A metade que se tornou manchete

“Homicídios aumentam em seis regiões de SP”

Li a manchete e logo me saltou aos olhos a falta de uma informação fundamental para avaliar a notícia: quantas regiões existem em SP? É óbvio que a informação percentual nos daria uma noção melhor do que está acontecendo. Se essa informação não está lá, é porque não orna com o objetivo da manchete.

Batata: são doze regiões. De modo que uma manchete “Homicídios aumentam em 50% das regiões de SP” seria igualmente verdadeira, mas não cumpriria a sua missão. É claro que “Homicídios diminuem em seis regiões de SP” também seria verdadeira, mas nem pensar.

As regiões que tiveram aumento de homicídios têm um problema, o Estado de SP não necessariamente. Para avaliar a questão estadual é preciso analisar o número agregado. Este aparece no meio da reportagem e no gráfico anexo: aumento de 3,22% de homicídios entre 2019 e 2020.

3,22% é um número para se preocupar? É o início de uma tendência? É só erro estatístico? Essas são as questões relevantes, mas que certamente não justificam manchetes bombásticas.

Não sou especialista em crime, mas entendo um pouco de gráficos e números. Este aumento de 3,22% parece mais uma oscilação dentro de uma tendência geral de queda. Ou pode significar a interrupção dessa tendência, em que os números vão girar em torno de 8,0-8,5 daqui em diante. Afinal, não custa lembrar o fato óbvio de que o Estado de SP está dentro de um país chamado Brasil, cujo índice de homicídios é de 26 por 100 mil/ano. SP é um oásis neste aspecto, o menor índice brasileiro, mas tudo tem um limite: não dá para ter índices japoneses estando dentro do Brasil. Talvez 8 seja este limite, vamos verificar nos próximos anos.

Homicídios e prisões

A média brasileira é de 29 assassinatos por 100 mil habitantes. Isto significa que, se o Brasil tivesse a média de São Paulo, haveria 13 mil homicídios por ano, contra 60 mil atualmente. Seriam poupadas 47 mil vidas anualmente.

São Paulo tem aproximadamente um terço da população carcerária brasileira, sendo que representa apenas 21% da população total.

Fica o registro.

Explicações simplistas

Você é convidado a escrever uma breve análise sobre alguma notícia recém-saída do forno. São só cerca de 150 palavras, então você precisa caprichar bem, porque são os seus 15 minutos de fama. Daí, você comete essas duas “análises” publicadas hoje no Estadão.

Na primeira, o título leva a crer que a economia explica a queda da violência. Afinal, de 2017 para cá, a economia se recuperou de dois anos de recessão. Só pode ser piada. Até o próprio autor não acredita muito no que afirmou, pois faz a ressalva de que os crimes continuam caindo em 2019, com um cenário de estagnação. Como se 2019 estivesse muito diferente de 2017 e 2018. É do balacobaco. Observando o gráfico abaixo, vemos que durante a década passada, com crescimento econômico muito maior, não houve queda significativa da violência, a não ser no ano de 2004, que comentaremos a seguir. Pelo contrário, a violência continuou a subir até 2014, ano do início da recessão. Então, as conclusões não conversam com os dados.

A segunda “análise” se refere ao Estatuto do Desarmamento, baixado por Lula em dezembro de 2003. De fato, os crimes em 2004 apresentaram uma queda significativa, mas depois, aos poucos, voltaram a subir, ultrapassando o pico anterior em 2012, continuando a subir a partir daí. Com o mesmíssimo Estatuto em vigor. Portanto, parece pouco lógico que o Estatuto tenha tido efeito permanente sobre a violência, se é que houve algum. Para tirar alguma conclusão, seria necessário ter estatísticas sobre assassinatos realizados com armas legais e não legais. Desconfio que a imensa maioria é resultado de ação com armas não legais, que não são alcançadas pelo Estatuto. Mas é só uma desconfiança, não há dados para concluir nada. A favor do segundo artigo, pelo menos o autor reconhece que houve iniciativas virtuosas que podem ter levado ao resultado alcançado.

Essas duas análises só demonstram o quanto se pode distorcer dados para corroborar qualquer narrativa. Uma análise mais cuidadosa (e não precisa ser lá muito cuidadosa, como vimos acima) mostra que tudo não passa de uso de correlações espúrias para provar teses pré-concebidas.

A grande verdade é que não há uma explicação simplista para a queda do número de assassinatos no ano passado, como “a economia” ou “o estatuto do desarmamento”. Deve ter sido uma conjugação de fatores, muitos deles fora do campo de visão dos analistas. Mas sempre haverá demanda por explicações simplistas, pois o ser humano é um bicho em busca de explicações, que não suporta o “aleatório”. Enquanto for assim, as narrativas continuarão vivas e em boa forma.