Kissinger

O livro Diplomacia, de Henry Kissinger, moldou minha forma de ver as relações internacionais. Em suas quase mil páginas, Kissinger analisa e faz uma crítica mordaz aos movimentos dos países ao longo de mais de um século, desde Bismarck até o fim da guerra fria. O eixo condutor é o antagonismo entre a teoria das “esferas de poder”, que era o modus operandi europeu e o “wilsonianismo”, nome que se refere ao presidente americano durante a 1a Guerra, Woodrow Wilson. A teoria das “esferas de poder” defende que os Estados se movem para conquistar e consolidar espaços de poder na esfera internacional, enquanto o “wilsonianismo” advoga uma atitude virtuosa dos países, em busca do bem comum. É o wilsonianismo que dá origem à Liga das Nações e, depois, à ONU. A inutilidade de ambas as instâncias dá uma pista de qual teoria Kissinger abraça com vigor. Recomendo fortemente sua leitura para entender melhor o mundo em que vivemos.

R.I.P.

Bolsonaro, Jango e as esferas de poder

“Ou o chefe desse Poder enquadra o seu, ou esse Poder vai sofrer o que não queremos”.

Kissinger, em sua obra Diplomacia, distingue duas formas de exercício do poder: as “esferas de poder” e o que ele chama de “wilsonianismo”, em referência ao presidente americano Woodrow Wilson no tempo da 1a guerra mundial. O wilsonianismo, em resumo, é uma doutrina que prega a superioridade moral da paz e, segundo a qual, as nações deveriam conviver sob certos princípios moralmente superiores. A Liga das Nações foi fundada sob o signo do wilsonianismo. Já as esferas de poder são o bom e velho “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Kissinger descreve a relação de forças europeia até a eclosão da 2a guerra com base nas “esferas de poder”. Não precisa dizer qual dessas duas abordagens funcionou melhor para explicar o desenrolar dos acontecimentos.

Lembro dessa obra de Kissinger porque estamos diante de uma luta entre “esferas de poder”. Cada lado da contenda reivindicará superioridade moral sobre o outro, no melhor estilo wilsoniano. Mas o resultado final será dado pelas velhas esferas de poder. Como diz o velho refrão futebolístico, chegou a hora de ver quem tem mais garrafa vazia pra vender.

Voltemos à frase que abre este post. Só a profere quem está bem posicionado na mesa com um zap (linguagem de jogador de truco, que significa posição superior para ganhar a mão). Para o bem de Bolsonaro é bom que ele não esteja blefando, porque o outro lado está se organizando para gritar um seis (que significa desafiar o adversário a mostrar suas cartas).

Há uma contradição em termos nas manifestações pró governo. Os apoiadores do presidente se gabam de formarem um exército pacifico, incapaz de matar uma mosca. São famílias, idosos e cachorros que só querem um mundo melhor. Isso funciona em um mundo wilsoniano. No mundo das esferas de poder, é preciso ter instrumentos de dissuasão. É preciso ficar claro para o outro lado qual o passo seguinte possível e quanta dor esse passo pode causar. Manifestações pacíficas de famílias, idosos e cachorros podem ser tudo, menos instrumento de dissuasão. Não em um mundo em que prevalece a lógica das esferas de poder.

A contradição das manifestações está justamente nisso: para que a ameaça de Bolsonaro seja crível, é preciso que haja o emprego da força, com as forças armadas ao seu lado. Um golpe. São manifestações pacíficas a favor de uma tomada de poder não pacífica. E aqui, pouco importa a filigrana de se classificar o golpe como um autogolpe ou um contragolpe. Essas discussões podem servir para dar um bom pretexto moral para uma ação de força, no melhor estilo das “esferas de poder”. Mas o que vai definir o resultado final do jogo é o lado que tem o zap na mão.

E o zap não são as forças armadas, ou só as forças armadas. Nem tampouco centenas de milhares de famílias, idosos e cachorros nas ruas. No golpe de 64 havia forças armadas e famílias nas ruas. Mas, além disso, havia o apoio de todo o establishment político, econômico e midiático à deposição de Goulart. O então presidente encontrava-se isolado e lançava mão de comícios e eventos em clubes militares para mostrar força. Neste momento, Bolsonaro me lembra Jango.

A marca do fracasso

“Foi revelada ao mundo a falência de um regime comunista, incapaz de induzir os próprios cidadãos a permanecerem dentro de seu país”.

Palavras de Henry Kissinger, em sua monumental obra Diplomacia, a respeito do início da construção do muro de Berlim.

Muitos consideram a queda do muro de Berlim como o marco do fracasso do regime comunista. Nada mais equivocado. A verdadeira confissão desse fracasso foi a necessidade da construção do muro. Não consigo pensar em nada mais falido do que um regime que precisa enjaular seus próprios cidadãos.

Escolhendo a desonra

Ainda sobre a candidatura de Lula mesmo contra a Lei da Ficha Limpa, como uma solução de compromisso para “preservar a democracia”, ou para “garantir a governabilidade”.

Essa situação me faz lembrar a leitura completamente equivocada das potências ocidentais em relação a Hitler antes da 2a Guerra e em relação a Stálin após a 2a Guerra.

Kissinger, em sua monumental obra Diplomacia, descreve com precisão: as potências ocidentais (Inglaterra e França antes da guerra, EUA depois da guerra) queriam a paz a qualquer custo. Desconsideravam os objetivos do seu interlocutor. Ou melhor, assumiam que o objetivo era o mesmo. E, com isso, fizeram concessões e mais concessões, até que ficou claro que Hitler não iria parar até conquistar a Europa e Stálin tivesse instalado governos-títeres em todos os países da Cortina de Ferro. Mas aí, já era tarde demais.

Enquanto as forças que jogam o jogo democrático continuarem achando que o PT joga o mesmo jogo, continuarão a ceder terreno, até ser tarde demais. Aí, só restará a luta com “sangue, suor e lágrimas”, como disse Churchill, um dos poucos que entenderam a real natureza dos seus oponentes. Sangue, suor e lágrimas que nossos vizinhos venezuelanos estão vertendo nesse momento.

Parafraseando Churchill, entre o descumprimento da lei e a guerra, eles escolheram o descumprimento da lei, e terão a guerra.