Abusando da inteligência do cidadão

“Se entrarem os precatórios, não há dinheiro para expandir as vacinas. Será que o jovem lá do IFI sabe disso? Ele prefere pagar o precatório e ficar sem vacina? Eu acho que os senadores, se estivessem bem assessorados, estariam bem informados disso”.

Essa fala calhorda foi pronunciada pelo nosso ministro da Economia, em audiência no Senado na última quinta-feira.

Seria mais ou menos o seguinte: o pai de família esbanja dinheiro com carros, viagens e amantes. É então condenado em uma ação judicial, mas diz para o juiz: “olha, não consigo pagar, senão vai faltar comida na mesa da minha família”.

Não é de hoje que o nosso ministro da Economia abusa da inteligência do cidadão brasileiro pagador de impostos.

As críticas de Guedes à Instituição Fiscal Independente

A IFI, Instituição Fiscal Independente, é um instituto ligado ao Senado Federal. Foi criada em março de 2016 e instalada em novembro do mesmo ano, como resposta ao trauma causado pelas “pedaladas fiscais” do governo Dilma.

Quem acompanhava de perto as contas do governo na época sabia que algo não estava se encaixando. Mansueto Almeida, por exemplo, mantinha um blog em que apontava as incongruências e bombas-relógio que estavam em gestação nas contas públicas da época. Com o objetivo de não depender da boa vontade de especialistas eventuais, o Senado, seguindo as melhores práticas internacionais, estabeleceu a IFI, que conta com diretores com mandatos fixos. O economista Felipe Salto foi escolhido para ser o primeiro diretor-executivo em um mandato de 6 anos, em função de seu extenso currículo em finanças públicas.

Ontem, o ministro da economia, Paulo Guedes, ao ser perguntado sobre uma determinada previsão da IFI, atacou a reputação de Felipe Salto.

Vou destacar aqui três afirmações:

  1. “A IFI disse que nós iríamos furar o teto de gastos no primeiro ano”
  2. “[A IFI] disse que nós iríamos furar o teto no segundo ano”
  3. “a IFI disse que a dívida iria chegar a 100% do PIB”.

Segundo Guedes, as três previsões se comprovaram furadas. “Previsões muito fracas” e “um economista que tem errado dez em cada dez”, foram as palavras usadas.

Fui verificar se, de fato, a IFI, sob a liderança de Felipe Salto, havia feito essas previsões. Para tanto, pesquisei os Relatórios de Acompanhamento Fiscal, produzidos mensalmente pelo Instituto. Já aviso que são trabalhos densos, muito bem elaborados.

A primeira menção ao teto de gastos durante o governo Bolsonaro ocorre no relatório de maio de 2019. Podemos ler o resumo a seguir:

Podemos observar que não há projeção de rompimento do teto de gastos até 2022. Portanto, a IFI não “previu” que o teto seria furado “no primeiro ano” e nem “no segundo ano”. Pelo menos, não nesse primeiro relatório.

O trecho a seguir, do mesmo relatório, mostra um pouco como é a metodologia de trabalho de qualquer economista que faz previsões:

Observe como o economista desenha um cenário e vai adaptando-o na medida em que novas informações vão sendo conhecidas. Existe um mal-entendido sobre o trabalho do economista: ele não é pago para “acertar” o cenário, não tem uma “bola de cristal” para isso. O economista apenas aponta a direção para onde o barco está indo. Se, no meio do caminho, o barco muda de direção, ele refaz as suas premissas. Paulo Guedes sabe disso, mas, acuado, atira no mensageiro. Sigamos.

No relatório de setembro/19, a IFI novamente não prevê furo do teto:

No relatório de novembro, a IFI volta a prever o “furo” do teto de gastos para 2021 (não 2019 e nem 2020). Trata-se do “cenário-base”. No cenário otimista, o teto seria rompido somente em 2024 e, no pessimista, também em 2021. Como podemos observar no trecho abaixo do mesmo relatório, não havia risco de descumprimento do teto de gastos em 2020.

Portanto, podemos observar que as duas primeiras afirmações de Guedes não tem sustentação nos fatos. Vejamos a terceira.

Com o surgimento da crise provocada pela pandemia, não fazia mais sentido falar em teto de gastos em 2020, pois os gastos foram muito acima do teto em função do auxílio emergencial. E quanto à dívida? A primeira menção da IFI ao tamanho da dívida foi no relatório de abril/2020, ainda com muita incerteza:

Note que estamos longe dos 100% do Paulo Guedes neste momento. Mas, como disse, havia muita incerteza, e esse número seria mudado ao longo do tempo. No relatório de maio, esta previsão havia subido para 86,6% do PIB, em junho uma grande revisão para 96,1% do PIB.

Esta grande revisão se deu porque houve uma grande revisão para baixo do PIB naquele momento (maio), no olho do furacão da crise. Esta previsão somente seria mudada em novembro, com os dados de outubro, revisando o PIB para cima:

Note que essa revisão se deu porque o IFI incorporou na receita impostos que haviam sido diferidos entre abril e junho. Conservadoramente, o Instituto não havia considerado esses impostos como receitas de 2020.

A relação dívida/PIB seria novamente revista no relatório de janeiro deste ano, de 93,1% para 90,1% do PIB:

Esta revisão se deu por três fatores: uma revisão de metodologia do IBGE, que elevou o PIB nominal de 2018 e, portanto, o restante da série, um queda menor do PIB real e uma inflação maior do que a prevista inicialmente, o que aumenta o PIB nominal, diminuindo a relação dívida/PIB.

E chegamos ao fim das previsões, a relação dívida/PIB do Brasil fechou 2020 por volta de 90%. Uma previsão que variou de 84,9% a 96,1% durante um ano estupidamente conturbado como o de 2020. Em nenhum momento a previsão atingiu os “100%” do Guedes.

Paulo Guedes vem se notabilizando por prometer muito e entregar pouco, muito pouco. Penso que não tem autoridade nem moral para criticar o trabalho de uma instituição séria como a IFI.