100% do quê?

100% de alguma coisa é tudo. O problema é saber o que é esse “tudo”.

No pico anterior da pandemia aqui na capital paulista, atingimos 250 casos/milhão/dia e quase 9 óbitos/milhão/dia. Hoje estamos rodando a cerca de 150 casos/milhão/dia e quase 4 óbitos/milhão/dia. Não lembro de ter lido na época (junho/julho) que estávamos com o sistema de saúde particular saturado. O que aconteceu de lá para cá?

Simples: o número de vagas de UTI para Covid-19 diminuiu, dando lugar a vagas para cirurgias eletivas. O “tudo” encolheu. E isso aconteceu porque os hospitais, apesar de sua aura de anjo da guarda da humanidade, são um business tanto quanto uma bar. Abrir mão das eletivas significou um baque financeiro enorme no primeiro semestre, e agora os grandes hospitais particulares relutam em voltar a dedicar essas vagas para a Covid.

Duas coisas então: 1) se houver um decreto para o fechamento do comércio, deveria vir acompanhado de uma proibição de cirurgias eletivas. Afinal, guerra é guerra e 2) faria bem a imprensa em divulgar não somente o percentual de ocupação, mas o número total de leitos disponíveis. Sem esse dado, a informação pode ficar distorcida.

PS.: por favor, não entendam esse post como uma minimização da crise sanitária pela qual estamos passando. Os números de São Paulo estão bem melhores dos que os do Sul do país, mas é uma questão de “quando”, não de “se” a nova cepa vai chegar por aqui, estressando o nosso sistema.

Ocupação das UTIs em São Paulo

Hoje, pela primeira vez desde que comecei a acompanhar, nenhuma região de S Paulo está com mais de 80% de ocupação de UTIs.

A chave das cores é a seguinte:

  • acima de 80%: vermelho
  • entre 60% e 80%: laranja
  • entre 40% e 60%: amarelo
  • abaixo de 40%: verde

Números da capacidade hospitalar

A área de pesquisa do Bank of America fez um excelente trabalho de levantamento da capacidade utilizada dos hospitais nos estados brasileiros, considerando rede pública e privada. Como sabemos que a ocupação da rede privada está um pouco menor, a ocupação na rede pública deve estar um pouco maior que esses números.

Este levantamento foi publicado ontem.

Qual a real letalidade da Covid-19?

Nunca saberemos com certeza o real grau de letalidade do Covid-19. Por um motivo simples: esse grau de letalidade depende da eficiência do atendimento hospitalar.

Em países como Itália e Espanha, graus de letalidade acima de 10% não indicam uma predileção do vírus por matar espanhóis ou italianos, ou não somente uma subnotificação absurda. Indica o colapso do sistema hospitalar, que não conseguiu dar conta adequada do número de doentes.

Chamo a atenção para este ponto porque precisamos ter em mente para que serve a política de distanciamento social. Essa política não serve para evitar a todo custo que a doença se propague, mas que se propague a uma velocidade que permita ao sistema de saúde lidar com a situação. Por isso, tem limitada utilidade essas estatísticas diárias de casos/mortes se não forem acompanhadas do grau de utilização dos leitos no sistema hospitalar. Se houvesse testagem em massa, o número de casos até serviria como um indicador antecedente da ocupação hospitalar, o que permitiria um planejamento melhor. Mas nem isso, os casos testados normalmente são daqueles que já procuraram o hospital.

O número de casos/mortes é uma grandeza etérea, que significa muito pouco para a maioria das pessoas. Que me desculpem os parentes dos falecidos, mas o que são 1.500 mortes em uma população de 200 milhões? Enquanto não acontecer uma morte de alguém próximo, essa estatística não passará de… uma estatística.

Já a ocupação dos leitos hospitalares é um dado bem concreto. Se houvesse diariamente a divulgação do número de leitos disponíveis por Estado da federação, este número seria muito mais impactante, pois não são muitos. E a evolução desse número ao longo do tempo seria uma forma de alertar a população para o problema. Além, claro, de servir como parâmetro para o planejamento de ações.

Por isso, causa-me espécie que somente agora, meados de abril, mais de um mês depois do início da transmissão comunitária, o Ministério da Saúde vai começar a exigir dados frequentes de ocupação de leitos de UTI de Estados e municípios. Enfim, antes tarde do que nunca. Mas dá medo o amadorismo da coisa.

Cadê o número de hospitalizações?

Diz o secretário municipal de saúde da cidade de São Paulo que já foram criados 1.662 leitos exclusivamente para pacientes com coronavírus. A reportagem não diz, mas estes não devem ser todos leitos novos, como os criados nos hospitais de campanha. Muitos hospitais foram reorganizados com alas exclusivas para o corona, e esses leitos devem estar sendo contabilizados nesse total.

O secretário afirma que 60% desses leitos já foram ocupados. Isso significa aproximadamente 1.000 pacientes. Como, até ontem, tínhamos 5.000 casos notificados na cidade, isso representa 20% do total.

As estatísticas de Wuhan (não sei se foram confirmadas em outras localidades) indicaram que 15% dos contaminados precisaram de alguma internação hospitalar. Este número pode estar superdimensionado, pois nem todos os contaminados foram testados.

Para que o índice de hospitalização da cidade de São Paulo igualasse o de Wuhan, seria necessário que houvesse 6.666 casos na cidade, ou 33% a mais. Em outras palavras, se a subnotificação em São Paulo fosse a mesma de Wuhan, teríamos 33% casos a mais neste momento.

O interessante é que o Ministério da Saúde, em seu boletim de ontem, afirmou que 4.436 pessoas estão hospitalizadas no país inteiro, o que representa 21% do total de casos. Vale aqui, portanto, o mesmo raciocínio.

O número de hospitalizações seria uma boa medida do avanço da epidemia. Pena que este número não seja divulgado de maneira recorrente.