A qualidade do pedido de impeachment

Neste quarto post sobre o impeachment de Bolsonaro (já virou série!) vamos nos debruçar sobre os pedidos em si. O editorial do Estadão mais uma vez serviu-me de inspiração, pois chama a atenção para o “excepcional conjunto de pedidos de impeachment” que foi apresentado até o momento. Como sempre, fui pesquisar.

De fato, o número de pedidos é excepcional. Em números absolutos só perde para Dilma Rousseff, conforme podemos ver na lista abaixo. Mas, relativamente ao período de mandato, é recorde absoluto (entre parênteses, número de pedidos a cada 100 dias de mandato):

  • Collor: 29 (2,84)
  • Itamar: 4 (0,55)
  • FHC: 27 (0,92)
  • Lula: 37 (1,27)
  • Dilma: 68 (3,29)
  • Temer: 33 (3,87)
  • Bolsonaro: 61 (8,11)

Curioso notar que grande parte dos pedidos de impeachment até o momento se deu entre os meses de março e junho de 2020, justamente o período de mais baixa popularidade do presidente em seu mandato até o momento. Foram 42 pedidos em 109 dias, o que resulta na incrível marca de 38,53 pedidos a cada 100 dias. Se a popularidade cair daqui em diante, talvez possamos observar uma nova leva de pedidos de impeachment.

Vamos ao detalhe. São 61 pedidos, dos quais 2 são apócrifos (assinaturas não verificadas), então vou considerar somente 59.Esses 59 foram feitos por 41 pessoas diferentes. Ou seja, há vários pedidos feitos pelas mesmas pessoas.

Há coisas realmente curiosas: por exemplo, três dos pedidos foram feitos por detentos, um deles condenado por estupro. Há um pedido de um rapaz de 22 anos que se sentiu prejudicado porque o auxílio emergencial caiu de 600 para 300. Tem um pedido de um pizzaiolo e de um professor de línguas. Enfim, tem gente de todo tipo. Mesmo entre esses, há pedidos de sindicalistas e advogados ligados ao PT de alguma forma. São 5 pedidos desse tipo.

Entre os políticos que fizeram pedidos, temos dois tipos:

– os do PT e satélites: são 14 pedidos do PT, PSOL, PCdoB, PSB e Rede.

– os de ex-bolsonaristas: 3 de Alexandre Frota, 1 de Joice Hasselman e 1 do MBL.

Por enquanto, apesar do número gigantesco de pedidos, trata-se de um movimento ainda restrito a cidadãos obscuros, à esquerda e aos que, de alguma maneira, foram “traídos” por Bolsonaro. Da experiência dos dois impeachments que vivemos no período da Nova República, não é a quantidade de pedidos que determina o sucesso, mas a qualidade. Em ambos os casos, o pedido que teve sucesso foi patrocinado por um cidadão sem vínculos partidários e de muita respeitabilidade por parte de todos os atores políticos. No caso de Collor, o pedido foi apresentado pelo então presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho. No caso de Dilma, pelo advogado Miguel Reale Jr. Os pedidos em si não foram muito diferentes de outros. A diferença está em quem faz o pedido.

Miguel Reale Jr. já afirmou, em artigo, que há pencas de motivos para o impeachment de Bolsonaro. Mas ainda não se dispôs a apresentar um pedido estruturado. Falta alguém de sua reputação decidir a fazê-lo. Talvez porque as condições políticas ainda não estejam dadas.

As condições para um impeachment

Este é o meu terceiro post sobre impeachment nos últimos dias, o que, quando não menos, mostra que o assunto está em pauta.

Desta vez trata-se de um editorial do Estadão, que procura descrever qual seria o “crime de responsabilidade” do presidente. Procurei o tal crime no editorial, mas o máximo que encontrei foi a citação da lei que teria sido transgredida, além de uma exortação ao Congresso para que avalie a conduta do presidente. A nomeação mesma do crime, não há.

Apesar de não haver menção explícita, sabemos do que se trata: a gestão da pandemia, que produziu, até o momento, mais de 200 mil óbitos no território brasileiro. As atitudes e a desídia do governo federal seriam, em última análise, as responsáveis por essa catástrofe humanitária.

O que dizer?

Nos meus posts anteriores, nem entro no mérito do crime de responsabilidade que embasa o pedido de impeachment. Sempre achei esse ponto o menos relevante no processo. O que importa são as condições políticas gerais. Trata-se de um julgamento político, não jurídico. No entanto, é necessário, de qualquer forma, haver um crime de responsabilidade bem definido.

No impeachment do Collor, o crime foi a corrupção em que o presidente se envolveu pessoalmente, do qual os jardins da Casa da Dinda foram o símbolo midiático máximo. Já no impeachment da Dilma, as famosas “pedaladas fiscais” foram o crime. Tanto em um caso quanto em outro, tratavam-se de fatos muito objetivos, de fácil observação, que envolviam quase zero julgamento. E, mesmo assim, tanto Collor quanto Dilma caíram jurando inocência. O PT, inclusive, criou o mote “impeachment sem crime é golpe!” Aliás, Collor foi posteriormente absolvido no STF por falta de provas.

O que temos no caso de Bolsonaro? 200 mil mortes. Como ligá-las objetivamente ao presidente? Sim, ele menosprezou a epidemia, deu mal exemplo, falou contra as vacinas. Seu exemplo de líder certamente ajudou a piorar o quadro. Mas esta é uma opinião. Não se trata de um depósito fruto de corrupção encontrado na conta do presidente, ou do saldo negativo na conta da Caixa para pagamento do bolsa família, fatos esses bem objetivos.

O Brasil, hoje, tem aproximadamente 1.000 óbitos/milhão de habitantes. Países que supostamente têm uma gestão melhor da pandemia, como Bélgica (1.750 óbitos/milhão), Itália (1.350 óbitos/milhão), Espanha (1.150 óbitos/milhão) e Reino Unido (1.300 óbitos/milhão) têm estatísticas piores. E mesmo nossos vizinhos latino-americanos, com mesma pirâmide populacional e não comandados por “genocidas”, têm números semelhantes aos do Brasil: Argentina, 1.000 óbitos/milhão, Chile, 900 óbitos/milhão, México, 1.100 óbitos/milhão. Fica difícil, assim, correlacionar comportamento do dirigente máximo do país com o resultado final alcançado.

Alguns poderão dizer: “mas está morrendo gente sem oxigênio em Manaus!”. Sim, está. É culpa do presidente ou do governador? Ou será do prefeito? Se o presidente é culpado pelas mortes em Manaus será mérito dele que pessoas não estejam morrendo sem oxigênio nas outras unidades da federação? Por que as mortes seriam culpa dele e as pessoas salvas seriam mérito dos governadores? Por que não o inverso? No final do dia, quem decide isso são os deputados, no processo de impeachment.

Mas, como já estamos carecas de saber, impeachment é um processo político. Quando o Estadão pede que o Congresso se debruce sobre o caso, é na esperança de que os nobres deputados se convençam dessa correlação e condenem o presidente. Pode acontecer? Pode. Vai acontecer? Depende das condições políticas.

Os processos de impeachment até o momento tiveram a concorrência de quatro fatores, a saber:

  1. Queda do PIB de 4% ou mais
  2. Grandes manifestações populares de rua
  3. Popularidade líquida (vide meu post anterior a respeito) de -60
  4. Perda de apoio no Congresso

Note que não listei o “crime de responsabilidade” entre esses 4 fatores. Como disse, é o de menos. Se esses 4 fatores estiverem presentes, a responsabilidade pelas 200 mil mortes será dada. Já o inverso não acontece. É ocioso ficar brandindo crimes de responsabilidade como se fossem a parte mais importante do processo.

Como estão hoje esses 4 fatores?

O PIB caiu mais de 4% em 2020, fato. Mas suas consequências foram mais do que mitigadas pelo auxílio emergencial, o que pode ter adiado o problema para 2021, se não houver uma retomada forte da atividade econômica. Na minha opinião, este é o maior risco para Bolsonaro no momento.

Os outros 3 fatores estão relacionados. Os fatores 2 e 3 são o termômetro que os congressistas usam para definir se continuarão a apoiar o governo. Como não tem como ocorrer manifestações de rua em plena pandemia, o fator 3 ganha importância. Hoje, a popularidade líquida do presidente está em -8, muito distante ainda dos -60. Os congressistas sabem disso.

As eleições para as mesas da Câmara e do Senado servirão como um excelente termômetro do ânimo do Congresso para fazerem o que o editorial do Estadão pede. Vamos ver as votações de Artur Lira e Rodrigo Pacheco, os candidatos de Bolsonaro nas duas eleições. Mesmo que percam, se tiverem boas votações, demonstrarão apoio do Congresso ao governo. O fator 4 estará afastado, por ora.

Se não fosse o Dória…

Então, é isso: não fosse a vachina do Doria, estaríamos assistindo o mundo inteiro vacinando, esperando a nossa vez em março. Se não chovesse.

Nem acho que seja uma questão ideológica anti-vacina. Parece-me mais incompetência mesmo. Falta de foco e de gestão de prioridades.

Pode até ser que a ideologia tenha levado à incompetência. Mas pouco importa a existência e a ordem dos fatores. O fato é que estamos nas mãos de amadores na gestão da vacinação.

Popularidade e impeachment

Ainda sobre o tema impeachment.

Mantenho este gráfico já faz alguns anos. Ele mede o que chamo de “popularidade líquida”, ou seja, a soma de “ótimo/bom” menos a soma “ruim/péssimo”. Prefiro esta medida do que simplesmente olhar a aprovação, pois é diferente quando você tem um alto percentual de “regular” (indiferentes) ou um alto percentual de avaliações negativas. O gráfico é a média de 4 institutos: Ibope, Datafolha, a agência contratada pela CNT (hoje a MDA) e, mais recentemente, a Ipespe, contratada pela XP.

Pois bem, a regra geral é a seguinte: para o presidente ser impichado, é preciso que a popularidade líquida atinja -60 pontos. Mas atenção: é condição necessária mas não suficiente. Sarney e Temer atingiram essa pontuação, mas não foram afastados, pois tinham muita força no Congresso. Gastaram seu capital político para se manter na posição, estagnando o processo legislativo.

Vejamos o caso atual: acabou de sair fresquinha a primeira pesquisa pós lambança das vacinas, do instituto Ipespe. Mostra uma queda substancial da popularidade líquida, de +3 em dezembro para -8 agora em janeiro. No entanto, olhando em perspectiva, não está nem no pior momento do governo, que foi -15 entre maio e julho do ano passado. E, não preciso dizer, a uma distância enorme dos -60.

Claro, podemos estar fazendo a análise do cara que está caindo do 10o andar e, quando passa pelo 5o, alguém pergunta pela janela se está tudo bem, ao que o cara responde “sim, ventando um pouco, mas por enquanto tudo bem”. Esse pode ser o início de um processo que levará ao impeachment no final. Mas, por enquanto, estamos longe, muito longe ainda. E, ao que parece, o presidente está construindo a sua rede de proteção no Congresso.

O impeachment da militância

Ao ver as fotos das “manifestações” pelo impeachment de Bolsonaro, lembrei-me de três ocasiões que me marcaram durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

A primeira foi no dia 08/03/2015. No dia da mulher, Dilma estava fazendo seu tradicional discurso em cadeia de rádio e TV. Eu estava em uma festa familiar na Pompeia, bairro paulistano de classe média. De repente, começamos a ouvir uma barulheira do lado de fora: era um panelaço. O primeiro de uma série. Uma novidade na política brasileira. Quando ouvimos aquilo, nos entreolhamos e dissemos: é questão de tempo pra essa senhora cair.

A segunda foi na manifestação de 15/03/2015, a primeira de uma série. Minha sogra, à época com 76 anos de idade, fez questão de ir. Pensei: se uma senhora dessa idade, sem nenhuma vinculação ou interesse por política, se dispõe a ir a uma manifestação pelo impeachment, então é que a vaca foi para o brejo.

Por fim, a terceira foi no dia 16/03/2016, quando o juiz Sérgio Moro liberou o áudio do Bessias. Nesse dia, indo de volta para casa de trem, resolvi, no meio do caminho, dirigir-me à Paulista. Tinha certeza de que haveria manifestação lá. Era uma quarta à noite, e a Paulista foi interditada pela multidão. No prédio da FIESP, os dizeres “impeachment já“. Pensei: se uma manifestação dessas, formada por gente comum, se reúne sem convocação prévia e a FIESP pulou no barco do impeachment, agora é só uma questão de tempo.

As fotos abaixo mostram, segundo o jornal, “manifestantes” ou “pessoas”. Por enquanto, vejo só militantes.

Não que Bolsonaro esteja fazendo um excelente governo, pelo contrário. Mas daí a achar que o impeachment está às portas, vai uma distância abissal. Não estão dadas as mínimas condições para isso, por enquanto. Se e quando um milhão de pessoas se reunirem na Paulista para pedir a cabeça do presidente, voltamos a conversar.

PS.: Sim, eu sei que a pandemia impede aglomerações desse tipo. Mas sou capaz de arriscar que, mesmo sem a pandemia, teríamos os mesmos “manifestantes” com balões da CUT na Paulista. Minha sogra estaria confortavelmente em casa.

Politização e realidade alternativa

Politizou? Politizou.

Mas vamos imaginar uma realidade alternativa.

Nessa realidade alternativa, o governo federal atua de maneira diligente em busca da vacina. Além de patrocinar o convênio da Fiocruz com a AstraZeneca e comprar uma parcela tímida do consórcio COVAX, encampa a iniciativa de São Paulo, assumindo a coordenação desde o início. E, principalmente, adota uma postura pró-vacina, não detonando a iniciativa. Quem acompanha as redes bolsonaristas, sabe de quanto ceticismo foram vítimas as vacinas de maneira geral e a Coronavac de maneira particular. As falas do presidente não deixam dúvidas com relação a isso.

O governo federal preferiu atuar como concorrente dos estados, não como parceiro. Na verdade, como um sabotador da vacina. A realidade alternativa até deu uma colher de chá em outubro, quando o Ministério da Saúde se comprometeu a adquirir os lotes de Coronavac produzidos pelo Butantan. Mas Bolsonaro preferiu continuar antagonizando, e desautorizou o seu ministro da saúde. A partir daí, a realidade seguiu o seu curso.

Quando viu que a vaca da vacinação nacional estava indo para o brejo, o Ministério da Saúde tentou uma última cartada, mandando um avião para a Índia em busca da vacina da AstraZeneca. Um papelão. Não satisfeito, deu uma ordem para que São Paulo entregasse toda a produção imediatamente, como se Doria fosse um ginasiano assustado com o berro do professor.

Tendo frustrada a derradeira tentativa de evitar que o governador de São Paulo saísse na foto, o ministro da saúde conseguiu protagonizar o maior papelão de seu já deveras longo mandato, ao chamar uma coletiva não para comemorar a aprovação das vacinas, mas para passar recibo de perdedor, em uma competição que só interessa a Bolsonaro e Doria.

Doria politizou a vacina, sem dúvida. Mas é dele a única vacina brasileira aprovada e disponível até o momento. Na realidade alternativa, o espaço para politização da vacina por parte de Doria seria bem menor, pois o protagonismo seria do governo federal. Mas Bolsonaro preferiu jogar um jogo que não tinha como ganhar, pois nunca trabalhou com seriedade para isso.

Achaque oficial

Li várias vezes a notícia para ver se eu havia entendido direito. Mas parece que é isso mesmo: a direção da Ceagesp “sugeriu” que os permissionários concedessem 20% de desconto para PMs. “Fardados ou com identificação funcional”. Seria como um agradecimento “pelos bons serviços prestados”.

A Máfia costuma trabalhar exatamente dessa maneira: em troca de proteção, “aceita” uma pequena ajuda de custo. No caso, a proteção se dá em dois níveis: no físico, através do policiamento, e no, digamos, institucional, com Bolsonaro protegendo os permissionários da sanha privatista do governador de SP. A adesão é voluntária, diz o presidente da Ceagesp. Mas qual permissionário vai recusar-se a fazer?

Não sei nem por onde começar, mas vou tentar resumir tudo isso em uma frase: “Bolsonaro usa seu poder de Presidente da República para achacar os permissionários da Ceagesp em prol da corporação que quer cooptar, negando a privatização do entreposto que provoca lentidão nas marginais e impedindo a exploração imobiliária do local, que geraria milhares de empregos”. Ficou bom assim?

Playing games

Hoje, Bolsonaro seguiu com seu plano de encontrar um bode expiatório para o atraso na adoção de um plano de vacinação. No caso, os laboratórios. Ontem foi um post no Facebook. Hoje foi um papo reto com admiradores.

De fato, são os laboratórios que devem pedir o registro da vacina em um determinado país onde mantiveram testes clínicos. No caso do Brasil são quatro: AstraZeneca/Fiocruz, Pfizer, Janssen e Sinovac/Butantan.

Até o momento, nenhum desses laboratórios pediu o registro no Brasil, está certo. No entanto, o que está devidamente escondido na argumentação é: por quê?

Até o momento, os países que começaram a vacinar o fizeram com a Pfizer, com a Moderna ou com a Sputinik. Dessas, apenas a Pfizer fez testes clínicos no Brasil. A pergunta que não quer calar é: por que raios a Pfizer pediu registro em dezenas de outros países e não pediu no Brasil-sil-sil?

Será porque os outros países se esforçaram, chegaram na frente, mostraram interesse, enfim, não fizeram campanha contra a vacina? Bolsonaro pergunta se a Pfizer não tem interesse no nosso grande mercado. Claro que tem! Só que se trata de um bem escasso com uma imensa procura. A Pfizer prefere perder o seu tempo com outros países mais interessados, que ocuparão a sua capacidade de produção por anos.

O Brasil é aquela prima-dona que fica sentada no baile desdenhando de todos os rapazes, e depois culpa os próprios rapazes pelo fato de ter ficado sem ninguém para dançar.

Bolsonaro, mais uma vez, insulta a inteligência alheia, em um assunto extremamente sério. Até quando vai ficar playing games com a saúde da população?