Apoio maroto

Sexta-feira, antevéspera da eleição. No sprint final, continua o esforço por “normalizar” a candidatura do queimador de pneu em via de grande tráfego. Agora, são “empresários” que manifestam apoio.

Empresários são sujeitos práticos, que se interessam, antes de tudo, pelo sucesso de suas empresas. Se empresários estão apoiando Boulos, então trata-se de uma candidatura que tem consistência, nada radical. Essa é a mensagem.

Aí você vai ver a matéria do Valor. São três os “empresários” citados. O primeiro é Eduardo Moreira, ex-sócio de André Esteves no Pactual e que se “converteu” ao “capitalismo responsável socialmente”. Figurinha carimbada. Apresenta-se normalmente como “economista”, mas na reportagem virou “empresário”.

O segundo “empresário” é Paula Lavigne, que dispensa apresentações.

O terceiro empresário na verdade é um grupo, um tal de “empresas B”. Nunca tinha ouvido falar. Fui pesquisar. São empresas que defendem “um outro mundo possível”. Mãe Terra, por exemplo, é uma delas. Pra quem não conhece, fornece produtos orgânicos para descolados com muito dinheiro para gastar com comida. E por aí vai. É um outro mundo possível, desde que você possa pagar por ele.

Alguns nomes de “empresários B” aparecem na reportagem, mas são ilustres desconhecidos. Outros não aparecem por “questões de compliance”. Quase caí da cadeira de tanto rir. Apoiam o candidato, mas não podem aparecer apoiando o candidato. Muito útil esse apoio.

Trata-se claramente de uma não-noticia. Existe uma expressão em inglês que usamos quando uma pessoa tenta fazer algo, mas que é claramente insuficiente para atingir o seu objetivo: nice try.

Nice try, Valor.

Um mundo melhor

A notinha abaixo saiu na Coluna do Estadão de ontem. Alguns poderiam se questionar: por que o destaque para um “advogado apoiador de Guilherme Boulos”?

Bem, para quem não conhece, Marco Aurélio de Carvalho é o coordenador de um grupo de advogados chamado “Prerrogativas”, aquele que se organizou para defender as prerrogativas de clientes endinheirados e politicamente poderosos de se defenderem nos tribunais com chicanas intermináveis, aproveitando tudo o que o sistema judicial brasileiro tem de bom para seus clientes. Não é preciso dizer que estão no grupo os advogados de todos os enredados na Lava-Jato.

Como se vê, Boulos não conta somente com o apoio da juventude ingênua que quer “um mundo melhor”. Há outros interesses menos ingênuos por trás da eleição de Boulos, a ponto de Marco Aurélio declarar publicamente seu apoio à candidatura do PSOL. Será porque o grupo Prerrogativas queira também um “mundo melhor” para os seus clientes?

A matemática da aposentadoria

Por mais que se discuta, a Previdência nada mais é do que uma conta matemática.

Digamos que uma pessoa contribua para a sua própria aposentadoria durante 30 anos, poupando 11% do seu salário, e investindo essa poupança a uma taxa de 3% ao ano além da inflação. Depois de 30 anos, se essa pessoa, durante sua aposentadoria, investe o montante poupado a uma taxa de 2% ao ano além da inflação, vai poder retirar aproximadamente 27% do seu salário ao longo de 25 anos.

Obviamente, essa conta varia de acordo com as premissas adotadas: a taxa de juros, o tempo de trabalho, o tempo aposentado, o montante poupado. Mas não tem mágica, tudo não passa de matemática.

A previdência pública, tanto o INSS quanto a previdência dos funcionários públicos, trabalha no regime de mutualismo. Ou seja, o dinheiro da aposentadoria de um determinado indivíduo não está carimbado, esse indivíduo pode se aposentar com o dinheiro poupado por um terceiro. Mas, mesmo assim, no final, a conta é matemática: a soma de todas as aposentadorias de todos os indivíduos somados vão obedecer à regra descrita acima. Assim, se um indivíduo retira mais dinheiro do que poupou ao longo de sua vida de trabalho, esse dinheiro vai fazer falta para outro indivíduo. Alguém vai precisar cobrir a diferença. A isso chamamos de “déficit da previdência”.

O problema do déficit é camuflado durante o período em que entram mais indivíduos no mercado de trabalho do que aqueles que se aposentam. Funciona como uma pirâmide financeira, em que os poucos primeiros se beneficiam das contribuições dos seguintes entrantes no sistema. Esta pirâmide só ficou em pé, até o momento, por conta do chamado “bônus demográfico”, período no qual o número de idosos ainda não é grande, e o número de jovens continua aumentando. O Brasil está no fim do período de “bônus demográfico”, dada a queda da taxa de natalidade e o rápido envelhecimento da população. Por isso, a pirâm…, quer dizer, a previdência, já mostra sinais de fadiga. Alguns Estados, inclusive, já estão atrasando o pagamento das aposentadorias dos funcionários públicos.

Esse longo preâmbulo teve como objetivo embasar o comentário a respeito da previdência municipal de São Paulo, tema de debate nas eleições. Boulos sugeriu fazer mais contratações para manter a pirâmide financeira funcionando. Faria sentido, se assumíssemos que fosse possível manter uma pirâmide financeira ad aeternum, sempre introduzindo novos contribuintes para pagar as aposentadorias de um esquema que matematicamente não fecha.

A reportagem abaixo mostra o tamanho do déficit da previdência municipal da cidade de São Paulo ao longo dos próximos anos.

A previsão é que não haverá dinheiro para mais nada daqui a 10 anos, a não ser pagar as aposentadorias dos servidores municipais. Mesmo que, em 2018, tenha sido aprovado o aumento da alíquota de contribuição dos servidores, de 11% para 14%. Usei 11% no exemplo que dá início a este post justamente por conta disso. Se aumentarmos para 14%, dá para se aposentar com 34% do salário. Melhor do que os 27% anteriores, mas mesmo assim bem longe da aposentadoria integral. E isso considerando 30 anos de contribuição e 25 anos de tempo de aposentadoria. Sabemos que uma boa parte dos professores se aposentam mais cedo e usufruem mais tempo de aposentadoria. Fora a pensão para a esposa/esposo após a morte do beneficiário. A conta obviamente não fecha. Por isso, o déficit aumenta sem parar, mesmo com esse aumento de alíquota.

Corta para 2003.A primeira (e única) grande reforma do governo Lula foi a da previdência do funcionalismo público federal, em 2003. Por conta dessa reforma, o PT expulsou alguns de seus deputados que se recusaram a votar com o partido, entre eles Luciana Genro e Heloísa Helena. Esses dissidentes fundaram o PSOL, um PT puro.

O PSOL, portanto, nasceu da recusa de alguns deputados de reconhecerem a necessidade matemática de reformar a previdência. Essa lembrança vem nos ajudar a entender que a proposta de Boulos não é um acidente de percurso. Pelo contrário. É a própria essência do partido que representa. O partido nasceu recusando-se a admitir que havia um problema. Ou, na melhor das hipóteses, o problema é solucionável “contratando mais funcionários públicos” ou “cobrando dívidas das empresas”. No limite, fazendo mais dívida. Enfim, não está no DNA do partido cobrar dos funcionários públicos a fatura de suas próprias aposentadorias.

Acho graça quando ouço que Boulos é a “nova esquerda”, uma lufada de ar fresco no embolorado panorama da esquerda tupiniquim. Nada mais falso. Nova esquerda é Tabata Amaral, que não briga com a matemática e votou a favor da reforma da previdência mesmo contra o seu partido. Boulos é o novo representante da velha esquerda, apegada a paradigmas do século XIX. Não consigo pensar em nada mais velho do que “luta de classes”, em pleno século XXI.

Heloísa Helena, uma das deputadas expulsas do PT, foi a sensação das eleições presidenciais de 2006, quando chegou em um surpreendente terceiro lugar, com quase 7% dos votos. Lembro que todos diziam que o PSOL tinha vindo para ficar, era o novo PT, Heloísa Helena era um novo fenômeno eleitoral. Desapareceram, ela e o partido, nas brumas do extremismo ideológico. O mesmo ocorrerá com Boulos.

Boulos é o novo Lula?

Virou lugar comum a comparação entre Guilherme Boulos e Lula.

Boulos seria o novo Lula. Inicialmente um radical de esquerda, Boulos seguiria os passos de Lula, constituindo-se em um novo fenômeno eleitoral. Boulos teria a sabedoria de caminhar para o centro, de modo a angariar o apoio de setores mais amplos da sociedade.

Não sei se estou perdendo algo, mas entre Lula e Boulos, a única semelhança que vejo é a barba.

Lula literalmente veio do povo. Retirante nordestino, metalúrgico, líder sindical, Lula não conheceu a realidade de seus representados de ouvir falar. Ele nasceu nessa realidade.

Boulos, por outro lado, nasceu na classe média paulistana. Assim como muitos de seus coleguinhas burgueses, Boulos sente na consciência uma dívida social que o faz simpatizante de ideias socialistas. E vai além: assume como sua a luta dos excluídos do sistema capitalista. Mas a sua postura trai a sua origem.

No debate com Covas na CNN, o ponto alto de Boulos foi a defesa que fez de sua experiência com o povo sofredor. Covas teria informações sobre este povo somente ouvindo seus assessores em seu gabinete, enquanto ele, Boulos, teria conhecimento direto das pessoas que sofrem, com nome e sobrenome.

Boulos não percebeu, mas se colocou acima dessas pessoas. Como se fosse um observador privilegiado em um zoológico. Lula teria dito “eu sou uma dessas pessoas”, e não “eu conheço essas pessoas”. Boulos não é uma dessas pessoas. É um ser estranho a este mundo, por mais que viva e compartilhe dessa realidade.

Lula transpirava autenticidade, Boulos transpira artificialidade. Um dos elogios e paralelos que é comumente destacado em Boulos é a facilidade que tem de falar, assim como Lula. Nada mais falso. Lula não falava bem, no sentido culto do termo. Lula era autêntico no que falava, o que é diferente. Boulos é correto no que fala, não agride a norma culta. Percebe-se que tem berço. E é isso que não casa com a figura de um político que pretende agir em nome dos pobres. Soa artificial. Foi isso que senti quando o vi no debate da CNN.

Quando Marina Silva surgiu no cenário político, também foi um frisson. Seu terceiro lugar na eleição presidencial de 2014 a fez uma estrela em ascensão, a Lula de saias. E olha que Marina, assim como Lula, tinha como ativo a sua origem humilde, uma brasileira comum. O pecado de Marina foi ter se tornado intelectual e, portanto, ininteligível para a grande maioria dos brasileiros. Fez o caminho inverso de Boulos, e tornou-se, também, artificial. Sumiu.

Pode ser que eu queime a língua, e Guilherme Boulos seja o grande líder que levará a esquerda de volta ao poder. A esquerda está desesperada atrás de um novo barbudo. Mas desconfio que tenha que procurar um pouco mais.

Quem quiser que acredite na conversão

É comovente a campanha da imprensa para embrulhar Guilherme Boulos para presente. A reportagem do Valor, maior jornal de economia e finanças do país, é o último exemplo.

Boulos está sendo vendido como um “moderado”. Seria uma espécie de Haddad, mas sem o defeito de ser petista. Ele só quer a igualdade, o que seria bom para a economia capitalista. Fiquei tocado com essa preocupação com os capitalistas.

O “diálogo com o setor privado” é inevitável, como se a concessão de conversar com quem produz tivesse o condão de apagar tudo o que Boulos fez no passado. Boulos, “em outro sinal de moderação” (?!?) também prometeu não acabar logo em janeiro com a terceirização de serviços da prefeitura. Será em fevereiro então? Pelo menos deixou claro que é contra toda e qualquer privatização. Moderação tem limite, não é mesmo?

A tal “fama de invasor de casa” seria injusta. Bem, Boulos lidera um movimento que tem como objetivo tomar posse de propriedades alheias para dar-lhes um uso “social”. Na onda de edulcoração da realidade, isso se transformou em “fama ruim”, não seria nada disso, Boulos é um moderado.

A presença de Boulos na Associação Comercial lembra Haddad e Manoela na missa. Foi lá, ajoelhou-se, comungou. Quem quiser que acredite na conversão.

O que é meu, é meu, o que é seu, é seu

A última pesquisa Datafolha para as eleições em São Paulo trouxe uma informação interessante, e que só agora arrumei um tempo para comentar.

No geral, os primeiros 4 colocados são os seguintes:

  • Bruno Covas: 23%
  • Celso Russomano: 20%
  • Guilherme Boulos: 14%
  • Marcio França: 10%

No entanto, Boulos lidera em dois segmentos da população, que na verdade são um só: renda acima de 10 salários mínimos e educação superior. Esses dois segmentos são um só porque a renda tem uma correlação grande com a formação educacional.

Nesses dois estratos, a pesquisa traz os seguintes resultados (o primeiro número é o do segmento de maior renda, enquanto o segundo é o do segmento de educação superior):

  • Boulos: 28, 25
  • Covas: 25, 23
  • Russomano: 9, 9
  • França: 6, 11

Já nos estratos opostos, renda menor que 2 salários mínimos e ensino fundamental, os resultados são os seguintes:

  • Russomano: 25, 26
  • Covas: 22, 28
  • Boulos: 9, 4
  • França: 7, 6

Podemos observar que Bruno Covas e Marcio França são mais ou menos consistentes entre essas diversas categorias de eleitores. Ou seja, não há muita diferença se o eleitor é rico ou pobre, se estudou muito ou pouco, o resultado é mais ou menos o mesmo.

Já a intenção de voto em Russomano e Boulos muda dramaticamente: Russomano é o candidato dos pobres e iletrados, Boulos é o candidato dos ricos e intelectuais.

Óbvio que se trata de uma generalização, e toda generalização é burra e limitada. Há muitas nuances aí. Mas, sem dúvida, parece haver uma tendência de os eleitores trocarem Russomano por Boulos na medida em que aumenta a renda e a educação.

Esse não é um fenômeno somente paulistano. Marcelo Freixo, no Rio de Janeiro, obteve suas melhores votações na orla da Zona Sul, enquanto Crivella reinou absoluto na periferia da cidade.

Os que defendem a candidatura Boulos nos segmentos mais ricos da cidade, certamente o fazem por acreditarem que é a melhor solução para os problemas dos pobres. Esse é o discurso.

Já os pobres mesmo acreditam que seus problemas serão melhor resolvidos de outra forma. O “lugar de fala” lhes pertence, e eles insistem em usá-lo para contradizer as teorias dos ricos e intelectuais, que costumam classificar pobre que vota na direita de “burro”. Como se pobre não soubesse distinguir justiça social de empulhação.

Já disse aqui e repito: os métodos de Boulos vão afastar os votos dos mais pobres, que não se encantam com essa ladainha de “uso social da propriedade privada”. O que é meu é meu, o que é seu, é seu. O resto é cantiga de ninar para anestesiar consciências capitalistas pesadas.

A torcida organizada por Boulos

A coluna do filho da Miriam Leitão mal consegue esconder a torcida por Boulos.

O “maior fenômeno eleitoral de 2020”, na verdade, está se beneficiando dos órfãos do PT, que tiveram que engolir um candidato da velha guarda do partido. Tivesse o PT um candidato competitivo, o PSOL estaria agora amargando o 1% que sempre teve em São Paulo. E não digo nada se começar a perder eleitores quando o PT colocar sua máquina na rua e nas TVs.

Há alguns trechos curiosos na “análise”. O seu “poder de comunicação” estaria vencendo “o grande preconceito jogado (sic) contra ele”. O fato de o candidato invadir propriedade alheia não teria nada a ver com a rejeição (chamada de “preconceito”) do eleitorado. Na verdade, trata-se apenas de uma “tática controversa”, não de um crime. Afinal, “chama a atenção para o enorme problema do déficit habitacional”. Só falta dizer que assalto é uma tática controversa, mas pelo menos chama a atenção para o grave problema da distribuição de renda no país.

Segundo o analista político dos barzinhos da Vila Madalena, Boulos tem “raiz e base”, porque construiu meia dúzia de prédios em terrenos invadidos, usando dinheiro da prefeitura doado pelo Haddad.

Parece-me o justo oposto. Se fizermos uma enquete nas periferias, sou capaz de apostar meu dedo mindinho que grande parte da população é contra a invasão de propriedade alheia. Quem trabalha de sol a sol sabe quanto custa cada coisa que conquistou com o suor do seu rosto, e é muito cioso de sua propriedade. O MTST monta milícias que justamente “trapaceiam” aqueles que trabalham, pois privilegiam os que burlam a lei. O que está errado não está certo, e o povo sabe disso.

Boulos faz sucesso entre a intelectualidade romântica, aquela que não terá os seus apês de 200 m2 invadidos, mas são pródigos em lutar pela distribuição da propriedade… dos outros. Sua fala fácil e mansa conquista corações sensíveis e consciências pesadas. Será bem votado em bairros de classe média alta.

Na periferia, no entanto, o barbudinho não engana ninguém. Quem viver, verá.

Conhecimento vs intenção de voto

A manchete é: “Russomano lidera pesquisa de intenção de voto em São Paulo.

A manchete deveria ser: “Russomano e Covas são bem mais conhecidos do que os outros candidatos”.

A última pergunta do questionário é a mais importante: apenas 15% e 18% dos eleitores não ouviram falar do candidato, nos casos de Russomano e Covas. Em relação aos outros, esse número é perto de 50% ou mais.

Eleição funciona como a compra de um produto. Se alguém lhe parasse na rua e perguntasse qual margarina você compraria da seguinte lista:

  • a) Doriana
  • b) Becel
  • c) Overztol
  • d) Botteram

O que você responderia? O que você acha que a maioria das pessoas responderia? Pois é.

Nessa fase, em que a campanha eleitoral ainda não começou, a intenção de voto não passa de medida de conhecimento da marca. Não é à toa que Russomano sai na frente todo ano. Não estou dizendo que ele não vai ganhar este ano, estou apenas afirmando que ele precisa passar pelo teste da campanha eleitoral, onde derrapou nas últimas eleições.

Cabe notar que no pelotão seguinte de desconhecimento por parte do distinto público estão Boulos, França, Fidelix e Joice. A má notícia para Fidelix e Joice é que, mesmo com um nível de conhecimento intermediário, sua intenção de voto é baixa e sua rejeição é alta, desproporcionalmente alta. Fidelix está lá por folclore, mas Joice está para valer. Vai ter muito trabalho.

Ainda nesse sentido, eu não descartaria de cara Jimar Tatto. Ele é pouco conhecido e conta com a ainda formidável máquina do PT na cidade. Tem capacidade de embolar o meio de campo da esquerda com Boulos e França em busca de uma vaga para o 2o turno. Correm o risco de, se não houver voto útil, ficarem os 3 de fora.

A briga em São Paulo será difícil. Não será um passeio no parque como em 2016, quando Doria venceu no 1o turno pela primeira vez na história da cidade em que não houve 2o turno, na onda do anti-petismo. As forças estão dispersas, o eleitor está desconfiado de todo mundo. Como dizem os antigos, vai ser no fotochart.

As migalhas

Bater no Boulos não tem graça, eu sei. O marxismo do sujeito é tão de almanaque, que qualquer coisa que ele diz parece vindo de um viajante do tempo que acaba de chegar do fim do século XIX.

Mas não pude resistir a comentar a sua fala em apoio aos entregadores de aplicativos. Boulos descobriu um filão, a luta dos moto e cicloboys por remuneração maior. Sua forma de entender o problema, porem, é típica de quem não entendeu como se cria riqueza ao longo do tempo. Note que não falei “de quem não entendeu o capitalismo”, mas sim algo mais amplo, que supera uma determinada forma de organizar a produção.

Boulos não se conforma com o fato de que as empresas de tecnologia fiquem com a parte do leão “só por oferecerem uma tecnologia”, enquanto os donos dos braços, pernas, motos, bikes e carros fiquem com as migalhas do negócio de entregas.

Ocorre que essa é a regra, não a exceção. A tecnologia, em qualquer lugar e tempo, é o que mais agrega valor, é o que mais gera riqueza. Quem domina a tecnologia, é mais rico. Simples assim.

Sempre uso esse exemplo, mas como tem muita gente nova por aqui, vou usar de novo, com a licença dos leitores mais antigos. Somos um dos maiores produtores de café do mundo, com muito orgulho. No entanto, quem fica com a parte do leão dos lucros dessa indústria? A Nestlé, com o seu Nespresso e outras tecnologias. A Suíça não produz um grãozinho de café sequer, mas fica com o grosso dos lucros da indústria. Faz sentido? Todo sentido. Ou alguém toma café diretamente do grão?

Ao desenvolver uma tecnologia que agrega valor para o usuário, a Nestlé multiplica em dezenas de vezes o potencial do grão do café. E se apropria dessas dezenas de vezes, sobrando as migalhas para os produtores de café.

É sempre assim. E como se cria alta tecnologia comercializável? Porque também tem isso: não basta ser um professor Pardal supercriativo, inventor de mil e uma tecnologias inovadoras. É necessário criar uma empresa que faça essa tecnologia chegar aos usuários por um preço razoável. Isso requer não só o gênio criativo, mas também, e principalmente, a capacidade de captar o capital necessário para o desenvolvimento de uma forma de fazer chegar a tecnologia para os consumidores. Que são, afinal, os que darão o veredito final sobre o valor agregado daquela tecnologia.

A nova fronteira tecnológica está na Internet móvel. Ao conectar tudo e todos em qualquer lugar, a Internet móvel abre campos insuspeitados de ganhos de produtividade. E agregar valor nada mais é do que fazer mais com menos, entregando o mesmo produto por preços menores ou produtos novos por preços acessíveis. Não é à toa que as empresas mais valiosas do mundo hoje são as que exploram essa tecnologia.

Só que, para chegar lá, existe um caminho tortuoso e incerto de erros e acertos. Para cada Facebook que dá certo, milhares de outras empresas que tentaram caminhos alternativos fracassaram. E é preciso capital intensivo para testar todos esses caminhos. O caminho até o Santo Graal da tecnologia é coalhada de cadáveres.

Voltemos à questão das plataformas de entrega. Imaginemos o mundo antes dessa tecnologia. Cada entregador deveria procurar um emprego em milhares de pequenos comércios que tivessem tomado a decisão de manter frota própria, ou em centenas de pequenas empresas de entregas. Os comércios tinham que manter frotas próprias ou contar com as pequenas empresas de entrega. E os usuários deveriam contratar essas pequenas empresas de entrega ou comprar de pequenos comércios com frotas próprias. Um esquema claramente improdutivo, se comparado aos aplicativos.

Hoje o usuário tem, na palma da mão, acesso a milhares de comércios e milhares de entregadores. E os comércios não estão mais na mão das pequenas e ineficientes pequenas empresas de entregas. E, mais importante que isso, têm condições de atingir públicos muito maiores, que saberão sobre a existência de seu pequeno comércio através do aplicativo. Aliás, esse é o grande pulo do gato: publicidade. A entrega é quase mero detalhe.

Ter braços, pernas, carros, bikes e motos é como ter o grão do café. O valor agregado é muito baixo, perto do que fazem os aplicativos de entrega. Por isso, moto e cicloboys recebem as migalhas, assim como os plantadores de café. Boulos nunca vai entender isso.