias vem se juntar a outros avanços microeconômicos deste governo, como o marco do saneamento, a nova regulação do mercado de câmbio, a autonomia do Banco Central e, last but not least, a reforma da Previdência.

Sempre que critico algo que o governo não fez, como as reformas tributária e administrativa ou o ritmo pífio das privatizações, é comum alguém nos comentários tentar justificar, dizendo que o governo depende do Congresso, não dá pra fazer tudo sozinho etc.

É claro que, em um regime democrático, o presidente é limitado pelo Congresso. Mas também é verdade que, em um regime presidencialista, o presidente bate o bumbo do governo. A aprovação desse marco das ferrovias é um exemplo acabado: como o governo tinha alto interesse em sua aprovação, editou uma medida provisória para “acelerar” o processo. Funcionou.

Transferir os fracassos para a conta do Congresso supõe transferir também os sucessos. Nesse caso, o presidente faria apenas o papel de uma rainha da Inglaterra, enquanto o Congresso governaria de fato. Sabemos que não é assim no regime presidencialista brasileiro. Não à toa, Bolsonaro não demorou a desistir da historinha da “nova política”.

Parabéns ao governo pela aprovação de mais esse marco importante para aumentar a produtividade da economia brasileira. Uma pena que não tenha havido o mesmo empenho para avançar as reformas tributária e administrativa, que levariam o país a outro patamar.

O que é liberdade de imprensa?

O prêmio Nobel da Paz foi dividido entre dois jornalistas, uma das Filipinas e o outro da Rússia. Ambos representam o jornalismo livre, que enfrenta o governo de plantão, revelando sem medo seus podres.

Imprensa livre costuma ser considerada uma das características basilares de democracias saudáveis, sendo chamada, algumas vezes, de “o quarto poder”. Mas o que é, afinal, “imprensa livre”?

Talvez seja útil começarmos pelos exemplos extremos. Por exemplo, em Cuba ou na Coreia do Norte existe somente a imprensa oficial, do regime. Neste caso, não há que se falar em imprensa livre, por definição.

O problema na definição do conceito começa a complicar quando temos imprensa não governamental. Como medir a liberdade dessa imprensa? Foi com o objetivo de responder a essa questão que o Repórteres Sem Fronteiras elaborou o World Press Freedom Index, que tem a pretensão de medir o quanto um país respeita a liberdade de imprensa.

Os critérios do índice são os seguintes:

  1. Pluralismo: mede o grau de diversidade de opiniões na mídia
  2. Independência da mídia: mede o quanto a imprensa consegue trabalhar longe de influências governamentais, empresariais ou religiosas
  3. Ambiente e autocensura: mede o ambiente geral de liberdade de imprensa
  4. Legislação: impacto das leis do país sobre a produção jornalística
  5. Transparência: mede a transparência das instituições das quais depende a produção de notícias
  6. Infraestrutura: refere-se ao apoio físico para a produção de notícias.
  7. Abusos: mede a violência contra jornalistas

Os seis primeiros critérios são ponderados em um score geral, sendo que o primeiro (pluralidade) tem peso de 33,5%, os critérios 2 a 4 têm peso 16,5% e os critérios 5 e 6 têm peso 8,25%. O critério 7 (abusos) é usado para construir um segundo score, pois é possível que a violência mascare as respostas obtidas para os outros critérios. O score final é o pior dos dois.

As notas para esses critérios são obtidas através de um questionário respondido por jornalistas, sociólogos e advogados.

Bem, até aqui, os critérios do índice. Agora vamos aos resultados. O Brasil está mal colocado. Sua pontuação classifica o país como um lugar “difícil” para a imprensa, a um degrau apenas de países como Cuba e Coreia do Norte. E é aqui que começa a discussão sobre o que significa “liberdade de imprensa”.

A página do Repórteres sem Fronteiras dedicada ao Brasil gasta mais ou menos metade do seu texto desancando o governo Bolsonaro.

Quem chegasse de Marte ontem poderia ter a impressão de que, antes do atual governo, o Brasil era um exemplo de liberdade de imprensa. Nada mais longe da realidade. O gráfico abaixo mostra a evolução de nossa posição e pontuação desde 2014.

Sim, temos hoje a pior pontuação desde 2014, mas a mesma colocação que no ranking daquele ano. E a pontuação, apesar de alta (quanto maior a pontuação, pior a liberdade de imprensa), não mudou de maneira relevante nos últimos anos. Ou seja, a Repórteres sem Fronteira está fazendo proselitismo político, o que, em tese, não coaduna com a postura de jornalistas independentes. Não que tudo o que está escrito não seja verdade, mas quem não perde tempo explorando o índice sai com a impressão de que este governo é o responsável pela nota ruim do país. Jornalismo é informação e contexto, e se a pessoa sai com a impressão errada depois de ler um texto, então o jornalista falhou em sua missão.

Outro ponto que me chamou a atenção foi o trecho em que a entidade critica a concentração da mídia em mãos de poucas famílias. Essa crítica aparece na página da entidade nas edições de todos os rankings. Esse é o discurso dos petistas: a “regulação da mídia”, um tema caro ao partido, nada mais é do que retirar o “monopólio” da informação das mãos de “meia dúzia de famílias”. A “ley de medios” na Argentina, patrocinada pelo governo Cristina Kirshner, nada mais foi do que isso. Esse é o modelo. Curiosamente, mesmo com essa violenta intervenção na imprensa, a Argentina tem uma nota melhor do que o Brasil. Lembre-se de que quem preenche os questionários são jornalistas e sociólogos.

É claro que o domínio econômico sobre os “meios de produção” jornalísticos poderia levar, em tese, a um jornalismo manietado por interesses econômicos ou políticos. Mas essa não é uma realidade necessária. Se fosse, imprensa confiável seria somente aquela de fundo de quintal. E não se faz jornalismo de qualidade sem os meios materiais que somente uma grande empresa de jornalismo é capaz de proporcionar. Ao apontar a “concentração” dos meios como um mal em si, a Repórteres sem Fronteira faz um juízo que denigre a própria profissão jornalística.

A direita autoritária também não gosta da mídia, mas por outro motivo: as redações estariam “coalhadas de comunistas”. A solução para isso não é intervir no domínio da mídia, mas construir uma mídia alternativa, onde uma verdade própria é construída. De qualquer forma, isso parece ser menos invasivo do que intervir nas empresas de jornalismo profissional. Apesar de Bolsonaro não ser exatamente simpático ao jornalismo profissional, não parece ter intervindo indevidamente neste espaço. Nossa nota é ruim há muitos anos porque os jornalistas de pequenas e médias cidades são constantemente perseguidos pelo poder local sob o olhar complacente da justiça (isso está no texto também). A grande imprensa nacional é sim livre, podendo fazer crítica aos governantes de plantão sem problemas.

O prêmio Nobel foi designado a dois jornalistas que verdadeiramente sofrem perseguição em seus países. A nota da Repórteres sem Fronteira para Filipinas e Rússia são, respectivamente, 45,64 e 48,71, contra 36,25 do Brasil. Segundo a Repórteres sem Fronteiras, não estamos tão mal quanto esses dois países, mas estamos chegando lá. Quem sabe com a “regulação da mídia” proposta pelo PT não melhoremos o nosso ranking.