O verdadeiro problema da justiça brasileira

O ex-governador Sérgio Cabral, o último político ainda preso pela operação Lava-Jato, foi solto ontem. Os críticos da operação, como o editorial do Estadão, afirmam que esta é mais uma evidência de sua precariedade.

De fato, uma prisão preventiva de 6 anos pode parecer tudo, menos legal. Mas a questão não é esta. A pergunta que não quer calar é como um réu confesso como Sérgio Cabral ainda não teve a sua prisão definitiva decretada depois de 6 anos?

A Lava-Jato, a partir de determinado ponto da história, passou a ser o grande problema do sistema judiciário brasileiro. Com suas “práticas ilegais” (prisões preventivas intermináveis, jurisdição indevidamente ampliada, delações premiadas forçadas, combinação entre juiz e promotores), a operação colocou a perder o seu grande esforço de combate à corrupção. O problema desse tipo de avaliação é que as tais “práticas ilegais” foram todas avaliadas e julgadas legais por desembargadores de 2a instância e juízes do STJ. Se ilegalidade houve, Moro e os procuradores não estavam sozinhos nessa.

Os que bradam pela “lei” como o único caminho possível, convenientemente se esquecem que a lei brasileira é garantidora de impunidade. Uma prisão preventiva de 6 anos não é prova de falha da Lava-Jato, mas da incrível incapacidade do sistema judicial brasileiro de colocar corruptos de alto coturno na cadeia. A grande surpresa dos brasileiros foi saber que Sérgio Cabral estava preso preventivamente. Em qualquer país decente, Sérgio Cabral já estaria condenado definitivamente há muito tempo.

A antológica cena do seriado da Netflix sobre a Lava-Jato, em que há júbilo na prisão porque os seus processos foram para o Supremo, conta tudo sobre o sistema judicial brasileiro para quem tem bons advogados.

Por que estão indo embora?

O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira escreve artigo tocante sobre o êxodo de brasileiros, principalmente jovens.

Ele candidamente se pergunta por quê. Afinal, não estamos enfrentando nenhuma calamidade como as que justificaram os grandes fluxos migratórios. Não tendo encontrado resposta, Mariz, então, aponta o dedo para o “desprezo, arrogância, autossuficiência, individualismo, preconceito e discriminação” desses desertores, fruto de uma herança “imperial, patrimonialista, escravocrata”.

A solução? “Solidariedade, compreensão, desprendimento, amor”.

Difícil saber por onde começar. Talvez pelo curriculum do autor. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é decano de uma classe de advogados chamados de “garantistas”. Sua arte está em explorar os inúmeros meandros do Código Penal brasileiro para livrar a cara de seus clientes endinheirados, que permanecem no Brasil por patriotismo, e não porque aqui a lei não vale para todos. A isso chamam de Estado Democrático de Direito.

A disfuncionalidade da nossa justiça certamente é um fator que nos leva ao atual estado de coisas desanimador, a tal ponto que expulsa nossos melhores cérebros. Preferem migrar para países sérios, onde partidos como o PT, pilhado no saque do Estado não uma, mas duas vezes, já estaria proscrito faz tempo. Aqui em pindorama, tratamos o seu chefão como um grande estadista.

Instituições fortes (e a justiça para todos é uma das principais) é condição sine qua non para o desenvolvimento de um país. O que os jovens podem esperar de um país onde ter sido advogado do PT ou de seu chefão é condição suficiente para a sua indicação à mais alta corte? Será que o patrimonialismo vituperado pelo advogado é pecado de quem está abandonando o barco? Ou estão indo embora justamente porque não fazem ou não querem fazer parte das panelinhas do poder?

Não, meu caro Mariz. Os jovens estão indo embora não porque lhes falte solidariedade ou gratidão. Estão indo embora porque não veem futuro em um país que funciona na base das chicanas, tão bem exploradas pelos amigos do rei.

O “lavajatismo” e o ordenamento jurídico do país

Mais uma operação desfeita pelo STF (no caso, decisão monocrática de Gilmar Mendes) em razão de “graves irregularidades na coleta de provas”.

Não vou entrar no mérito da decisão, pois não conheço detalhes do processo (e, mesmo que conhecesse, tenho contra mim o fato de ser leigo no assunto). Gostaria de chamar a atenção para o termo usado pelo advogado de um dos acusados: trata-se de ”um dos capítulos mais nefastos do lavajatismo”.

O termo “lavajatismo” denomina toda a operação contra autoridades públicas ou pessoas de influência na sociedade que, supostamente, extrapola a própria competência para produzir provas. Seria uma espécie de “justiceiro universal”, que atropela o ordenamento jurídico do país para fazer a sua justiça. Note que, em nenhum momento, existe a contestação das provas em si (contas no exterior, movimentações muito acima do razoável etc), mas sobre a “competência do juízo”.

O problema está justamente no “ordenamento jurídico” do país. Da forma como esse ordenamento está montado, é virtualmente impossível que alguém de posses ou em posição de poder seja condenado por corrupção. A operação Lava-Jato desafiou esse ordenamento, e hoje o termo “lavajatismo” é usado justamente para denominar esse desafio.

Quando uma operação consegue furar o bloqueio da blindagem montada para proteger criminosos de colarinho branco, sempre existe o STF para colocar as coisas em seus devidos lugares e proteger o “ordenamento jurídico” do país.

Em sua obra “Why Nations Fail”, o economista Daron Acemoglu atribui a pobreza das nações a instituições políticas extrativistas, que protegem as elites contra os interesses da maioria da população. Um “ordenamento jurídico” que torna virtualmente impossível a punição de crimes de corrupção por parte daqueles que sabem como explorar os labirintos desse mesmo “ordenamento jurídico” é um exemplo de instituição extrativista. Enquanto alguns forem mais iguais perante a lei do que outros, permaneceremos em nosso eterno ciclo de pobreza.

O STF e os cremes

Fico satisfeito quando vejo a nossa Suprema Corte cumprindo a sua função institucional. Vale cada real dos meus suados impostos, inclusive para comprar lagostas.

Fica apenas a dúvida de qual seria o montante a partir do qual o roubo seria considerado crime. Já sabemos que qualquer montante abaixo se R$45,80 tá liberado. Talvez em uma próxima sessão do egrégio colégio, os augustos ministros se inclinem sobre esta importante questão.

Mas R$45,80 já dá para fazer a festa em supermercados e lojas de conveniência. Com o aval do STF!

Não é o fim do mundo, é só um pouco mais do mesmo

Era uma questão de tempo, iriam inventar algum pretexto para anular as sentenças da Lava-Jato. Uma “filigrana jurídica”, como disse Fux.

Se não fosse o caso das alegações finais do delatado, seria o caso do réu que não teve permissão para ir ao banheiro ou do promotor que tamborila com os dedos na mesa, atrapalhando a concentração da defesa. Qualquer coisa serviria como filigrana. Espanta-me que tenha demorado tanto tempo. A força da opinião pública segurou a onda por um certo tempo, mas, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer. Ninguém desafia o DNA de um país ad eternum.

Lembro de um depoimento do Joesley Batista, em que ele descreve uma negociata qualquer. Não lembro dos detalhes, mas chamou-me a atenção uma parte em que ele afirma que havia tomado o lugar, no negócio, de uma empresa americana que não havia topado o “esquema”.

Ligo este depoimento a uma matéria de hoje, onde o ministro da infraestrutura mostra entusiasmo com o potencial de investimento dos estrangeiros no Brasil. Sim, há muito potencial, desde que as regras sejam claras, os contratos sejam respeitados e não haja corrupção. Caso contrário, o tal potencial será aproveitado pelos escroques de sempre.

A Lava-Jato foi uma janela aberta para o mundo desenvolvido, onde a corrupção é punida com rigor. Essa janela se fechou. O ministro da infraestrutura pode esperar sentado os investidores estrangeiros. A exemplo dos turistas que vêm para o Brasil fazer turismo sexual, virão os investidores, em sua maioria, que estão “acostumados com a sujeira”.

– Ah, mas o governo do Bolsonaro é limpinho.

Pode até ser. Mas não se trata de uma pessoa, mas de instituições. O governo Bolsonaro passa, as instituições ficam. Além disso, não é que Bolsonaro esteja se mostrando um grande entusiasta do trabalho dos procuradores.

Todos enchem a boca quando pronunciam a palavra “Constituição”. Todos se auto-declaram “guardiões da Constituição”. Infelizmente, no Brasil, a Constituição não passa de um papel pintado, assim como nossa moeda. Tivemos tantas Constituições quanto moedas, o que apenas demonstra a falta de respeito do País por si mesmo.

Não é o fim do mundo. É só um pouco mais do mesmo.

O sistema judicial brasileiro

Imagine que um juiz valide um gol. Então, os árbitros de vídeo são acionados para julgar se foi mesmo gol. Tendo sido o gol validado, outros árbitros de vídeo são chamados para validar a decisão dos primeiros árbitros de vídeo. Tendo sido o gol validado novamente, outros árbitros de vídeo são chamados para validar a decisão dos dois conjuntos de árbitros de vídeo anteriores. A cada decisão tomada, cabem recursos dos times em campo para cada conjunto de árbitros de vídeo. Enquanto isso, os times e os torcedores aguardam a decisão em campo, jogando baralho.

Este é o sistema judicial brasileiro.

O paraíso do crime

Cena 1: Bernard Madoff, ex-presidente da NASDAQ, era o gestor de um dos mais badalados fundos de investimento nos EUA, que produzia retornos bastante interessantes sem volatilidade alguma. Ou seja, uma espécie de mágica. Descobriu-se que era tudo falso, desde a contabilidade até os relatórios, e não se tratava de nada mais do que uma gigantesca pirâmide, no valor de 50 bilhões de dólares. O esquema foi descoberto, e no dia 11 de dezembro de 2008 Madoff foi preso em Nova York, tendo confessado o seu crime em 11 de março de 2009. Seu julgamento ocorreu em 28 de junho de 2009, e o fraudador foi condenado a 150 anos de prisão. Sem direito a recurso.

Cena 2: Pimenta Neves, à época jornalista do O Estado de São Paulo, assassina a também jornalista Sandra Gomide no dia 20 de agosto de 2000. Em 24 de agosto do mesmo ano, o jornalista confessa o crime. Depois de várias condenações e recursos, o STF condena Pimenta Neves no dia 23 de maio de 2011 a 15 anos de prisão.

A tabela abaixo resume tudo.

Recordei-me destes dois casos ontem, quando se discutia o indulto do presidente Temer. A justiça no Brasil é lenta e está cheia de fissuras bem aproveitadas por advogados regiamente pagos. Ano que vem a prisão em 2a instância será novamente discutida e mais uma fissura será aberta. E quando tudo o mais der errado, um indulto sempre pode resolver a questão.

O crescimento econômico não é apenas uma questão de políticas econômicas corretas. Os países que “dão certo” têm instituições que funcionam, sendo que a justiça para todos não é a menor delas. Se o crime compensa, por que respeitar as regras?

O Brasil é o paraíso dos criminosos que podem pagar bons advogados. A Lava-Jato foi apenas um breve interregno, em que sonhamos tornar o Brasil um país onde o crime não compensa. Moro é o ministro da Justiça, mas tem contra si todo um aparato formado por uma casta intocável. A luta é titânica para libertar o Brasil das corporações que o sequestraram. Não estou otimista hoje.

Cadeia não resolve

“Preocupou-me sua fala no sentido de que sua agenda será marcada pelo combate à corrupção e ao crime organizado”.

Este é Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que ganha sua vida defendendo acusados de corrupção.

Se estivesse no lugar dele, também estaria muito preocupado.

País selvagem

José Maria Marín foi condenado a 4 anos de prisão nos EUA em primeira instância. Vai continuar na cadeia, mesmo com 86 anos de idade.

Os EUA são um país selvagem. Infelizmente, não contam com a ação civilizatória da 2a Turma do STF.