O impeachment da militância

Ao ver as fotos das “manifestações” pelo impeachment de Bolsonaro, lembrei-me de três ocasiões que me marcaram durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

A primeira foi no dia 08/03/2015. No dia da mulher, Dilma estava fazendo seu tradicional discurso em cadeia de rádio e TV. Eu estava em uma festa familiar na Pompeia, bairro paulistano de classe média. De repente, começamos a ouvir uma barulheira do lado de fora: era um panelaço. O primeiro de uma série. Uma novidade na política brasileira. Quando ouvimos aquilo, nos entreolhamos e dissemos: é questão de tempo pra essa senhora cair.

A segunda foi na manifestação de 15/03/2015, a primeira de uma série. Minha sogra, à época com 76 anos de idade, fez questão de ir. Pensei: se uma senhora dessa idade, sem nenhuma vinculação ou interesse por política, se dispõe a ir a uma manifestação pelo impeachment, então é que a vaca foi para o brejo.

Por fim, a terceira foi no dia 16/03/2016, quando o juiz Sérgio Moro liberou o áudio do Bessias. Nesse dia, indo de volta para casa de trem, resolvi, no meio do caminho, dirigir-me à Paulista. Tinha certeza de que haveria manifestação lá. Era uma quarta à noite, e a Paulista foi interditada pela multidão. No prédio da FIESP, os dizeres “impeachment já“. Pensei: se uma manifestação dessas, formada por gente comum, se reúne sem convocação prévia e a FIESP pulou no barco do impeachment, agora é só uma questão de tempo.

As fotos abaixo mostram, segundo o jornal, “manifestantes” ou “pessoas”. Por enquanto, vejo só militantes.

Não que Bolsonaro esteja fazendo um excelente governo, pelo contrário. Mas daí a achar que o impeachment está às portas, vai uma distância abissal. Não estão dadas as mínimas condições para isso, por enquanto. Se e quando um milhão de pessoas se reunirem na Paulista para pedir a cabeça do presidente, voltamos a conversar.

PS.: Sim, eu sei que a pandemia impede aglomerações desse tipo. Mas sou capaz de arriscar que, mesmo sem a pandemia, teríamos os mesmos “manifestantes” com balões da CUT na Paulista. Minha sogra estaria confortavelmente em casa.

O que realmente importa

Esqueçam as chamadas dos jornais sobre a última pesquisa Datafolha. O foco das manchetes foi sobre a possibilidade ou não de abertura de processo de impeachment, e o apoio ao ex-ministro Sergio Moro. Isso tudo importa quase nada.

O que importa, de fato, é a aprovação do governo. E essa continua no mesmo lugar que estava em dezembro/2019, última pesquisa Datafolha sobre a aprovação geral do governo Bolsonaro. Quatro meses atrás, a diferença entre ótimo/bom e ruim/péssimo estava em -6 pontos. Na última pesquisa, feita após o affair Moro e o desgaste com o Covid-19, a diferença estava em -5 pontos. Não mudou absolutamente nada.

Mas todos sabemos que a Datafolha é comunista. Vamos aguardar alguma pesquisa que seja idônea.

O primeiro a saltar do barco

Prova cabal de que Moro representava o combate à corrupção nesse governo é o aviso, por parte do Centrão e do PT, de que não contem com eles para dar o gostinho do impeachment ao ex-juiz. É o Petrolão indo à forra.

Marcos Pereira, líder do Republicanos e expoente do Centrão, já avisou: vamos respeitar as urnas.

Recortei reportagem de 2016, mostrando que o PRB (o então nome do Republicanos) foi o primeiro partido a entregar ministérios, dando apoio integral ao impeachment. Naquela época, “respeito às urnas” não constava no vocabulário.

Mas acho que a principal mensagem aqui é: dar cargos ao Centrão funciona até deixar de funcionar. Os partidos da “base” de Dilma sugaram até a última gota de sangue do governo, e depois abandonaram o barco sem mais. Vamos ver o que Bolsonaro vai fazer. Novamente, o diário oficial será o nosso guia.

As condições para o impeachment

Complementando o meu post anterior.

Tivemos até hoje dois presidentes impichados. Nos dois casos, quatro elementos se fizeram presentes:

1) Algo que pudesse ser chamado de crime.

2) Uma recessão profunda.

3) Popularidade muito baixa.

4) Falta de apoio no Congresso.

Trata-se apenas de uma divisão para facilitar a análise, esses 4 fatores se entrelaçam e se causam mutuamente, um pode levar ao outro.

A respeito do primeiro item, lembre-se que não se trata de um julgamento jurídico, mas político. O “crime” pode ser qualquer coisa que seja razoavelmente entendida como crime, não precisa ter a precisão e robustez de um julgamento realizado em um tribunal. Como certa vez ouvi um político descrever, “se você está ao lado de um caixão fechado que fede a defunto, não precisa abrir para provar que o defunto está lá dentro”. Dilma e os petistas gastaram o gogó dizendo que impeachment sem crime é golpe. Quem decide se é crime ou não são os deputados.

No caso de Bolsonaro, se os outros três fatores se fizerem presentes, forjar uma assinatura eletrônica em documento oficial pode ser considerado crime. Esse, eu diria, é o fator menos importante, o mais fácil de arrumar.

Com relação à recessão, ela já está contratada. Bolsonaro tem o álibi do coronavírus, afinal a recessão não foi causada por políticas econômicas desastradas, como no caso de Collor e Dilma. Mas, se a recessão for muito prolongada, e se políticas populistas forem adotadas piorando a situação, essa percepção pode se reverter. Mas isso é mais para frente, não agora.

É para a popularidade que quero chamar a atenção. O gráfico abaixo é um levantamento que mantenho há anos, com base nas pesquisas de opinião do Ibope, Datafolha, CNI (que muda de instituto de pesquisas de vez em quando) e, mais recentemente, XP/Ipespe. Cada ponto é uma média desses institutos.

O gráfico mostra a “popularidade líquida”, ou seja, a diferença entre “ótimo/bom” e “ruim/péssimo” para a pergunta sobre a opinião do eleitor a respeito do governo. Podemos observar que os dois impeachments ocorreram quando a popularidade líquida atingiu a faixa dos -50/-60 pontos. Quatro presidentes atingiram este patamar, mas apenas dois foram impichados. Os dois que não foram contavam com a ausência da quarta condição para o impeachment: falta de apoio no Congresso.

Sarney e Temer se criaram dentro do Congresso, dominando todos os cordões da articulação política, de modo que conseguiram se manter no poder mesmo com a popularidade no subsolo. As condições econômicas sob Temer também ajudaram, pois o país estava se recuperando do desastre da era Dilma.

No caso de Bolsonaro, obviamente lhe falta este domínio do Congresso. A tentativa canhestra de cooptar agora deputados do Centrão é só uma demonstração disso. De modo que, o que lhe resta neste momento, é a popularidade.

Hoje, a popularidade líquida de Bolsonaro está em -14, um pouco desgastada com essa crise do corona. Quanto perderá com a saída do Moro? Precisamos aguardar as próximas pesquisas, mas não acho que irá ultrapassar, em um primeiro momento, algo como -25 ou -30. Trata-se de uma popularidade baixa, mas longe de permitir um movimento de impeachment. Pode ser que a recessão faça o resto do serviço, mas, como disse no post anterior, não vejo condições objetivas, hoje, para o sucesso de um processo de impeachment.

As várias tribos

Bolsonaro foi eleito com cerca de 55% dos votos válidos no 2o turno.

Havia várias tribos nesses 55%.A maior, eu diria a totalidade, era a tribo anti-PT. Para evitar a volta do PT, valia o pacto com o capeta. Essa grande tribo garantiu a vitória de Bolsonaro em 2018.No entanto, dentro desse tribo, como bonecas de matrioskas, se alojavam outras quatro tribos, não necessariamente excludentes entre si.

A primeira é a tribo dos liberais. Bolsonaro, ao apontar Paulo Guedes, empresário do setor financeiro e treinado em Chicago, como seu Posto Ipiranga, atraiu o PIB o nacional.

A segunda tribo é a dos lavajatistas. Cansados do lupanar que se tornou Brasília, votaram naquele que parecia ser diferente de “tudo isso que está aí”. É a Nova Política. Símbolo máximo dessa tribo, Moro foi o troféu mais reluzente que Bolsonaro conseguiu para o seu ministério.

Os evangélicos/religiosos formam a terceira tribo, preocupada com temas ligados aos costumes, como a agenda gay e a luta contra o aborto. Costumam ver Bolsonaro como um “enviado de Deus”. A ministra Damares é a representante dessa agenda no ministério.

Por fim, a quarta tribo é a dos ideológicos. Liderados por Olavo de Carvalho, sua preocupação é a luta contra o marxismo cultural, o globalismo e quetais. O ministro que melhor representa essa ala é Abraham Weintraub, não por coincidência citado elogiosamente no pronunciamento de ontem.

Como eu disse no início, uma pessoa pode pertencer a várias tribos ao mesmo tempo, com maior ou menor ligação. O que vai a seguir é uma simplificação da realidade.

Os primeiros eleitores que foram perdidos foram os anti-petistas que não tinham nenhuma ligação especial com qualquer das tribos menores. Seu compromisso com Bolsonaro era zero, seu objetivo (evitar o PT no poder) já havia sido atingido.

A segunda tribo foi perdida ontem: Moro levou consigo os lavajatistas-raíz, aqueles para quem essa agenda de moralização da política é mais importante do que qualquer outra. A aproximação do governo com o Centrão certamente não ajuda nesse contexto.

A terceira tribo a caminho de ser perdida é a dos liberais. O modo como Paulo Guedes se apresentou no pronunciamento de ontem é uma representação gráfica da atitude dos liberais hoje: f@da-se. O plano Pró-Brasil é um sinal de que Bolsonaro já se cansou da ladainha liberal, está a fim de pegar um atalho.

As outras duas tribos (religiosos e ideológicos) seguem firmes e fortes. Não tenho ideia do seu número, mas acho que não são pequenas. De modo que a popularidade do presidente vai cair, mas não vai despencar. E, para que um impeachment aconteça, é necessário, entre outros fatores, que a popularidade venha a praticamente zero. A recessão pode levar a isso, mas pode demorar. Por ora, não vejo condições objetivas para um processo de impeachment.

Padrões

A história nunca se repete. O ser humano gosta de ver padrões, e daí nascem coisas como a astrologia e a numerologia. A tentação é igualmente grande de ver padrões históricos onde há apenas o desenrolar linear da história.

Tendo posto o disclaimer, a analogia entre Bolsonaro 2018 e Collor 1989 é tão irresistível que… não consegui resistir!

Assim como Bolsonaro, Collor voou abaixo dos radares por anos. Foi prefeito de Maceió, deputado federal e governador de Alagoas antes de ser alçado ao posto máximo da República.

Collor era um ilustre desconhecido até que, no próprio ano da eleição, engatou um discurso que pegou: o de “caçador de marajás”, aquele que iria acabar com a corrupção. E isso em um país que vivia uma hiperinflação de fazer inveja à Venezuela. A pauta não era econômica, mas moral. Alguma semelhança?

Collor desbancou medalhões da política tradicional, e decidiu o 2o turno com o eterno candidato do PT. Era claro para os analistas que Collor iria “desmanchar” durante a campanha: sem estrutura, com um partido pequeno, só tinha seu discurso. E Collor permaneceu teimosamente na frente de todos os outros candidatos ao longo de toda campanha.

Collor se elegeu e foi impichado. Sua deposição ocorreu porque um presidente se elege com um discurso moral, mas governa com a economia. Collor não domou a hiperinflação e a economia entrou em recessão. Quando mais precisava, seu apoio no Congresso lhe faltou, pois nunca o teve de verdade. A Casa da Dinda (os mais novos procurem pelo termo) foi apenas o motivo jurídico formal, assim como foram as pedaladas para Dilma. A queda se deu por falta de apoio político em um momento de extrema fragilidade da economia. Sarney e Temer também tiveram escândalos de corrupção em seus governos e atravessaram momentos terríveis na economia, e nem por isso foram derrubados. O apoio do Congresso fez a diferença.

Fast forward para 2018.

Bolsonaro apareceu do nada com um discurso moral, tem o apoio apenas de um pequeno partido e, se ganhar as eleições, terá desbancado medalhões com muito mais densidade política. Enfrentará uma crise econômica braba, estrutural, de solução não óbvia. Se não conseguir o apoio do Congresso (e, não nos enganemos, o Congresso é esse Centrão que está aí), será uma questão de tempo para que se encontre a “Casa da Dinda” ou as “pedaladas” que servirão de motivo formal para o seu impeachment.

Mas, claro, a história não se repete. Eu é que gosto de ver padrões onde eles não existem.