Greta voltou

Ela voltou. Greta mereceu uma matéria de ⅙ de página com direito a chamada na primeira página. O assunto foi o seu depoimento a uma sessão temática no Senado, destinada a discutir as conclusões do IPCC (Painel de Mudanças Climáticas).

O que Greta falou pouco importa. São os mesmos clichês de sempre. Qualquer um que não tenha vindo de Marte ontem sabe o que Greta vai falar. Meu ponto é outro: a importância dos símbolos em uma sociedade midiática.

Pergunto: alguém estava sabendo que rolava uma sessão no Senado sobre clima? Eu não estava, e duvido que alguém de fora daquele círculo restrito tinha essa informação. No entanto, bastou que Greta Thunberg fosse convidada, a mídia já se assanhou. Ela é dona de falas contundentes, apontando seu dedinho, que nunca precisou ser usado para ganhar o seu sustento, para o nariz de todos os dirigentes do mundo. Os senadores acertaram em cheio. Greta não decepcionou, chamando os dirigentes brasileiros de “uma vergonha”, além de desfilar suas platitudes que embevecem os corações do bem.

Mas contra fatos não há argumentos: Greta é uma popstar do clima, e suas falas sempre terão repercussão. Quer queiramos ou não, o assunto “clima” faz parte do zeitgeist, e acaba afetando também os negócios. Temos que ser mais pragmáticos. A China, por exemplo, não recebe metade das críticas que o Brasil recebe, apesar de ser, provavelmente, o país mais poluidor do mundo. Seu discurso se adapta à época, prometendo metas para as próximas gerações. Enquanto isso, ficamos aqui tentando defender a “exploração comercial da Amazônia”, como se isso fosse aceitável aos ouvidos delicados da nossa época, apesar de fazer todo sentido.

Na verdade, é preciso se perguntar se o governo Bolsonaro tem “salvação”, ou seja, se a Greta vai um dia cumprimentá-lo mesmo que ele se torne a Madre Teresa de Calcutá do clima. Muito provavelmente não. Neste caso, o melhor a fazer é ignorar os gritinhos da Greta, com todos os custos decorrentes para os negócios. Simplesmente não tem jeito. Um futuro presidente, com um pouco mais de boa vontade dos ativistas e da mídia, poderá ter espaço para um trabalho melhor de relações públicas, enquanto defende o direito dos brasileiros de explorar economicamente o próprio território.

O semipresidencialismo na prática

Pode ser uma imagem de uma ou mais pessoas e texto que diz "Poderes. Bolsonaro tenta fortalecer base e sobreviver às crises; Ciro Nogueira vai para o Planalto no lugar do general Ramos, que assume Secretaria-Geral; Onyx ocupa nova pasta Bolsonaro põe Centrão na Casa Civil e recria Trabalho"

Muito se tem falado ultimamente sobre um tal de semipresidencialismo. Não é a primeira vez. Em 2017, em meio à crise envolvendo as denúncias de Joesley Batista, o trauma de um processo contra o então presidente Temer logo em seguida ao impeachment de Dilma fez com que os liminares da República começassem a discutir uma forma de tornar mais estável o sistema de governo. Na época, não deu em nada.

Hoje, com a montanha de pedidos de impeachment na gaveta do presidente da Câmara, discute-se novamente o sistema, adotado em Portugal e na França.

Do que se trata? A ideia é simples: o povo elege o presidente da República, mas a chefia do governo cabe a um primeiro-ministro, escolhido pelo presidente. Ou seja, o dia-a-dia do governo, incluindo a indicação de ministros, é função do primeiro-ministro. O sistema poderia se chamar de semiparlamentarismo sem perda nenhuma de significado.

E o que faz o presidente nesse sistema? Aí, depende dos poderes que tiver. O presidente pode nomear o primeiro-ministro que lhe der na telha? Quais as regras de sua destituição? O presidente poderia dissolver o Congresso e chamar novas eleições? Sob quais condições? O presidente pode patrocinar projetos de lei? Essas definições vão dar mais ou menos poder ao presidente.

Bolsonaro, ao nomear Ciro Nogueira como primeiro-ministro, quer dizer, como ministro da Casa Civil, na prática virou um presidente em um sistema semipresidencialista. A coalizão de partidos denominada Centrão está agora no coração do poder executivo, que é a própria definição de semipresidencialismo.

Qual será o papel de Bolsonaro nesse novo regime? Veremos com o tempo, as regras não estão escritas. O fato é que, em um sistema semipresidencialista em que o presidente é forte, este tem o poder de dissolver o Congresso. Não é o caso, como sabemos. O que existe é o justo oposto: é o Congresso que pode destituir o presidente, por meio de impeachment. Isso dá uma medida de quem tem a faca e o queijo na mão neste momento.

Situação difícil para o presidente

Que tem caroço nesse angu parece não restar dúvidas. A aprovação da compra de uma vacina que sequer foi aprovada pela Anvisa (e aqui não estamos falando da assinatura de um contrato para aquisição sujeita à aprovação, existiu a emissão de nota de fiscal, foi compra mesmo) e a esquisita intermediação de uma empresa pra lá de suspeita, quando a negociação direta com os laboratórios tem sido a norma das aquisições das outras vacinas, deixa tudo isso muito suspeito.

Isso é uma coisa. Outra coisa é provar o envolvimento do presidente na suposta maracutaia.

Quando, em 2005, Roberto Jefferson colocou a boca no trombone para denunciar o mensalão, seu alvo era José Dirceu. Ele se colocava como alguém que queria proteger o presidente de um esquema engendrado no gabinete de seu ministro da Casa Civil. Luiz Miranda também diz ter desejado proteger o presidente. (Aliás, parêntesis: a capivara de Luiz Miranda não deve muito à capivara de Roberto Jefferson. Isso não invalidou a sua denúncia, pelo contrário. Fecha parênteses).

Como sabemos, Lula não foi condenado no mensalão. A tese do “domínio do fato”, que foi amplamente discutida na época, não foi acolhida para o caso de Lula, sendo usada apenas para condenar José Dirceu. Segundo essa tese, não são necessárias provas objetivas de que o manda-chuva se meteu nos detalhes do crime, basta que tenha comprovada ciência do fato criminoso.

Luiz Miranda diz que tem provas de que Bolsonaro tinha o “domínio do fato”, mesmo sem ter gravado a conversa que manteve com o presidente. Parece difícil. Se tivesse, já as teria mostrado. O que parece é que o presidente está com problemas em manter Ricardo Barros (o seu José Dirceu) a salvo. Perder Ricardo Barros certamente não está nos planos de Bolsonaro. Mas essas coisas acabam fugindo do controle, e podem chegar, como no caso do mensalão, à dicotomia “ou ele ou eu”.

O fato é que este é um caso que tem o potencial de colocar sob estresse a tese do governo incorruptível, que não rouba e não deixa roubar. Mesmo que não se prove que o presidente tenha prevaricado, a dinâmica da coisa exigirá ações fortes daqui em diante, o que pode estressar a relação com os caciques do Centrão. Situação difícil para o presidente.

É a inflação que derruba governos

Vou ao mesmo supermercado todo sábado pela manhã, fazer as compras da semana. Como sou habitué, acabo fazendo amizade com os atendentes.

Há um senhor que pesa os produtos hortifruti (é um atacarejo, não tem balança no caixa). Nos poucos minutos em que interagimos, enquanto pesa os produtos, ele sempre tem algum assunto. Pode ser uma doença, alguma coisa que aconteceu no supermercado ou alguma oferta que eu não posso perder de jeito nenhum. Hoje, ele me perguntou: “você não acha que as coisas estão muito caras?”

Respondi de maneira protocolar (eu sempre respondo de maneira protocolar, não sou muito bom de fazer amizades. Acho que por isso que os estranhos gostam de conversar comigo, não falo nada, só escuto).

Ele continuou: “eu tenho três gatos. No ano passado, achei um preço bom, e comprei ração pra eles. Paguei R$0,99. Essa semana acabou o estoque que eu tinha comprado. Fui na loja e estava R$2,40! Triplicou o preço!”

Concordei, ainda que 2,40 não seja o triplo de 0,99. Mas isso é um detalhe, o ponto é que a ração dos gatos subiu muito, e o senhor sentiu no bolso a coisa.

Em um momento em que a Selic está subindo justamente para controlar a inflação, é bom que este governo tenha em mente uma verdade que desconhece cores ideológicas: desemprego é muito ruim, taxa de juros alta não é bom, mas é a inflação que derruba governos.

Os ratos e a narrativa: o que realmente está por trás do lucro dos Correios

“TIRAMOS OS RATOS, TIVEMOS MUITO LUCRO!!”

Assim começa um post comemorando o resultado dos Correios em 2020: lucro de R$ 1,5 bilhões contra um resultado de R$ 0,1 bi em 2019. Um aumento de R$ 1,4 bi de um ano para o outro.

Como sabemos todos os que analisamos balanços, a última linha esconde mais do que mostra. Por que o lucro dos Correios subiu tanto em 2020 em relação a 2019? Abaixo um resumo da Demonstração de Resultados.

Podemos observar que a receita dos Correios foi menor em 2020 do que em 2019 em cerca de R$ 1,1 bi. No entanto, o custo dos produtos vendidos e despesas administrativas caíram, respectivamente, R$ 1,6 bi e R$ 0,1 bi, outras receitas operacionais subiram R$ 0,3 bi, as receitas financeiras subiram R$ 0,2 bi e houve um ganho com impostos de R$ 0,4 bi. Resumindo, temos:

  • Ganho de receitas: (R$ 0,8 bi)
  • Ganho de custos: R$ 1,6 bi
  • Ganhos financeiros: R$ 0,3 bi
  • Ganhos com impostos: R$ 0,4 bi

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Total: R$ 1,5 bi

Aí vamos para os detalhes do balanço. Claro que a linha que mais fez diferença foi a redução de custos. Basicamente por 3 motivos:

1) Menor despesa com plano de saúde: a participação dos funcionários no custeio do plano foi aumentado de 30% para 50%, o que resultou em uma economia de R$ 0,7 bi.

2) Menor despesa com pessoal: como foi feito um PDV em 2019, a despesa com a folha caiu outros R$ 0,7 bi

3) A despesa com o PDV em 2019 (R$ 0,3 bi) não aconteceu em 2020.Portanto, está aí a explicação para os R$ 1,6 bi de queda de custos.

A receita financeira aumentou porque os Correios detém o chamado DES – Direito Especial de Saque, moeda usada em relações postais internacionais, que se valorizou na medida em que o Real se desvalorizou absurdamente no ano passado.

Por fim, o “lucro” obtido com impostos é uma tecnicalidade relativa ao CSLL que gerou R$ 0,4 bi de lucro adicional este ano em relação a 2019.

Então, o aumento de lucro este ano não tem nada a ver com ratos e nem com petralhas. Isso não passa de propaganda bolsonarista. O aumento do lucro foi o resultado de uma combinação de redução de pessoal com aumento do custo do plano de saúde para os funcionários, valorização do dólar e filigranas tributárias.

Gastei um tempo analisando o balanço dos Correios porque este post enganoso tem dois objetivos:

1) Mostrar que o atual governo combate a corrupção nas estatais e

2) Justificar a não-privatização dos Correios

Este lucro, como demonstrado, não tem nada a ver com combate à corrupção. Foi apenas resultado de alguns fatores administrativos (corte de pessoal e de custos) e alguns fatores meramente contábeis.

Os Correios sempre deram lucro, com exceção do período de 2013 a 2016. A “roubalheira”, portanto, não impediu de a empresa gerar lucro. A inépcia administrativa, sim. Os Correios estão sendo bem geridos neste governo? Aparentemente sim. Assim como o foram durante os governos Temer, Lula e FHC.

Aqui entramos na segunda questão: privatização. Se os Correios são capazes de gerar lucro se bem administrados, por que então privatizar? Bem, não vou me alongar muito. Há vários motivos, desde a aplicação do capital em outras prioridades nacionais mais urgentes até evitar que caia novamente nas mãos de governos ineptos, passando pelo uso como instrumento de corrupção. Mas vou me ater a um só: qualidade dos serviços.

A demonstração de resultados traz uma tabela com o número de reclamações recebidas pela Ouvidoria dos Correios. Em 2018 foram 8 mil, em 2019, 15 mil e em 2020 foram nada menos do que 57 mil! Ou seja, em dois anos, o número de reclamações multiplicou-se por 7!

Aparentemente, o tal corte de pessoal e de custos fez cair a já sofrível qualidade de serviços da empresa. Ou seja, precisamos escolher: ou lucro, ou qualidade de serviços. As duas coisas, que em empresas privadas andam de mãos dadas, nos Correios parece que são incompatíveis.

Vamos ver se a privatização finalmente sai neste governo.

Quando falta governo, sobram governos paralelos

O site Jota, especializado em assuntos jurídicos, traz uma pequena matéria sobre a decisão do STF de impor ao governo o pagamento de uma renda mínima. Copio os trechos mais interessantes a seguir.

“A desmobilização do governo federal, especialmente do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do advogado-geral da União, André Mendonça, chamou a atenção de ministros do Supremo e contribuiu, de certo modo, para a decisão do tribunal sobre o pagamento de uma renda básica para a população de baixa renda.”

“Ministros comunicaram a Guedes e Mendonça da delicadeza do assunto. O ministro Gilmar Mendes pediu vista, abrindo espaço para a atuação político-jurídica do governo. Mas nem Guedes nem Mendonça se moveram.”

“Este julgamento mostrou ao Supremo, afirmam integrantes da Corte, a desestruturação do governo neste momento em especial para atuar no tribunal. A despeito das derrotas nas questões relativas ao combate à pandemia, o STF – em sua maioria – é permeável aos temas que envolvam governabilidade e contas públicas. Mas alguém, em nome do governo, precisa minimamente articular os interesses do Executivo na Corte.”

Esta reportagem ilustra à perfeição a coluna de William Waack hoje, no Estadão. Segundo o sempre arguto jornalista, hoje Congresso e STF governam o Brasil. Mas não se trata de uma conspiração, como pensa o entorno bolsonarista. Segundo Waack, “A principal responsável é a atuação do próprio Bolsonaro e sua extraordinária incompetência política.

“Não existe vácuo na política, como estamos cansados de saber. Quando Bolsonaro abriu mão de fazer política, o seu espaço foi ocupado, segundo Waack, “por uma curiosa aliança tácita, volátil e fluida de juízes e parlamentares”.

Eu complemento: Bolsonaro pensa, em sua redoma onde só cabem conspirações, que “fazer política” se resume a “toma lá, dá cá”. Também é isso, essa é a parte, digamos, fácil da coisa. Mas fazer política é muito mais do que isso: é, segundo Waack, “ter um conjunto de propostas e ideias bem definidas, com rumo, coordenação eficaz e domínio dos instrumentos clássicos de poder ou coerção.” Segundo o articulista, “o Bolsonarismo é mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa”.

Enfim, o último julgamento do STF é só mais um em que, aparentemente, faltou a parte do “fazer política”. Assim como foi a tramitação do Orçamento, em que o Legislativo fez gato e sapato do Executivo. Falta coordenação. Falta rumo. Falta governo. E, quando falta governo, sobram governos paralelos.

Errando o alvo por muito

Estou longe de ser um especialista em marketing eleitoral. O que vou escrever a seguir pode estar completamente errado, porque me faltam conhecimentos. Mas é o que intuo sendo um observador da cena política nacional.

Tendo dito tudo isso, vamos lá: o posicionamento mercadológico de Doria é um desastre.

Diante da “ameaça” de Bolsonaro usar o exército para acabar com o toque de recolher, Doria faz um arrazoado “pela democracia”! Caraca! Como pode errar o alvo assim, tão longe???

É óbvio – não, é muito óbvio – que Bolsonaro não tem a mínima condição de fazer o que ele está dizendo que vai fazer. O quê? Ele vai jogar o exército contra as PMs? Provocar uma guerra civil? O Bolsonaro? Espera aí que eu vou gargalhar ali no canto e já volto.

É claro que a agenda de Bolsonaro é outra: ele está procurando cevar a narrativa de que o buraco econômico em que nos metemos é culpa dos governadores, não dele. Afirmar que “vai usar o exército” é só uma forma de dizer que vai “tomar providências” e, como bônus, agradar a sua grei mais fanática, que realmente acredita que o mito tem o poder de “acabar com essa bagunça”.

Responder que Bolsonaro tem “devoção pelo autoritarismo e alergia pela democracia” pode fazer sucesso nos círculos bem-pensantes da imprensa e da intelectualidade tupiniquim. Mas, para o povão, o que importa é ter meios de colocar comida na mesa. Democracia é um luxo que vem depois. Onde Doria quer chegar com essa mensagem? Talvez nos 5% que ele já tem em intenções de voto. Com esse tipo de discurso insosso, vai ser difícil sair daí.

Como ele poderia ter respondido? Na minha humilde opinião, colando na testa do presidente a palavra “incompetente”. Autoritário é um adjetivo abstrato, poucos sabem e muitos menos dão importância a isso. Agora, incompetente todo mundo sabe o que é. A resposta poderia ser algo na linha:

– Esse Bolsonaro é um fanfarrão. Está tentando esconder a sua incompetência para lidar com a pandemia e o desemprego por traz de uma ameaça ridícula”.

Ou, melhor ainda, alavancando no seu grande ativo, a Coronavac:

– Ao invés de ficar fazendo ameaças ridículas, o presidente poderia se esforçar um pouco mais para acelerar a vacinação. Se dependesse da incompetência do Bolsonaro, teríamos somente 20% das vacinas que temos hoje.

E não pensem que é só João Doria que se perde nesse lenga-lenga de democracia. Todos os chamados “candidatáveis” de centro cometem o mesmo erro. Vê se Lula gasta sua saliva falando de ameaça à democracia. No seu discurso no sindicato, a primeira coisa que fez foi desancar a incompetência do governo Bolsonaro no trato da pandemia e da economia. Esse entende do riscado.

O chamado “centro” precisa urgentemente de um João Santana que ajuste o discurso. Ops, parece que já foi contratado.

A empresa da Família Brasil

Por motivos que não vem ao caso, sou titular de um depósito judicial. De tempos em tempos, recebo autorização do juiz para sacar parte dos recursos. Este depósito está no Banco do Brasil. A cada vez que é realizada uma TED para a minha conta, sou tungado em R$36,00.Eu não pude escolher o banco onde ficaria depositado o meu dinheiro. O sistema judicial escolheu o Banco do Brasil, que trabalha livremente com o meu dinheiro, além de me extorquir para fazer uma TED. Além desse, o Banco do Brasil conta com vários outros “monopólios naturais”, que lhe permite cobrar o que quer sem medo da concorrência. A folha de pagamentos dos servidores públicos federais é outro exemplo.

E, mesmo com todas essas “vantagens competitivas”, o Banco do Brasil vale uma fração do que valem seus pares privados: enquanto Itaú e Bradesco valem, respectivamente, R$255 bi e R$217 bi, o Banco do Brasil vale R$85 bilhões. Até o Nubank vale mais: em sua última rodada de captação de recursos, o banco do cartão roxo foi avaliado em R$130 bi.

Por que o BB, tendo tantas “vantagens competitivas naturais”, não encontra investidores dispostos a pagar mais por suas ações? O novo presidente do banco explicou: o BB é do mercado mas também é do Brasil-sil-sil. Cada brasileiro é um sócio.

O Banco do Brasil é, então, uma grande empresa familiar. Quem já trabalhou em empresas familiares sabe do que estou falando: a empresa serve para carregar nas costas membros da família que não conseguiriam se virar de outra forma. Afinal, se a empresa familiar não serve para ajudar a família, pra que serve então?

É isso: o Brasil é uma grande família, e o Banco do Brasil está aí para ajudar a família. Aos acionistas minoritários (o tal “mercado”) cabe financiar o auxílio aos brasileiros. Os minoritários até financiam, mas pagam 1/3 do que topam pagar em bancos de verdade. Todo mundo ganha: os brasileiros, que têm um banco pra chamar de seu, e os acionistas minoritários, que compram um banco baratinho.

O novo presidente do BB define à perfeição a função do banco: dar lucro para ajudar os familiares. Se o lucro é menor do que o de empresas comparáveis, é porque são muitos os familiares a serem ajudados. A família Brasil é muito grande e muito necessitada de ajuda. Portanto, antes de pedir a privatização do banco dos brasileiros, pense em tudo o que ele já fez por você. Afinal, como brasileiro, você é também um sócio do Banco do Brasil-sil-sil.

Assim é se assim lhe parece

O Ministério da Verdade A Secretaria de Comunicação do governo, está fazendo uma campanha para lavar a reputação do governo Bolsonaro no tocante às vacinas. Trata-se de um contra-ataque à mídia esquerdista que insiste em denegrir tudo o que este governo faz.

Sabemos que a forma mais insidiosa de se contar uma mentira é dizer uma meia-verdade. Veremos que tudo o que a SeCom disse é verdade. Mas veremos também que faltou muita coisa para que TODA a verdade fosse contada. Contar toda a verdade é o que procuraremos fazer nesse artigo.

Para tanto, antes de analisar a história contada pela SeCom, vou abordar dois aspectos que, a meu ver, contribuíram de maneira relevante para a percepção da opinião pública a respeito da postura anti-vacina do governo: a insistência nos conceitos de segurança e não-obrigatoriedade. Logo em seguida, destrincharemos a história contada pela SeCom.

Segurança

O tema da segurança das vacinas esteve presente nos debates desde o início. Ao lado do tema da obrigatoriedade, esse tema da segurança da vacina constitui a própria essência do boicote. Explico.

É somente óbvio ululante que toda e qualquer vacina (assim como todo e qualquer remédio) somente vem a público depois que sua segurança foi avaliada e comprovada pelos órgãos competentes. A insistência nesse ponto óbvio transmite o conceito justo contrário: forma-se a ideia de que se trata de algo muito perigoso, que vai ser analisado com muito cuidado.

Tão tarde quanto dezembro do ano passado, o presidente ainda usa essa ideia para justificar o atraso brasileiro na busca pelas vacinas:

Ficou famosa a declaração do “virar jacaré”, feita em evento no dia 17/12/2020:

Observe como está por traz o conceito de perigo, de coisa que pode causar mal. Quando a Anvisa aprova um medicamento ou uma vacina, não está afirmando que não possa causar reações adversas, mas que essas reações adversas são suportáveis pelo benefício gerado pelo remédio/vacina. A palavra de um presidente da República tem peso e, nesse caso, está sendo usada para disseminar o temor na população.

Esta questão da falta de segurança é o principal motivo pelo qual as campanhas de vacinação têm perdido adesão no mundo inteiro. No dia 17/10/2020, por exemplo, o Ministério da Saúde patrocinou o chamado Dia “D” de mobilização nacional pela vacinação. Em comunicado do ministério, o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, declarou o seguinte:

A campanha procura ampliar as coberturas vacinais, resgatar o sentimento de segurança dos pais e responsáveis em relação à vacinação dos filhos e desmitificar as fake news.” (grifos meus).

Escusado dizer que, neste comunicado do Ministério, não há qualquer menção à “não obrigatoriedade” da vacinação.

Os grupos anti-vax espalham e acreditam em todo tipo de boato para desacreditar a segurança das vacinas. Não à toa, grande parte dos comentários nas redes refere-se à segurança das vacinas. Fiz um compilado rápido com alguns comentários mais recentes:

Alguns poderão dizer que isso não passa de folclore, que são coisas tão absurdas que a maioria das pessoas não acredita. Não é bem assim. Pesquisa recente feita pelo Instituto Locomotiva em favelas mostra que esse tipo de “informação” tem a sua repercussão e influência.

Mas, alguns dizem, Bolsonaro não tem nada a ver com isso, ele só está preocupado com a segurança da população. Pois então, há uma linha tênue entre preocupação e sabotagem. Coincidentemente, todas essas reservas em relação às vacinas prevalecem nas redes bolsonaristas e são repercutidas por simpatizantes do presidente. Pode até haver exceções, mas que apenas confirmam a regra de fácil comprovação.

O fato é que a insistência na segurança das vacinas emite o sinal inverso. O mantra “precisa provar antes que é segura” é uma obviedade que, repetida ad nauseam, levanta justamente a desconfiança de que as vacinas não são seguras. Tanto é assim que a aprovação da Anvisa pouco fez para convencer as pessoas de que a vacina é segura. No final, o que vale é o “inception” levado a cabo por meses de campanha de desconfiança.

A situação só fez piorar com a insistência na “não-obrigatoriedade” da vacina.

Obrigatoriedade

No dia 06/02/2020, duas semanas antes da confirmação do primeiro caso de Covid-19 em território brasileiro, o governo Bolsonaro promulgou a lei 13.979, com a seguinte redação:

Portanto, está previsto em lei que as autoridades (entende-se quaisquer autoridades no âmbito de sua jurisdição) poderão (não deverão) determinar vacinação compulsória. Trata-se, portanto, de uma faculdade legal.

No dia 31/08/2020, uma admiradora pede a Bolsonaro que não permita “esse negócio de vacina”, por ser muito perigoso. O presidente, então, responde com o que seria, a partir de então, o mote do governo: “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. É a primeira vez que este assunto vem à baila publicamente no Brasil, e o governo Bolsonaro vê aí a chance de, novamente, reforçar a sua agenda ideológica.

No dia seguinte, 01/09/2020, a SeCom publica o seguinte post nas redes sociais:

O que poderia ser apenas uma resposta improvisada no “cercadinho” do Palácio do Planalto, tornou-se política de governo. Cheguei a comentar sobre este post na época:

Sim, é verdade, ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina. Nem por isso o governo deveria usar o seu poder de comunicação para vender a ideia de que se trata de uma opção como outra qualquer. Não é. Trata-se de saúde pública. A sua doença vai me afetar, pois será um a mais ocupando um leito hospitalar e alguém a menos para produzir para o país. O governo não precisa obrigar, mas tem o dever de estimular. Mensagens como essa têm o efeito contrário.

Até entendo que essa mensagem vem em resposta a uma pressão para tornar a vacina obrigatória. Mas, com o objetivo de rechaçar uma indevida intromissão nas liberdades individuais, o governo joga o seu peso institucional na direção inversa, quase uma mensagem de boicote. E isso é grave quando parte da autoridade constituída.”

A partir desse momento, toda a comunicação do Ministério da Saúde a respeito da vacinação contra a Covid-19 vem acompanhada com o mantra da não obrigatoriedade. Por exemplo, no comunicado sobre a intenção de compra da Coronavac, em 20/10/2020, está lá a frase: “o Governo Federal oferecerá a vacinação de forma segura, mas não recomendará sua obrigatoriedade aos gestores locais – respeitando o direito individual de cada brasileiro”. No comunicado do dia seguinte, temos: “Quando qualquer vacina estiver disponível, […] ela será oferecida aos brasileiros por meio do PNI e, no que depender desta Pasta, não será obrigatória”.

Em discurso no dia 06/01/2021, o então ministro Pazuello insiste no mantra:

Isso é interessante, porque o Ministério da Saúde patrocina muitas campanhas de vacinação e, em nenhuma delas, existe a observação da “não obrigatoriedade”. Por exemplo, o cartaz abaixo, fazendo a campanha para a vacinação contra a gripe, traz a frase “tem que vacinar”, uma mensagem oposta ao “a vacina não é obrigatória”. Observe que “tem que vacinar” não significa “a vacinação é obrigatória”, mas traz uma mensagem de urgência adequada ao problema.

A própria SeCom, como podemos ver em um dos posts da thread dedicada à lavagem de reputações, coloca a “não obrigatoriedade” como uma virtude do presidente, não percebendo a contradição em termos que isso significa:

Se a Secretaria de Comunicação, que, em tese, deveria entender de comunicação, não consegue sacar que insistir na “não obrigatoriedade” é equivalente a colocar uma névoa de dúvida em torno das vacinas, então entende-se por que esse governo está perdido nesse ponto. Para deixar a coisa mais clara, talvez o vídeo abaixo ajude a convencer que a insistência na “não obrigatoriedade” equivale, na prática, a negar a vacina:

A história da Secretaria de Comunicação

O foco da thread da Secretaria da Comunicação no Twitter é o cronograma de compra das vacinas. Afinal, independentemente de intenções ou sugestões subliminares, o fato é que o governo trabalhou para trazer vacinas para os brasileiros. Pelo menos, é sobre isso que querem nos convencer. O problema, como veremos, é que uma mistura de ideologia, luta política e incompetência atrasou a aquisição de vacinas pelo governo brasileiro. Vamos fazer um “fact checking” da thread produzida pela SeCOM e verificar se a tese se sustenta.

Esse primeiro tweet é interessante. De fato, mostra uma atenção do presidente ao tema. Mas achei estranho que não tivesse a parte de baixo com as curtidas. Fui verificar, e o tweet completo é o que vai a seguir:

É o então ministro Luiz Henrique Mandetta que faz o anúncio do primeiro teste de uma vacina. É neste ponto que uma mentira se conta através de uma meia-verdade: Mandetta foi escorraçado do governo justamente porque, digamos, sua linha não “casava” com a do presidente. Nesta época, portanto, o governo estava ainda em sua fase “científica”. Colocar Mandetta na thread comprometeria a narrativa. E o Ministério da Verdade a Secretaria da Comunicação está lá justamente para isso: eliminar da história os novos inimigos do povo.

O próximo tweet da thread fala sobre uma pesquisa da Fiocruz:

Trata-se do desenvolvimento de uma vacina brasileira. A iniciativa é bacana e tals, mas é pouco prática do ponto de vista que interessa: disponibilizar vacinas o mais rapidamente possível. Ou alguém acha que um laboratório federal brasileiro poderia competir com as grandes indústrias farmacêuticas globais? O depoimento do coordenador do estudo, Ricardo Gazzinelli, que reproduzo abaixo, é claro a respeito:

Gazzinelli ressalta que, embora as atividades já estejam em andamento, o desenvolvimento de uma vacina leva tempo. Em situações de calamidade pública, como a atual, em que as decisões relacionadas a financiamento são mais céleres, é possível chegar a resultados em torno de dois anos a três anos.” (grifo meus)

Lembrando que, em 03/04/2020, Luiz Henrique Mandetta ainda era o ministro da saúde. Sigamos.

Vamos ao próximo tweet da thread:

Note que o nome do ministro não foi citado. Era Nelson Teich, que mal esquentou a cadeira de ministro da Saúde. O governo Bolsonaro ainda tentava passar a ideia de contar com um ministério técnico. De qualquer modo, não há especificação de quais laboratórios estariam sendo contatados. A repercussão que o presidente deu ao “fato” (que não foi reproduzida pela SeCom pelo óbvio motivo de não relembrar que estamos no 4º ministro da saúde desde o início da pandemia) está reproduzida abaixo:

Fica o desafio de entender que raios significa “assim que o mapeamento for detectado”. Sigamos.

O próximo tweet, agora já com o então “ministro interino” Pazuello (a partir de agora a SeCom não precisa mais esconder o ministro da Saúde), mostra a boa intenção do governo. Mas, como sabemos, de boas intenções o inferno está cheio. Declarações de boas disposições não enchem a barriga e nem tiram vacina do nada.

Em seguida vem dois tweets anunciando a aprovação de estudos clínicos com a vacina produzida pela AstraZeneca:

A frase “colocou o Brasil entre as primeiras nações a buscar a vacina contra o coronavírus” é, para dizer o mínimo, imprecisa. O Brasil não foi “buscar uma vacina”. Na verdade, o Brasil foi “buscado” como campo de provas, por ter, na época do desenvolvimento (início de junho), um dos maiores índices de transmissão do mundo. Na época, o país era o líder global em número de casos e óbitos, a exemplo do que está ocorrendo neste momento. Não à toa, Sinovac, Pfizer e Jansen solicitaram e receberam aprovação para testes no país nos dois meses seguintes.

O próximo tweet trata de mais uma possibilidade distante: o início da fase pré-clínica de uma vacina nacional. Lembrando que, depois desta fase, a candidata à vacina precisa ainda passar pelas fases clínicas 1, 2 e 3. Não à toa, a matéria fala em registro somente em algum momento de 2022. São meritórias essas iniciativas, sem dúvida, mas estão na thread da SeCom só para passar a impressão, para o leitor menos atento ou mais engajado, que o governo estava sim fazendo alguma coisa.

A seguir, temos, finalmente, os primeiros tweets relevantes para o objetivo que nos importa: a obtenção de vacinas rapidamente.

Em 27/06/2020, o governo anuncia a parceria com a AstraZeneca para a compra de vacinas do laboratório e produção de vacinas pela Fiocruz. De toda a thread, este é, de longe, o fato mais relevante. Além de fechar a compra de 100 milhões de doses, prevê a transferência de tecnologia, o que é muito positivo. Mas o interessante é o seguinte trecho do comunicado do Ministério da Saúde:

“O acordo tem duas etapas. Começa com uma encomenda em que o Brasil assume também os riscos da pesquisa. Ou seja, será paga pela tecnologia mesmo não tendo os resultados dos ensaios clínicos finais. Em uma segunda fase, caso a vacina se mostre eficaz e segura, será ampliada a compra.

Nessa fase inicial, de risco assumido, serão 30,4 milhões de doses da vacina, no valor total de US$ 127 milhões, incluídos os custos de transferência da tecnologia e do processo produtivo da Fiocruz, estimados em US$ 30 milhões. Os dois lotes a serem disponibilizados à Fiocruz, de 15,2 milhões de doses cada, deverão ser entregues em dezembro de 2020 e janeiro de 2021.

O governo federal considera que esse risco de pesquisa e produção é necessário devido a urgência pela busca de uma solução efetiva para manutenção da saúde pública e segurança para a retomada do crescimento brasileiro.” (grifos meus)

Guarde essa informação: nessa parceria com a AstraZeneca, o governo brasileiro acha plenamente aceitável comprar um lote de vacinas que sequer foram testadas, quanto mais aprovadas pela Anvisa. Voltaremos a este ponto oportunamente.

A seguir, temos um tweet informando sobre a assinatura de uma Medida Provisória liberando US$1,9 bilhões para a produção e aquisição de vacinas.

Ou seja, no início de agosto o governo Bolsonaro separou R$ 1,9 bilhões do orçamento para comprar e produzir 100 milhões de doses da AstraZeneca. Lembrando sempre que esta vacina, assim como todas as outras até aquele momento, não contava com aprovação da Anvisa.

Neste momento interrompo a análise da thread da SeCom para mostrar algumas cenas de bastidores. Ao mesmo tempo em que a SeCom descreve um governo campeão na busca pelas vacinas assinando um grande acordo com a AstraZeneca, um outro grande laboratório global tentava também fechar um acordo com o governo brasileiro.

Os diretores locais da Pfizer, certamente animados com a perspectiva de garantirem fornecimento para um grande mercado consumidor como o brasileiro, começaram a conversar com o Ministério da Saúde. Testes clínicos na Fase 3 haviam sido aprovados pela Anvisa para a sua vacina em 21/07/2020, e a aprovação do acordo com a AstraZeneca no início de agosto com certeza despertou a óbvia possibilidade de negócio com o governo brasileiro. Afinal, 100 milhões de doses do acordo com o laboratório britânico não davam nem para o início em um país como o Brasil, e certamente o governo estaria atrás de outros acordos.

No entanto, aparentemente, não era bem assim. Soubemos depois (no final de janeiro) que o CEO mundial da Pfizer escreveu uma carta pessoal para o presidente Jair Bolsonaro, que reproduzo a seguir:

No terceiro parágrafo da carta, o CEO global da Pfizer afirma: “Minha equipe no Brasil se reuniu com representantes de seus Ministérios da Saúde e da Economia, bem como com a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Apresentamos uma proposta ao Ministério da Saúde do Brasil para fornecer nossa potencial vacina […], mas até o momento não recebemos uma resposta”. (grifo meu)

Trabalho em uma multinacional que é uma fração do tamanho da Pfizer. Em qualquer multinacional, e quanto maior mais essa regra é verdadeira, leva-se para o CEO somente os problemas que não têm realmente solução. Afinal, estamos ali para resolver problemas, não para levar problemas. Para que o presidente da subsidiária brasileira tivesse reconhecido seu fracasso diante do CEO global nas tratativas com o governo brasileiro, é que deve ter tentado MUITO, sem sucesso.

Um ponto da carta chamou-me a atenção: a ênfase no negócio fechado com o governo americano, então ainda liderado por Donald Trump. Observe que o CEO cita acordos com vários países, mas cita nominalmente somente o presidente dos EUA. O objetivo parece-me claro: Bolsonaro venerava Donald Trump, e seu aval serviria para mitigar eventuais resistências. Afinal, se Trump aprovou é que deve ser bom.

Ledo engano. A carta, assim como as tentativas anteriores, ficou sem resposta. Difícil de entender por quê. Quando a carta veio à tona, o governo brasileiro tentou explicar, em nota oficial, porque não fechou acordo com a Pfizer. Os motivos seriam os seguintes:

  • Seriam poucas doses disponíveis (2 milhões de doses no primeiro trimestre)
  • Cláusulas leoninas, como ativos brasileiros no exterior como parte do pagamento e foro em Nova York para eventuais disputas
  • Isenção do laboratório em relação a quaisquer efeitos colaterais provocados pela vacina
  • Dificuldade de logística (a solução da caixa térmica somente seria apresentada em novembro, segundo o Ministério)

Com relação às doses disponíveis, a AstraZeneca, até o momento (final do 1o trimestre), entregou 5 milhões de doses no Brasil, não muito diferente das supostas duas milhões prometidas pela Pfizer. Digo supostas porque no Reino Unido, terra da AstraZeneca, a Pfizer entregou 1,2 milhões de doses já em 2020, de um contrato total de 40 milhões de doses. Fica difícil de acreditar que teriam entregue apenas duas milhões de doses para o Brasil em todo o 1º trimestre.

Com relação às cláusulas leoninas, é fácil entender por que uma multinacional exige garantias de pagamento de um governo como o brasileiro. Aliás, essas cláusulas devem existir em todos os contratos com governos de países, digamos, bananeiros.

Com relação à cláusula de isenção de responsabilidade, difícil acreditar que essa mesma cláusula não constasse dos contratos assinados com outros países. Se a agência reguladora de um país certificou a segurança da vacina, essa cláusula serve para proteger a empresa de processos relacionados a efeitos de longo prazo que dificilmente podem ser correlacionados com a vacina. Afinal, processos desse tipo podem quebrar uma empresa. Ademais, a empresa tinha a faca e o queijo na mão, era assinar com a cláusula ou ficar sem a vacina.

Aliás, não ficou claro se essas cláusulas não constam mais do contrato que foi assinado pelo Ministério da Saúde para o fornecimento de 70 milhões de doses do laboratório norte-americano. Na nota em que o ministério informa sobra a conclusão das negociações, não há menção a essas cláusulas, mas duvido muito que a empresa as tenha retirado. A não menção a algo tão fundamental, por parte do Ministério da Saúde, parece-me ser a confirmação dessa tese.

Por fim, as dificuldades de logística não me parecem suficientes para não fechar um contrato de fornecimento. Estas vacinas poderiam ser usadas nas grandes metrópoles, onde o armazenamento mais complicado poderia ser realizado, enquanto as vacinas da AstraZeneca seriam distribuídas em lugares onde o armazenamento seria menos complexo.

Enfim, a história não contada pelo thread da SeCom escancara a incompetência ou a desídia do governo na contratação de vacinas. Não custa lembrar que a primeira vacina a ser aplicada no mundo foi da Pfizer:

Voltemos à thread da Secretaria de Comunicação. O próximo tweet fala dos testes que estão sendo levados a cabo no Brasil (onde lê-se “junho de 2020” leia-se “agosto de 2020”):

Como se a mera autorização para conduzir testes no Brasil significasse algum esforço do governo para adquirir vacinas, o que já constatamos estar longe da realidade.

Os próximos dois tweets abordam a adesão do Brasil ao consórcio Covax:

Em primeiro lugar, um esclarecimento: a iniciativa Covax é um dos quatro pilares de uma iniciativa mais ampla chamada ACT-Accelerator. Esta iniciativa está no âmbito da OMS e foi lançada em um evento em abril, cujos anfitriões foram o presidente da OMS, o presidente da França, Emmanuel Macron e a Fundação Bill & Melinda Gates. Não deixa de ser curioso que o governo Bolsonaro tenha aderido a um grupo que transpira globalismo pelos poros. Não contaram ainda para os fãs do Olavo de Carvalho o que o governo Bolsonaro anda fazendo…

Em segundo lugar, não houve “reconhecimento à postura criteriosa e comprometida do Brasil” coisa nenhuma. Como podemos ver na tabela abaixo, com os membros do conselho do ACT-accelerator, o Brasil foi convidado por ser um “market shaper”, ou seja, faz parte de um grupo de países grandes que fazem diferença em suas regiões. Pelo seu tamanho, o Brasil seria convidado qualquer que fosse o governo.

Por fim, a adesão ao Covax e o desembolso de R$ 2,5 bilhões em vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa mostram mais uma vez que o governo Bolsonaro não hesita em comprar vacinas sem a devida aprovação (vacinas que nem existiam à época!) quando avalia que esta é a melhor decisão. A adesão à Covax é como aquelas vaquinhas de escritório para comprar presente: não dá para não participar. Praticamente todos os países do mundo estão participando. Pelo menos, foi útil para a narrativa do comprometimento do governo com o esforço global de vacinação no mundo.

O próximo tweet da thread já vimos na seção sobre “não obrigatoriedade”:

Mas é o próximo tweet que nos interessa, não pelo que ele diz, mas, como sempre, pelo que não diz:

A notícia completa está aqui:

A afirmação de que esta foi a notícia que criou a narrativa do governo anti-vacina é um acinte à inteligência do leitor. Em primeiro lugar porque já havia todo um precedente, descrito no início deste artigo, de mal disfarçada prevenção contra a vacina, traduzida na insistência sobre a segurança e a não obrigatoriedade das vacinas.

Mas, o principal está na data da notícia: 21/10/2020, dia em que o governo Bolsonaro esnobou a vacina do seu arqui-rival, João Doria:

Vamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente um dia. No dia 20/10/2020, o ministro da Saúde havia se reunido com os 27 governadores dos estados e DF (note a presença maciça, não há como dizer que foi algo improvisado). Dessa reunião resultou uma nota oficial do ministério. Destaquei os trechos mais importantes para entender o que foi escrito.

Em primeiro lugar, tratava-se de um protocolo de intenção para possível aquisição. Por que isso? Porque, obviamente, qualquer aquisição depende de a Anvisa assegurar a segurança e a eficácia da vacina. É o que está escrito neste comunicado: “é importante ressaltar que elas devem ser liberadas pela Anvisa e ter eficácia e segurança garantida”. Note o “elas” na frase, referindo-se às vacinas do Butantan e também da AstraZeneca. As duas vacinas são colocadas lado a lado – ambas estão em Fase 3, ambas precisam de aprovação, ambas são somadas para se chegar ao total de vacinas disponíveis. A única diferença entre essas duas vacinas (e que não está escrito nesse comunicado) é que o Governo Federal, como vimos, colocou dinheiro no desenvolvimento da vacina da AstraZeneca, enquanto foi o governo de São Paulo que colocou dinheiro no desenvolvimento da vacina da Sinovac. De resto, o paralelo entre as duas vacinas é o que salta aos olhos neste comunicado. Como cereja do bolo, temos a frase “não descarta novas aquisições”, deixando claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, de que de aquisição é que se trata, sujeito, claro, à aprovação da Anvisa.

Depois do piti do presidente, o Ministério da Saúde soltou um “esclarecimento”, que reproduzo abaixo:

O contorcionismo verbal é evidente. A “nota de esclarecimento” somente repete o que foi afirmado na nota original: que as vacinas do Butantan serão adquiridas se forem aprovadas pela Anvisa. Esta é a essência do tal “protocolo de intenções”. Ninguém entendeu que a pasta tenha “aprovado” a vacina. Aliás, este expediente é manjado: atribuir ao seu interlocutor algo que ele não falou e negar veementemente.

Dizer que “não houve compromisso […] no sentido de aquisição de vacinas”, mas apenas um “protocolo de intenção” de aquisição é apenas uma malandragem. A nota original, como vimos, é clara sobre a intenção de aquisição, desde que tenha todas as aprovações sanitárias necessárias. Trocar a palavra “intenção” por “compromisso” é somente mais um subterfúgio para confundir algo simples: o ministério da Saúde não somente agregou as vacinas da Sinovac ao montante prometido de vacinas, como comemorou o feito em sua nota original. A aprovação pela Anvisa (e, portanto, a efetiva aquisição das vacinas) é algo que vale tanto para a Sinovac quanto para a AstraZeneca.

O único ponto que fugiu ao estilo somebodylove que marca essa nota de esclarecimento é a “não intenção de comprar vacinas chinesas”. Aliás, é exatamente isso que está escrito no tweet do presidente: “minha decisão é de não adquirir a referida vacina”. Como vimos, menos de três meses depois as vacinas chinesas foram as primeiras a serem distribuídas aos brasileiros.

Obviamente, a thread elaborada pelo Ministério da Verdade pela SeCom não faz menção a essa história. Prefere acusar a imprensa de manipular as falas presidenciais, como se todo esse affair da “vacina chinesa” não tivesse influenciado a opinião pública. Como se essa história simplesmente não existisse.

Aliás, é interessante como o governo, através da SeCom, age como se nada disso tivesse acontecido. No último dia 23/03, a SeCom publicou o seguinte tweet:

Nem vou entrar no mérito da comparação em números absolutos, e não em proporção de sua população. O ponto aqui é outro: dessas 14,12 milhões de doses administradas até o dia 22/03, nada menos do que 84% eram da “vacina chinesa do Doria”. Se fosse depender somente dos acordos fechados pelo governo “pró-vacina”, o país teria administrado algo como 2,5 milhões de doses, o que o colocaria lá na rabeira desse ranking, bem atrás de outros países muito menos populosos.

Concluindo

A postura anti-vacina do governo Bolsonaro foi construída de modo quase subliminar, através da ênfase no binômio segurança e não-obrigatoriedade. Segurança é um aspecto obviamente importante e não se trata de minimizá-la. Mas a insistência em chamar a atenção para este ponto, aliada à ênfase com relação à não-obrigatoriedade (conceito prima-irmã da desconfiança com relação à segurança), pavimentou a percepção da opinião pública. É excesso de polêmica para algo tão óbvio quanto uma vacina.

Para piorar, o governo Bolsonaro, seja porque tenha sido levado pelos seus vieses ideológicos, seja por pura incompetência, claramente ficou para trás na corrida pelas vacinas. Apostou todas as fichas em um acordo com a AstraZeneca e desprezou outras oportunidades que surgiram ao longo do caminho. Além disso, como vimos, entrou em uma querela política na qual não tinha nada a ganhar, a não ser agradar o seu eleitorado mais fiel.

A SeCom tenta reescrever a história, e nos conta as glórias de um governo campeão da vacinação. Assim é se assim lhe parece.