Em toda indicação para o Supremo há uma espécie de comoção nacional. Nem sempre foi assim. O ponto de virada foi o julgamento do Mensalão, transmitido ao vivo e a cores em rede nacional, evento que alçou a Suprema Corte ao estrelato da política nacional. Os embates entre Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowiski eram acompanhados como disputas de MMA no octógono da justiça brasileira. A partir de então, a escalação dos 11 do STF é acompanhada com muito mais interesse do que a convocação da seleção canarinho. O resultado é que, hoje, sabemos a formação do escrete Supremo, enquanto o time brasileiro é formado por ilustres desconhecidos. Se essa troca foi benéfica ao país, fica a critério de cada um.
Muitos torceram o nariz para a indicação de Flávio Dino. A sua formação política dentro do PC do B e seu estilo meigo de tratar as pessoas e os assuntos não admitem otimismo com sua futura atuação na Corte. Mas, pensando bem, Flávio Dino não é pior do que a média dos que lá estão, uma mistura de ideologia com truculência política, regada com doses generosas de mediocridade. A nossa Suprema Corte, como de resto, os representantes dos outros Poderes da República, são o retrato do povo e das elites brasileiras. Esta é a pasta de que somos feitos. Flávio Dino será apenas mais um a compor o quadro de um país de terceira categoria.
É no mínimo curiosa a reação do bolsonarismo-raiz à nomeação do ministro-tubaína.
Todos concordam que se trata de uma josta de nomeação. Há unanimidade a respeito. Conseguiu desagradar evangélicos, olavistas, militares, direitistas, conservadores, liberais, enfim, praticamente 100% dos apoiadores do capitão. Agradou Kakay, Gilmar Mendes, a esquerda, a OAB e, principalmente, o Centrão, mas estes são neo-apoiadores do presidente, não são raiz.
Mas a reação, vamos a ela. É mais ou menos a seguinte: não sabemos da missa a metade. Política é um troço muito complicado. O presidente sabe o que está fazendo, o que importa é ele permanecer no poder para implementar a nossa agenda.
Não vou aqui nem entrar no mérito das reações no início do mandato a qualquer sugestão, mínima que fosse, a se fazer política, negociar com o Congresso. O bolsonarismo-raiz espumava, excomungava, contorcia-se em reprovação: jamais! Aqui é Nova Política, negociação é sinônimo de corrupção, nosso presidente veio para mudar isso, com a força do povo na rua!
Hoje, a cançãozinha bem sacada do general Heleno, “se gritar pega Centrão, não fica um mermão” ficou no passado. A Velha Política venceu.
Ou não.
A frase “o presidente sabe o que está fazendo” é uma forma de dizer que a agenda continua lá, intacta, mas precisa agora submergir para que o presidente continue onde está. O presidente seria mais esperto do que todas as raposas que o cercam, e encontrou uma forma de continuar sendo o mesmo patriota impoluto que foi eleito, ainda que mergulhado temporária e contingencialmente na zerda. Estaria, na verdade, protegendo a sua agenda quando dá a impressão de a estar destruindo.
Isso me faz lembrar um livro de xadrez que usei para estudar o jogo quando criança. Além das regras, o livro trazia algumas das partidas mais interessantes da história do jogo. A que mais me chamava a atenção era uma chamada de “Imortal”. Foi jogada em 1851 entre os mestres Adolf Anderssen (brancas) e Lionel Kieseritzky (pretas). O que me fascinava nessa partida violenta era o sacrifício que as brancas fizeram para vencer o jogo: sacrificaram um bispo, duas torres e, finalmente, a dama, para dar um cheque-mate. Reproduzo o tabuleiro antes do lance final, em que as pretas tomam a dama com o cavalo e o bispo branco se move para e7 para dar o cheque-mate. Note que todas as peças pretas estão no tabuleiro, mas são as brancas que vencem.
Bolsonaro seria esse enxadrista genial, que entrega tudo para vencer o jogo, que é o que importa. Este talento político, por algum motivo, ficou hibernando durante 28 anos no baixo-clero do Congresso, para florescer e espantar o mundo político com a sua astúcia em 2020. Não estou eliminando completamente esta hipótese, mas parece uma tese um pouco puxada. Políticos de talento, assim como enxadristas, costumam aparecer mais cedo.
A única jogada de mestre de Bolsonaro, até o momento, foi perceber e cavalgar a onda anti-petista. Negociações de bastidores não parecem ser a sua praia. Mas posso estar enganado, e Bolsonaro, no final, conseguir dar um cheque-mate, mesmo entregando suas peças mais preciosas. Por enquanto, o que temos é uma situação desesperadora para as brancas. Vamos ver.
Bolsonaro não apontou Sérgio Moro para o STF porque o ex-juiz não seria “leal às nossas causas”.
Fiquei curioso: que “causas” seriam essas?
As mais óbvias seriam a pauta de costumes e ideológica. Mas as principais lideranças evangélicas não se reconheceram na indicação. Então, não parece que sejam essas “as causas”.
As “nossas causas” poderiam ser, então, econômicas. O indicado seria um magistrado “terrivelmente liberal”. No entanto, não vimos o mercado soltando fogos, como seria o caso, por exemplo, se a indicação fosse do ex-presidente do TST, Ives Gandra.
Resta, então, a causa da luta contra a corrupção de alto coturno. Mas não, Kakai elogiou a indicação do conterrâneo de Ciro Nogueira. Não parece ser especialmente alvissareiro para esta causa.
Resta, então, a causa da Tubaína. As “nossas causas” se resumem a compartilhar um copo de Tubaína com o presidente. O ministro-tubaína saberá defender as “nossas causas” no momento certo.
Nos EUA, a escolha de um ministro da Suprema Corte gira em torno do eixo liberal-conservador.
Aqui no Brasil, Bolsonaro até ensaiou essa mesma dicotomia, ao prometer um ministro do STF “terrivelmente evangélico”. Mas seu eixo é outro, como se vê.
O loteamento do STF ao centrão só confirma, mais uma vez, a ordem de prioridades deste governo, que descrevi aqui há mais de um ano:
1. Família e amigos
2. Agenda de costumes
3. Agenda econômica
4. Agenda anti-corrupção
Desta vez, a agenda de costumes foi sacrificada para proteger sua família e amigos. Claro, já fomos informados que o novo ministro é “católico”, como se esta não fosse uma característica da maior parte dos brasileiros. O fato é que não foi nomeado por ser “terrivelmente evangélico”.
A demissão de Moro e as nomeações de Aras e, agora, do desembargador de Brasília, mostram a verdadeira agenda do governo Bolsonaro.
O track record de Bolsonaro na indicação de magistrados é ruim. Na única oportunidade que teve, indicou um PGR que está enterrando o combate à corrupção de alto coturno.
Vamos ver se a indicação para o STF será melhor nesse sentido. Além de “terrivelmente evangélico”, precisa ser também “terrivelmente anti-corrupção”. Tenho maus pressentimentos.
A energia com que os excelentíssimos ministros defenderam suas posições até após a meia-noite só mostra que aquela história de “cansaço” alegada por Lewandowski para suspender a sessão anterior era mais uma manobra protelatória, conversa pra boi dormir.