Satélites do PT

O movimento Diretas Já tem sido citado com cada vez mais frequência como o paradigma daqueles que querem o impeachment de Bolsonaro. Existe até um movimento intitulado Direitos Já, que tenta emular o movimento de 1984, ao pregar a união de todas as “forças democráticas” em torno do objetivo de derrubar o presidente. Este movimento foi idealizado e é coordenado pelo sociólogo Fernando Guimarães, ex-coordenador da ala Esquerda Pra Valer do PSDB, e que foi expulso do partido justamente por ter se aproximado do PT para fundar o tal movimento. Isso já nos diz alguma coisa.

Voltemos ao paralelo com as Diretas Já. Na época, Lula, Brizola, Covas, Ulysses e várias outras lideranças de oposição ao regime militar subiram unidos no palanque para pedir eleições diretas. Era o primeiro grande movimento de rua desde a Marcha pela Família de 1964. Tudo era novo, uma página em branco, o PT era só um amontoado de intelectuais e sindicalistas, o PSDB nem existia, Ulysses pairava soberano sobre a incipiente democracia brasileira. Não havia história para nublar aquele céu limpo e radiante da união contra a ditadura militar.

Fast forward para 2021. O PT é a força hegemônica da esquerda, tendo todos os outros partidos desse lado do espectro político como seus satélites. Qualquer aliança com a esquerda passa necessariamente pelo PT. E o que é o PT? Não se trata mais daquele partido de 1984, prenhe de esperanças de um novo amanhã. O PT é o partido do Mensalão, do Petrolão e da maior recessão da história do Brasil. Competentes na corrupção e incompetentes na economia. Portanto, um palanque como o das Diretas Já só pode ser defendido por alguém que tenha ficado em uma câmara criogênica de 1984 a 2021 e tenha sido despertado agora.

Não custa lembrar o fim melancólico do Diretas Já, com a derrota, no plenário da Câmara, da emenda Dante de Oliveira. Sou capaz de arriscar que uma votação pelo impeachment de Bolsonaro, hoje, teria o mesmo destino. O problema não é Arthur Lira não avançar com os pedidos de impeachment. O problema é que não há votos para o sucesso da empreitada. Aquele povo na rua em 1984 não representava os votos no Congresso. Hoje, sequer há povo na rua, mas somente esses movimentos que são, no final do dia, satélites do PT.

Bola na marca do pênalti

Era o dia 16/03/2016, uma quarta-feira qualquer. Final de expediente, já arrumando as coisas para ir para casa, um colega de trabalho me chama a atenção para a TV. A Globo News havia interrompido a programação para dar a bomba: o juiz Sérgio Moro havia levantado o sigilo sobre as gravações do telefone do ex-presidente Lula. Lendo a transcrição ao vivo, o repórter Marcelo Cosme tropeçava nas palavras, porque o conteúdo era uma bomba: Dilma armava para que Lula assumisse um ministério a fim de escapar da Lava-Jato. Era o famoso “termo de posse para ser usado ‘só em caso de necessidade’”, e que seria levado pelo notório “Bessias”.

Saí do escritório e, no meio do caminho, decidi me dirigir para a Paulista. Eu sabia que haveria uma manifestação espontânea lá, depois dessa divulgação. No domingo anterior a Paulista havia visto a maior manifestação popular de todos os tempos no Brasil e o ambiente político estava fervendo.

Chegando lá, já havia uma multidão, cantando “Moro, Moro” e “Lula ladrão, teu lugar é na prisão”. Bons tempos. Mas trago essas reminiscências por outro motivo.

Aquele dia me veio à lembrança quando li que a FIESP voltou atrás no tal “manifesto pela harmonia entre os poderes”. Naquela noite memorável, a fachada em neon da FIESP estampava os dizeres “impeachment já!”. Aquilo me chamou muito a atenção. As ruas já ferviam há um ano, mas somente naquele momento a FIESP assumia uma posição. Como entidade empresarial que depende de Brasília, comandada por um ser político como Paulo Skaf, aquela mensagem na fachada significava que os dias de Dilma haviam se encerrado. A FIESP, assim como o centrão, só vai na bola quando é para bater o pênalti sem goleiro.

O adiamento do tal manifesto significa que ainda tem um goleiro para defender a meta, no caso, Arthur Lira. Mas também significa que a bola está na marca do pênalti. A FIESP não patrocina esse tipo de manifesto à toa.

Os requisitos para o impeachment

Há uma percepção equivocada sobre o papel do presidente da Câmara dos Deputados a respeito de seu poder como guardião da chave do processo de impeachment. É o que afirma, por exemplo, Rosângela Bittar, uma experimentada jornalista, em sua coluna de hoje. Para a colunista, todos os elementos para um processo de impeachment estão dados, mas Arthur Lira não quer matar sua “galinha dos ovos de ouro”. Portanto, como ele não quer, não acontece, apesar de todos os outros requisitos estarem dados.

Bem, até os jornalistas mais experimentados erram em suas avaliações, e este é um caso.

Claro, regimentalmente, cabe a Arthur Lira, e somente a ele, dar prosseguimento a um dos inúmeros pedidos de impeachment que chegaram à Câmara dos Deputados. Mas o presidente da Câmara (não este especificamente, qualquer um) não é um ditador, que faz o que lhe der na telha. Como político, ele sente o pulso do organismo como um todo e certamente não ficará na frente de uma onda que não tem como segurar.

Ocorre que, ao contrário do que diz a colunista, não estão dados todos os requisitos para o sucesso de um processo de impeachment neste momento. Para ilustrar, gosto sempre de mostrar o gráfico abaixo, com a popularidade líquida (avaliação ótimo/bom menos avaliação ruim/péssimo) dos presidentes ao longo do tempo. Trata-se de uma média das pesquisas de vários institutos.

Podemos observar que Bolsonaro está em seu pior momento de popularidade. Mas isto não significa, nem de longe, que está frágil o suficiente para sofrer impeachment. Observem como Collor e Dilma tinham popularidade líquida muito mais baixa, cerca de 35 pontos mais baixa do que a atual de Bolsonaro. Ou seja, a premissa da jornalista, de que há apoio popular para o impeachment, é discutível.

Mas não é só isso. Não basta que a popularidade esteja no nível das Fossas Marianas. É preciso perder o apoio do Congresso. Claro que, com a popularidade no fundo do poço, a perda do apoio no Congresso é quase que automática. Quase. Temer enfrentou popularidade até mais baixa do que a de Dilma, mas se safou de um processo de afastamento na Câmara. Claro, Temer era Temer, e Bolsonaro é Bolsonaro, de modo que, se a sua popularidade cair, dificilmente escapará de um processo. Mas só para dizer que é possível manter-se, mesmo sem popularidade, como demonstrou Temer.

Mas não é só. A economia conta, e muito. Nos dois casos de impeachmente, o PIB afundou, 4% no caso de Collor, 8% no caso de Dilma. Tivemos uma recessão de 4% no ano passado, mas a recuperação tem sido muito rápida. Além disso, ao contrário de Collor e Dilma, a recessão no governo Bolsonaro não foi causada por decisões econômicas bizarras, como o confisco da poupança ou intervenções estapafúrdias na atividade econômica. A causa foi externa e, se houve alguma iniciativa do governo, esta foi positiva, com a aprovação do auxílio emergencial. Então, esta questão da economia está distante do quadro que tivemos com Collor e Dilma, o que acaba se refletindo em sua popularidade ainda longe do fundo do poço.

Um terceiro ponto é o apoio político. Como diz a colunista, Bolsonaro ainda é uma “galinha dos ovos de ouro” conveniente. Com o atual nível de popularidade, não fica clara a vantagem de se afastar de alguém que topa jogar o jogo da divisão de poder. Bolsonaro, apesar de sua retórica de campanha e no cercadinho, tem sido um jogador racional quando se trata de montar uma base parlamentar, distribuindo nacos de poder aos seus aliados. O que tem sido revelado no Ministério da Saúde nada mais é do que reflexo deste jogo.

Então, para resumir, Arthur Lira é, de fato, o guardião das chaves do impeachment. Mas ele não é representante de si mesmo. Assim como Eduardo Cunha só colocou em andamento o processo de Dilma quando viu que havia condições políticas para avançar, da mesma forma Lira somente avançará se e quando sentir que é o momento. Antes disso, é só torcida organizada.

Onde está o recheio?

Em uma redação, quando se quer dar uma ideia de amplitude, pode-se usar a expressão “de… até…”. Assim, por exemplo: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias”. Se queremos ir além, dando uma ideia de diversidade, incluímos o verbo “passando por”. A sentença fica, então, assim: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias, passando por seres tão diversos quanto cobras, vacas e seres humanos”. Essa construção, quando usada, geralmente tem por objetivo estressar um ponto comum a todos os objetos, apesar da sua amplitude e diversidade. Aqui, por exemplo, a frase seria coroada com o ponto a ser desenvolvido: todos são seres vivos. O período completo ficaria então: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias, passando por cobras, vacas e seres humanos. Todos são, no entanto, seres vivos”.

Essa aulinha básica de redação veio-me à mente quando li a reportagem acima. “… um amplo espectro de partidos e figuras políticas, que vai das siglas de esquerda até ex-aliados de Bolsonaro”. Está aí a expressão “de… até…”, que o repórter usou para tentar mostrar a amplitude do movimento e, por suposto, a grande possibilidades de prosperar. O que falta, no entanto? A expressão “passando por”, para mostrar também a diversidade do grupo. Cadê o recheio do sanduíche?

Siglas e grupos de esquerda pedindo impeachment não é novidade. Fizeram isso com Collor, Itamar, FHC, Temer e, agora, Bolsonaro. O outro extremo é composto por “ex-aliados” de Bolsonaro, que estão lá mais por uma questão de vingança pessoal do que qualquer outra coisa. Onde está a sociedade civil?

O pedido de impeachment de Collor foi entregue ao Congresso por Barbosa Lima Sobrinho. O de Dilma, por Miguel Reale Jr. Dois representantes da sociedade civil acima de quaisquer suspeitas. Onde está o nome da sociedade civil disposto a associar o seu nome a um pedido de impeachment? Reale Jr tem sido bastante crítico a este governo. Isso é uma coisa. Outra coisa, bem diferente, é dar legitimidade a um pedido de impeachment. Por um motivo simples: oposição não é sinônimo de deposição.

Não estou aqui afirmando que um processo de impeachment não possa ser iniciado. Mas, para que haja alguma chance, o “de… até…” precisará ser acompanhado por um “passando por…”. Caso contrário, não passará de factoide político.

Cuidado com os seus desejos

Bolsonaro, ontem, acusou Barroso de fazer “politicalha” e desafiou-o a ordenar também a abertura de processo de impeachment contra membros do próprio STF.

Li argumentos nessa linha ao meu post de ontem. Fui investigar.

O impeachment de ministros do Supremo está previsto na Constituição (art. 52, inciso II – qualquer cidadão pode pedir o impeachment de um ministro do Supremo) e é regrado pela Lei 1079, de 1950. Os artigos 41 a 73 são os que regem o processo de impeachment dos ministros do Supremo.

O artigo 44 diz o seguinte: “Recebida a denúncia pela Mesa do Senado, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial, eleita para opinar sobre a mesma”.

Parece claro, não? Uma vez recebida a denúncia, a mesma será lida na sessão seguinte e despachada para uma comissão especial. Aparentemente, não há discricionariedade possível por parte do presidente do Senado ou da mesa diretora. Deveria ser um procedimento automático: recebe a denúncia, lê e instaura comissão para análise. É isso, por exemplo, que defende Roberto Jefferson, em trecho de sua denúncia contra Edson Fachin, que destaco abaixo.

Portanto, qualquer cidadão poderia entrar com recurso junto ao STF para exigir a instauração de um processo de impeachment no Senado contra membros do Supremo, com o mesmo argumento (prevaricação) que valeu para a instauração da CPI da pandemia.

Mas…

Mas nem sempre as coisas são como parecem.

A mesma Lei 1079 rege o impeachment do presidente da República. O seu artigo 19 reza o seguinte: “Recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma.

”Observe a quase exatamente mesma redação que vimos no artigo 44. Não caberia, aqui também, a discricionariedade do presidente da Câmara ou da mesa diretora. Recebeu a denúncia, leu no expediente seguinte, encaminhou para uma comissão especial. Procedimento automático.

Como é de saber comum que o encaminhamento de um pedido de impeachment contra o presidente depende da boa vontade do presidente da Câmara, cabe analisar melhor a redação dos artigos 19 e 44 da Lei 1079.

“Receber”, neste caso, creio que tenha o sentido de “acatar”. Não se trata, no contexto, de um verbo passivo, no sentido de receber uma correspondência, mas ativo, no sentido de reconhecer que aquilo é uma denúncia válida. Portanto, cabe discricionariedade. É o mesmo sentido que os noivos dão ao verbo receber quando dizem na cerimônia do casamento: “recebe esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade”. Os noivos recebem a aliança podendo recusá-la, se não estão dispostos, por algum motivo, a assumir o compromisso que ela representa.

Se assim não fosse, todos os 61 pedidos de impeachment contra o presidente que estão engavetados teriam que ser automaticamente colocados para caminhar dentro da Câmara.

Quando Bolsonaro desafia Barroso a fazer caminhar os pedidos de impeachment contra ministros do Supremo, do mesmo modo qualquer ministro do STF poderia obrigar o início dos procedimentos para os pedidos de impeachment contra o presidente.

Cuidado com os seus desejos.

Leitura rasa

Eliane Catanhêde faz, ao meu ver, uma leitura rasa da eleição na Câmara. Segundo sua análise, e que traduz um sentimento comum, Arthur Lira seria eleito para “trancar” qualquer pedido de impeachment.

Rodrigo Maia está sentado sobre 61 pedidos de impeachment há vários meses. Ele não é um aliado de Bolsonaro, eleito com o propósito de “trancar” pedidos de impeachment. O que o impediu de dar curso a pelo menos um deles? As condições políticas.

A eleição de Lira, se ocorrer, será um sintoma, não causa da não tramitação de um processo de impeachment. Não é que a maioria dos deputados esteja doida para iniciar um processo de impeachment, mas o presidente da Casa a ser eleito vai segurar o processo. Lira será eleito PORQUE a maioria da Casa não quer o impeachment. Pelo menos, não por ora.

A eleição de Lira é garantia de blindagem se e quando as condições políticas estiverem dadas para um processo de impeachment? Duvido muito. O Centrão fazia parte da base de sustentação do governo Dilma, e foram os primeiros a pularem do barco quando sentiram que o vento havia virado. Não será diferente.

Quando muito, a eleição de Lira significará o fim das desculpas esfarrapadas do Planalto para a inação na agenda econômica. Vamos ver.

A qualidade do pedido de impeachment

Neste quarto post sobre o impeachment de Bolsonaro (já virou série!) vamos nos debruçar sobre os pedidos em si. O editorial do Estadão mais uma vez serviu-me de inspiração, pois chama a atenção para o “excepcional conjunto de pedidos de impeachment” que foi apresentado até o momento. Como sempre, fui pesquisar.

De fato, o número de pedidos é excepcional. Em números absolutos só perde para Dilma Rousseff, conforme podemos ver na lista abaixo. Mas, relativamente ao período de mandato, é recorde absoluto (entre parênteses, número de pedidos a cada 100 dias de mandato):

  • Collor: 29 (2,84)
  • Itamar: 4 (0,55)
  • FHC: 27 (0,92)
  • Lula: 37 (1,27)
  • Dilma: 68 (3,29)
  • Temer: 33 (3,87)
  • Bolsonaro: 61 (8,11)

Curioso notar que grande parte dos pedidos de impeachment até o momento se deu entre os meses de março e junho de 2020, justamente o período de mais baixa popularidade do presidente em seu mandato até o momento. Foram 42 pedidos em 109 dias, o que resulta na incrível marca de 38,53 pedidos a cada 100 dias. Se a popularidade cair daqui em diante, talvez possamos observar uma nova leva de pedidos de impeachment.

Vamos ao detalhe. São 61 pedidos, dos quais 2 são apócrifos (assinaturas não verificadas), então vou considerar somente 59.Esses 59 foram feitos por 41 pessoas diferentes. Ou seja, há vários pedidos feitos pelas mesmas pessoas.

Há coisas realmente curiosas: por exemplo, três dos pedidos foram feitos por detentos, um deles condenado por estupro. Há um pedido de um rapaz de 22 anos que se sentiu prejudicado porque o auxílio emergencial caiu de 600 para 300. Tem um pedido de um pizzaiolo e de um professor de línguas. Enfim, tem gente de todo tipo. Mesmo entre esses, há pedidos de sindicalistas e advogados ligados ao PT de alguma forma. São 5 pedidos desse tipo.

Entre os políticos que fizeram pedidos, temos dois tipos:

– os do PT e satélites: são 14 pedidos do PT, PSOL, PCdoB, PSB e Rede.

– os de ex-bolsonaristas: 3 de Alexandre Frota, 1 de Joice Hasselman e 1 do MBL.

Por enquanto, apesar do número gigantesco de pedidos, trata-se de um movimento ainda restrito a cidadãos obscuros, à esquerda e aos que, de alguma maneira, foram “traídos” por Bolsonaro. Da experiência dos dois impeachments que vivemos no período da Nova República, não é a quantidade de pedidos que determina o sucesso, mas a qualidade. Em ambos os casos, o pedido que teve sucesso foi patrocinado por um cidadão sem vínculos partidários e de muita respeitabilidade por parte de todos os atores políticos. No caso de Collor, o pedido foi apresentado pelo então presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho. No caso de Dilma, pelo advogado Miguel Reale Jr. Os pedidos em si não foram muito diferentes de outros. A diferença está em quem faz o pedido.

Miguel Reale Jr. já afirmou, em artigo, que há pencas de motivos para o impeachment de Bolsonaro. Mas ainda não se dispôs a apresentar um pedido estruturado. Falta alguém de sua reputação decidir a fazê-lo. Talvez porque as condições políticas ainda não estejam dadas.

As condições para um impeachment

Este é o meu terceiro post sobre impeachment nos últimos dias, o que, quando não menos, mostra que o assunto está em pauta.

Desta vez trata-se de um editorial do Estadão, que procura descrever qual seria o “crime de responsabilidade” do presidente. Procurei o tal crime no editorial, mas o máximo que encontrei foi a citação da lei que teria sido transgredida, além de uma exortação ao Congresso para que avalie a conduta do presidente. A nomeação mesma do crime, não há.

Apesar de não haver menção explícita, sabemos do que se trata: a gestão da pandemia, que produziu, até o momento, mais de 200 mil óbitos no território brasileiro. As atitudes e a desídia do governo federal seriam, em última análise, as responsáveis por essa catástrofe humanitária.

O que dizer?

Nos meus posts anteriores, nem entro no mérito do crime de responsabilidade que embasa o pedido de impeachment. Sempre achei esse ponto o menos relevante no processo. O que importa são as condições políticas gerais. Trata-se de um julgamento político, não jurídico. No entanto, é necessário, de qualquer forma, haver um crime de responsabilidade bem definido.

No impeachment do Collor, o crime foi a corrupção em que o presidente se envolveu pessoalmente, do qual os jardins da Casa da Dinda foram o símbolo midiático máximo. Já no impeachment da Dilma, as famosas “pedaladas fiscais” foram o crime. Tanto em um caso quanto em outro, tratavam-se de fatos muito objetivos, de fácil observação, que envolviam quase zero julgamento. E, mesmo assim, tanto Collor quanto Dilma caíram jurando inocência. O PT, inclusive, criou o mote “impeachment sem crime é golpe!” Aliás, Collor foi posteriormente absolvido no STF por falta de provas.

O que temos no caso de Bolsonaro? 200 mil mortes. Como ligá-las objetivamente ao presidente? Sim, ele menosprezou a epidemia, deu mal exemplo, falou contra as vacinas. Seu exemplo de líder certamente ajudou a piorar o quadro. Mas esta é uma opinião. Não se trata de um depósito fruto de corrupção encontrado na conta do presidente, ou do saldo negativo na conta da Caixa para pagamento do bolsa família, fatos esses bem objetivos.

O Brasil, hoje, tem aproximadamente 1.000 óbitos/milhão de habitantes. Países que supostamente têm uma gestão melhor da pandemia, como Bélgica (1.750 óbitos/milhão), Itália (1.350 óbitos/milhão), Espanha (1.150 óbitos/milhão) e Reino Unido (1.300 óbitos/milhão) têm estatísticas piores. E mesmo nossos vizinhos latino-americanos, com mesma pirâmide populacional e não comandados por “genocidas”, têm números semelhantes aos do Brasil: Argentina, 1.000 óbitos/milhão, Chile, 900 óbitos/milhão, México, 1.100 óbitos/milhão. Fica difícil, assim, correlacionar comportamento do dirigente máximo do país com o resultado final alcançado.

Alguns poderão dizer: “mas está morrendo gente sem oxigênio em Manaus!”. Sim, está. É culpa do presidente ou do governador? Ou será do prefeito? Se o presidente é culpado pelas mortes em Manaus será mérito dele que pessoas não estejam morrendo sem oxigênio nas outras unidades da federação? Por que as mortes seriam culpa dele e as pessoas salvas seriam mérito dos governadores? Por que não o inverso? No final do dia, quem decide isso são os deputados, no processo de impeachment.

Mas, como já estamos carecas de saber, impeachment é um processo político. Quando o Estadão pede que o Congresso se debruce sobre o caso, é na esperança de que os nobres deputados se convençam dessa correlação e condenem o presidente. Pode acontecer? Pode. Vai acontecer? Depende das condições políticas.

Os processos de impeachment até o momento tiveram a concorrência de quatro fatores, a saber:

  1. Queda do PIB de 4% ou mais
  2. Grandes manifestações populares de rua
  3. Popularidade líquida (vide meu post anterior a respeito) de -60
  4. Perda de apoio no Congresso

Note que não listei o “crime de responsabilidade” entre esses 4 fatores. Como disse, é o de menos. Se esses 4 fatores estiverem presentes, a responsabilidade pelas 200 mil mortes será dada. Já o inverso não acontece. É ocioso ficar brandindo crimes de responsabilidade como se fossem a parte mais importante do processo.

Como estão hoje esses 4 fatores?

O PIB caiu mais de 4% em 2020, fato. Mas suas consequências foram mais do que mitigadas pelo auxílio emergencial, o que pode ter adiado o problema para 2021, se não houver uma retomada forte da atividade econômica. Na minha opinião, este é o maior risco para Bolsonaro no momento.

Os outros 3 fatores estão relacionados. Os fatores 2 e 3 são o termômetro que os congressistas usam para definir se continuarão a apoiar o governo. Como não tem como ocorrer manifestações de rua em plena pandemia, o fator 3 ganha importância. Hoje, a popularidade líquida do presidente está em -8, muito distante ainda dos -60. Os congressistas sabem disso.

As eleições para as mesas da Câmara e do Senado servirão como um excelente termômetro do ânimo do Congresso para fazerem o que o editorial do Estadão pede. Vamos ver as votações de Artur Lira e Rodrigo Pacheco, os candidatos de Bolsonaro nas duas eleições. Mesmo que percam, se tiverem boas votações, demonstrarão apoio do Congresso ao governo. O fator 4 estará afastado, por ora.

Popularidade e impeachment

Ainda sobre o tema impeachment.

Mantenho este gráfico já faz alguns anos. Ele mede o que chamo de “popularidade líquida”, ou seja, a soma de “ótimo/bom” menos a soma “ruim/péssimo”. Prefiro esta medida do que simplesmente olhar a aprovação, pois é diferente quando você tem um alto percentual de “regular” (indiferentes) ou um alto percentual de avaliações negativas. O gráfico é a média de 4 institutos: Ibope, Datafolha, a agência contratada pela CNT (hoje a MDA) e, mais recentemente, a Ipespe, contratada pela XP.

Pois bem, a regra geral é a seguinte: para o presidente ser impichado, é preciso que a popularidade líquida atinja -60 pontos. Mas atenção: é condição necessária mas não suficiente. Sarney e Temer atingiram essa pontuação, mas não foram afastados, pois tinham muita força no Congresso. Gastaram seu capital político para se manter na posição, estagnando o processo legislativo.

Vejamos o caso atual: acabou de sair fresquinha a primeira pesquisa pós lambança das vacinas, do instituto Ipespe. Mostra uma queda substancial da popularidade líquida, de +3 em dezembro para -8 agora em janeiro. No entanto, olhando em perspectiva, não está nem no pior momento do governo, que foi -15 entre maio e julho do ano passado. E, não preciso dizer, a uma distância enorme dos -60.

Claro, podemos estar fazendo a análise do cara que está caindo do 10o andar e, quando passa pelo 5o, alguém pergunta pela janela se está tudo bem, ao que o cara responde “sim, ventando um pouco, mas por enquanto tudo bem”. Esse pode ser o início de um processo que levará ao impeachment no final. Mas, por enquanto, estamos longe, muito longe ainda. E, ao que parece, o presidente está construindo a sua rede de proteção no Congresso.