Ontem, o senador Randolfe Rodrigues nos brindou com um tuíte indignado, pedindo o “debate” sobre as nossas taxas de juros, pois teríamos algo completamente fora de proporção. No seu curto texto, o senador chama a atenção para o caso da Turquia.
Com esse tuíte, o senador presta um inestimável serviço ao presidente do BC, Roberto Campos Neto. Ao chamar a atenção para a inflação da Turquia, o senador nos lembra a todos o efeito final de um Banco Central leniente com a inflação.
O caso da Turquia é de manual. Vejamos as etapas do desastre:
1) A partir de meados de 2018, o BC turco começa a elevar as taxas de juros, para combater a inflação, que vinha subindo há algum tempo.
2) Em 06/07/2019, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, demite o presidente do Banco Central turco. Segundo Erdogan, as altas taxas de juros praticadas pelo seu banqueiro central eram a verdadeira causa da inflação. Em suas palavras: “Nós dissemos a ele várias vezes para cortar as taxas de juros em reuniões sobre a economia. Dissemos que, se as taxas de juros caíssem, a inflação cairia. Ele não fez o que seria necessário”. Essa história está na edição da Economist daquela semana.
3) O novo BC segue as ordens do presidente e corta as taxas de juros, que estavam em 25%, para 8% no início de 2020.
4) Com os juros muito mais baixos do que o necessário para conter a inflação, começam as pressões para a desvalorização da moeda. Com o objetivo de conter essas pressões, o BC turco começa a vender reservas, que caíram praticamente pela metade (de US$ 80 bi para US$ 40 bi). Seria o equivalente a queimarmos algo como US$ 160 bilhões de nossas reservas para defender o real.
5) Como esse tipo de política tem um limite, o limite chegou. No final de 2021, a lira turca se desvalorizou de maneira dramática, saindo de 8 para 16 liras por dólar (ou 1,50 para 3,00 liras turcas por real). É assim que as crises financeiras acontecem: primeiro, lentamente; depois, de repente. Em determinado momento, todo mundo quer sair ao mesmo tempo, e a porta é sempre estreita. Por isso, é sempre prudente evitar comemorar resultados de políticas econômicas heterodoxas. As consequências podem não vir imediatamente, mas virão com certeza.
6) Com a desvalorização da lira turca, a inflação, que já vinha subindo, explodiu: em dezembro de 2021 e janeiro de 2022, a inflação mensal foi de 14% e 11% respectivamente. Em 2022, a inflação fechou em 65% (a inflação mostrada na tabela do senador Randolfe vai só até novembro; como a inflação de dezembro de 21 havia sido de 14%, a inflação anual caiu em dezembro de 22, pois neste mês a inflação foi menor do que 14%).
Temos, então, o ciclo completo do populismo monetário: redução artificial das taxas de juros, pressão sobre a moeda, queima de reservas internacionais e, finalmente, inflação. O senador Randolfe não colocou a Argentina nessa tabela, o que é uma pena, pois o processo foi exatamente o mesmo. Hoje, a inflação na Argentina está em 95%.
No caso da Turquia, o presidente tinha uma ideia fixa, a de que taxas de juros altas levam a uma inflação mais alta. Não descansou até que conseguiu levar à prática a sua, digamos, teoria. No Brasil, a coluna de William Waack de hoje (O Perigo das Ideias) defende a tese de que o movimento de Lula contra o BC não é somente a busca de um bode expiatório, mas que, na verdade, o nosso presidente, a exemplo de seu par na Turquia, estaria se movendo por certas ideias no campo da doutrina econômica em combinação com o seu “tino político”.
Faria bem o presidente Lula em observar o experimento turco. Agradecemos o senador Randolfe por nos trazer esse caso de manual.
Ontem, como parte da pesquisa para escrever meu próximo livro, assisti a um Roda Viva de dezembro de 1993, com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Além de ser engraçado ver jornalistas como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardemberg e Celo Ming 30 anos mais jovens, foram vários os aspectos interessantes do programa, alguns servindo como parâmetro para os desafios que temos hoje. Vejamos.
– É curioso ver como aqueles jornalistas experimentados não conseguiam entender a lógica da URV, unidade de conta que entraria em vigor 3 meses depois. Enquanto os jornalistas tentavam entender como seria o “dia D” da entrada do novo padrão monetário, FHC tentava explicar que não haveria “dia D”. Ao contrário dos planos econômicos anteriores, o governo não determinaria nada, a não ser o valor do salário mínimo em URV. O resto seria livremente pactuado entre os agentes econômicos, o que era uma novidade de difícil entendimento, por fugir completamente à lógica de um Estado interventor na atividade econômica.
– Também é curioso notar como todas as cifras eram denominadas em dólares. Era a confissão implícita do fracasso monetário brasileiro. Quando até o próprio ministro da Fazenda expressa os números do orçamento nacional em uma moeda estrangeira, é que a moeda virou uma peça de ficção. Isso é inimaginável hoje em dia, e uma grande prova de quanto evoluímos neste aspecto.
– O plano Real tinha três etapas, sendo que a primeira era alcançar um “equilíbrio fiscal” das contas públicas. FHC afirmava que, sem essa primeira etapa, a introdução da URV e, depois, do próprio Real, seriam inviáveis. Para tanto, havia um pacote de ajuste a ser aprovado no Congresso, no valor de US$ 22 bilhões. Segundo dados do FMI, o PIB brasileiro, no final de 1993, era de US$ 430 bilhões. Ou seja, o déficit estimado era de aproximadamente 5% do PIB! Hoje, estamos tentando zerar um déficit que, este ano, deve ser algo em torno de 2% do PIB. A tarefa parecia bem mais complexa do que é hoje. Mas, não é bem assim por três motivos: acurácia dos números, carga tributária e flexibilidade do orçamento. É o que veremos nos três itens a seguir.
– Um dos jornalistas lembrou que o ex-ministro Dilson Funaro esteve ali, no mesmo programa, afirmando que havia sido enganado quando lhe afirmaram que o déficit havia sido zerado. Na verdade, Funaro não havia sido enganado. É que ninguém sabia mesmo qual era o déficit naquela barafunda das contas públicas brasileiras, em que a inflação e ralos dos mais diversos tipos e tamanhos contribuíam para a zona. Talvez a coisa tivesse melhorado um pouco nos anos seguintes, mas é duvidoso afirmar que havia uma compreensão completa do orçamento como temos hoje. Então, provavelmente, FHC deve ter colocado um coeficiente de segurança nos números. Tanto que, em determinado momento do programa, Celso Ming questiona o montante com base em algumas premissas, e FHC sai pela tangente.
– Perguntas dos telespectadores (por fax!) chegavam, e a maioria versava sobre o aumento de impostos do pacote. Nesse momento, FHC afirma que o brasileiro não quer pagar imposto para manter os serviços públicos que reivindica, e que a carga tributária no Brasil era baixa: 18% do PIB no nível federal, 4% do PIB nos níveis sub-nacionais. Como sabemos, o ajuste fiscal brasileiro, desde então, foi feito por aí: a carga tributária saiu de 22% para os atuais 34% do PIB. E, mesmo assim, ainda rodamos com déficit. O que demonstra que as necessidades do Estado brasileiro sempre aumentarão e ultrapassarão a capacidade do mesmo Estado de arrecadar impostos. Hoje, a saída adotada por FHC de aumentar a carga tributária parece ser mais difícil, mas não impossível.
– FHC citou dois grandes números importantes em sua entrevista: 20% das despesas do governo eram com pessoal e 20% eram com aposentadorias. O governo ainda gastava 40% do seu orçamento com outros itens obrigatórios e tinha somente 20% de espaço para gastos discricionários. Segundo FHC, esses 20% eram muito pouco espaço para o governo fazer suas políticas, de modo que o pacote fiscal incluía algum nível de desvinculação de receitas. Pois bem: esses números hoje são os seguintes: os mesmos 20% para os funcionários públicos, 45% para aposentadorias, 30% para outros gastos obrigatórios e 5% para gastos não obrigatórios. Não por outro motivo, a primeira coisa que fez o governo Lula foi aprovar um pacote de gastos adicionais de R$ 200 bi, pois aqueles 5% não dão para nada. Hoje, o orçamento público é absolutamente engessado, e a questão das aposentadorias vai somente piorar ao longo do tempo, comendo uma parte cada vez mais relevante dos impostos pagos. A situação, hoje, é muitas vezes pior do que na época de FHC.
O Plano Real foi apenas o início, não o fim, do processo de estabilização. Várias iniciativas foram realizadas para recolocar as contas públicas nos eixos, desde o fechamento dos bancos estaduais, passando pelas grandes privatizações até a LRF e o estabelecimento de um comitê de política monetária independente. Voltamos para trás na disciplina dos entes sub-nacionais e não avançamos em outros pontos, como o equacionamento da previdência (a reforma foi muito pouco, muito tarde). A inflação, que servia para fechar as contas que não fechavam, parece domada. Mas, se não pactuarmos uma forma de financiar o orçamento, é questão de tempo para que volte. Primeiro, devagar. Depois, de repente.
O sistema de metas de inflação foi inaugurado em 1999, após o abandono da âncora cambial em janeiro daquele ano. Por esse sistema, o CMN (Conselho Monetário Nacional) estabelece uma meta para a inflação nos anos seguintes, meta esta que deve ser perseguida pelo Banco Central. Esta meta serve como uma espécie de “âncora” para as expectativas do mercado em relação à inflação futura. Ou seja, na falta de mais informações, os agentes econômicos cravam a “previsão” para a inflação no futuro na meta, pois confiam que o BC vai agir para levar a inflação para lá.
As primeiras metas foram estabelecidas em reunião do CMN em junho de 1999: 8% para 1999, 6% para 2000 e 4% para 2001. Na reunião de 2000, a meta de 2002 foi estabelecida em 3,5%, e na de 2001, a meta para 2003 foi estabelecida em 3,25%. Ou seja, já no início do sistema de metas, a ideia era levar a meta de inflação para os 3%, que era a meta padrão para países emergentes como o Brasil. No entanto, com a desancoragem do câmbio em 2002, a reunião daquele ano reviu a meta para 2003 para 4% e estabeleceu a meta para 2004 em 3,75%, em uma nova tentativa de convergir a inflação no Brasil para 3%.
Assumindo o governo Lula em 2003, a primeira reunião do CMN reviu a meta de 2004 para 5,5% (de 3,75%) e estabeleceu a meta de 2005 em 4,5%. No entanto, ao contrário do governo FHC, os governos Lula e Dilma mantiveram a meta em 4,5% durante todos os seus mandatos. Houve discussões sobre a redução da meta, mas foram mortas na fonte por Lula. A meta somente foi reduzida para 4,25% na reunião do CMN de 2017 para o ano de 2019 e para 4% para 2020. Nas reuniões seguintes, a meta foi sendo reduzida, até chegar na reunião do CMN de 2021, quando a meta de 2024 foi estabelecida em 3%.
Chegamos em 2023, e Lula mostra disposição de voltar a 2003, quando o CMN reviu a meta do ano seguinte. A discussão é: uma meta maior levará necessariamente a juros mais baixos e maior crescimento econômico? Para entender porque não, precisamos entender a lógica por trás do sistema de metas de inflação.
Em um país com viés inflacionário como o Brasil, o controle da inflação por meio de metas parece algo mais parecido com magia do que com ciência. Afinal, sem controlar preços, como garantir que a inflação não sairá do controle? O que está por trás do sistema de metas é uma teoria bem estabelecida em economia, chamada de “expectativas racionais”. Segundo esta teoria, os agentes econômicos, de alguma maneira, conhecem o modelo de economia em que estão inseridos, e assumem que as previsões sobre o futuro desta economia com base neste modelo estão, de maneira geral, corretas. No caso específico do sistema de metas de inflação, os agentes econômicos “preveem” a inflação futura com base em um modelo bem estabelecido, em que o Banco Central controla o preço do dinheiro na economia (a taxa de juros) de modo a trazer a inflação futura para a meta. Assim, o controle da inflação se dá pela “expectativa racional” dos agentes econômicos, que acreditam que o Banco Central cumprirá a sua tarefa de trazer a inflação para a meta. Por isso, quando perguntados sobre a inflação de, por exemplo, 2026, os bancos e consultorias cravam “3%”, porque esta é a meta. Não é que estejam “prevendo” a inflação através da utilização de modelos ultrassofisticados. Nada disso. Estes agentes econômicos simplesmente olham para a meta e creem que o BC fará o serviço direito. Quando acham que o BC não conseguirá trazer a inflação para a meta, colocam um desvio em relação à meta. Por exemplo, a inflação “prevista” para 2024 está em 3,7% contra uma meta de 3%. Ou seja, os agentes econômicos estão prevendo dificuldades para o BC trazer a inflação para a meta neste horizonte de tempo.
E o quê o BC faz para atingir a meta de inflação? Eleva ou derruba a taxa básica de juros, aquela que comanda toda as outras taxas de juros da economia. Taxas mais elevadas fazem com que menos pessoas estejam dispostas a consumir e menos empresas estejam dispostas a investir, esfriando a economia e, por consequência, a inflação. E vice-versa. Mas tem um detalhe importante, e esta é a parte fundamental deste artigo, preste muita atenção: o que realmente importa para o controle da inflação não é a taxa nominal de juros, mas a taxa REAL de juros. Ou seja, a taxa ACIMA da inflação. E não da inflação passada, mas da inflação ESPERADA NO FUTURO. Os agentes econômicos vão tomar suas decisões com base na taxa REAL de juros ESPERADA NO FUTURO.
Vamos a um exemplo numérico. Segundo o relatório Focus, a inflação esperada para 2024 está em 3,7% enquanto a Selic esperada para o final de 2023 está em 12,50%. Portanto, temos que os agentes econômicos esperam uma taxa de juros real de 8,8% no início de 2024. Note que não importa a inflação de 2022, esta já era. O que importa é quanto de taxa de juros real pode ser esperada, esta é a variável chave para a tomada de decisões de consumo e investimentos. Observe, portanto, que o que importa para o BC é a inflação ESPERADA, não a passada.
Aqui entra outro conceito importante: o de TAXA DE JUROS REAL NEUTRA da economia. A taxa de juros real neutra é aquela que mantém a inflação na meta ao longo dos ciclos econômicos. Se a expectativa de inflação está acima da meta, o BC precisa elevar os juros acima dessa taxa de juros real neutra para trazer a inflação para a meta. E, vice-versa, se a expectativa de inflação está abaixo da meta, a taxa praticada deve estar abaixo da taxa neutra. Essa taxa de juros real neutra depende de uma série de fatores estruturais, que vão desde as condições fiscais do país até a sua produtividade (custo Brasil). Quanto piores forem essas condições, maior será a taxa de juros real neutra da economia. Ninguém sabe exatamente quanto é essa taxa a cada momento, mas o conceito é este.
Agora, estamos preparados para entender o que provavelmente aconteceria se a meta para a inflação fosse elevada. Digamos que, na reunião do CMN de junho, decida-se por elevar a meta de 2024 em diante de 3% para 4,5%. Hoje, a expectativa para a inflação de 2024 está em 3,7%. Como dissemos lá no início, não é que os bancos e consultorias tenham uma bola de cristal e “adivinhem” a inflação de 2024. Eles partem da meta (que é 3%), e colocam um desvio de acordo com as incertezas do cenário. Em pouco tempo depois que a meta for elevada, as expectativas serão reajustadas para a nova meta. Portanto, as expectativas de inflação para 2024 em diante serão elevadas, inicialmente, para 4,5%.
Preste atenção neste ponto agora: o que acontece com a taxa de juros real ESPERADA? Ora, se a taxa real esperada antes era de 8,8% (12,5% menos 3,7%), agora é de 8,0% (12,5% menos 4,5%). Ou seja, PARA UM MESMO NÍVEL DE TAXA SELIC, a taxa real esperada DIMINUI em função do aumento da meta e, portanto, da expectativa de inflação.
Como vimos acima, o BC calibra a taxa real esperada em função da taxa real neutra da economia. Não sabemos qual é essa taxa real neutra, mas de uma coisa podemos estar certos: com a queda da taxa real esperada, o BC está mais próximo da taxa real neutra. Digamos, por exemplo, que a taxa neutra seja de 4% ao ano. Com 8,8% de taxa real esperada, a Selic estava 4,8% acima da taxa neutra. Já com 8%, a taxa real esperada está 4% acima da taxa neutra.
Claro que, com uma meta mais alta, o desvio das expectativas em relação a esta meta mais alta será menor do que a que temos hoje. Por exemplo, se as expectativas de 2024 saltarem de 3,7% para 4,5%, teremos um desvio caindo de 0,7% (3,7% menos 3%) para zero (4,5% menos 4,5%). Portanto, o BC poderia praticar uma taxa real esperada menor, em um primeiro momento. Mas note que, mesmo neste primeiro momento, o espaço para praticar taxas NOMINAIS de juros menores é limitado, pois a taxa real esperada já caiu com o aumento da expectativa de inflação. Ou seja, os juros nominais não caem na proporção que desejaria o governo com a mudança da meta.
O problema ocorre no segundo momento do jogo. A única coisa que mudou foi a meta de inflação. Todo o resto, todas as distorções da economia brasileira, permanecem as mesmas. Portanto, a tendência de descolamento da inflação em relação à meta, qualquer que seja, permanece a mesma. Assim, em algum tempo, começarão a aparecer desvios para cima também em relação à meta de 4,5%. É o que vimos no período de 2010 a 2015, em que a inflação permaneceu sempre perto do teto da banda da inflação, a ponto de o mercado acreditar que o BC estava trabalhando com uma meta “informal” de 5,5%. Considerando que a taxa real neutra da economia permanece a mesma em virtude das distorções da economia brasileira, as únicas coisas que vão mudar serão o nível da inflação e o nível da taxa nominal de juros ao longo do tempo, ambas 1,5 ponto percentual para cima. Voltaremos à estaca zero. Quer dizer, estaca zero, não. Estaca zero mais 1,5 ponto percentual. As taxas de juros serão mais altas, não mais baixas, como desejaria o governo.
Uma inflação mais alta prejudica o horizonte de investimento dos agentes econômicos e, portanto, as perspectivas de crescimento econômico, justamente o que se buscava com o aumento da meta para a inflação. Em economia nem tudo é o que parece ser. Não é a meta de inflação que impede o crescimento econômico, mas as inúmeras distorções da economia brasileira. Elevar a meta só serve para disfarçar essas distorções por algum tempo. Como tudo no Brasil, trata-se de um “jeitinho” que não resolve o problema, somente o adia, voltando lá na frente ainda maior.
O IPCA fechou o ano de 2022 em 5,79%, acima, portanto, do teto da meta para este ano, que era de 5,00%. Pela segunda vez consecutiva, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, precisará escrever uma cartinha endereçada ao CMN, explicando o fracasso.
O atual sistema de metas de inflação foi instituído em 1999, após a desistência da âncora cambial naquele ano. A ideia é ancorar as expectativas dos agentes econômicos em torno da meta de inflação, sabendo que o Banco Central agirá tempestivamente para trazer a inflação para a meta se houver algum desvio. Como tudo no Brasil, a coisa até funciona, mas no limite da responsabilidade.
Com uma meta e bandas em torno dessa meta para absorver choques inesperados, espera-se que, ao longo do tempo, a inflação tenha um comportamento simétrico em torno da meta, às vezes acima, às vezes abaixo da meta. Mas não é o que observamos.
Dos 24 anos de vigência do sistema de metas de inflação no Brasil, em nada menos que 18 (75%) a inflação ficou acima da meta. E dessas 18 vezes, em 5 a inflação estourou a banda superior. Por outro lado, das 6 vezes em que a inflação ficou abaixo da meta, em apenas uma vez (no ano da graça de 2017) a inflação estourou a banda inferior. Temos então, claramente, uma leniência em relação à inflação por parte dos banqueiros centrais brasileiros ao longo dos anos, que se traduz em inflação consistentemente mais alta do que a meta estabelecida.
Esse fato torna a vida do banqueiro central mais difícil, pois os agentes econômicos, com base nesse histórico, tendem a projetar uma inflação mais alta do que a meta, exigindo juros mais altos do que o necessário para ancorar as expectativas, caso o BC tivesse mais credibilidade.
Minha tese é de que o comportamento fiscal do governo acaba por exigir um nível de juros não palatável do ponto de vista político, o que leva o BC a sempre ficar “atrás da curva”, como dizemos no mercado, topando, na média, uma inflação um pouco maior. Assim, o sistema de metas foi “abrasileirado”, com a meta servindo, na prática, de piso para a inflação. Quero crer que a independência formal do BC mude esse quadro. Mas admito que se trata mais de uma esperança do que de uma convicção.
O governo Fernandez está aliviado. Depois da divulgação da inflação de novembro, ficou claro que o ano de 2022 vai fechar com inflação abaixo dos 100%, marca psicológica muito ruim.
É o que restou aos argentinos. Mesmo com controle de vários preços, a inflação continua subindo no país. Atingir os 3 dígitos anuais é questão de tempo. Mas, pelo menos, não será em 2022, a ponto de manchar um ano em que os argentinos brilharam nos gramados do Qatar.
Alguns podem estar se perguntando como, com essa crise, os argentinos se destacam pelo número de torcedores na Copa e pela invasão das praias de Santa Catarina. A resposta é simples: esse papel colorido que perde metade do seu valor em um ano já não é a moeda oficial da parcela mais rica do país há muito tempo. Essa parcela usa o dólar como sua moeda oficial, de modo que não sofre com a desvalorização do peso.
No Brasil, na época da hiperinflação, não chegamos a usar o dólar na extensão que os argentinos usam, porque inventamos uma moeda diferente da oficial que protegia os mais ricos da desvalorização. Era a moeda indexada à inflação, acessível somente àqueles que tinham acesso a investimentos bancários.
Tanto no Brasil quanto na Argentina, a inflação castiga a parcela mais pobre da população, que depende da moeda oficial porque não tem acesso a essas moedas alternativas. Uma inflação causada pela monetização da uma dívida pública impagável. Ou seja, o governo é obrigado a imprimir dinheiro para bancar seus gastos muito acima de suas receitas, fazendo com que a moeda se desvalorize.
A ironia cruel é que esses gastos inflacionários são feitos em nome dos mesmos pobres que são castigados pela inflação. Como diz o futuro presidente, “não se cuida dos pobres olhando política fiscal do governo”. Dessa frase, os pobres entendem a palavra “cuidar”, mas não entendem a expressão “política fiscal”. O que, a exemplo da inflação, não deixa de ser uma manipulação cruel da realidade.
A tabela abaixo foi tirada da primeira página do caderno de economia do Estadão do dia 04/01/1993. Sim, os jornais publicavam a cotação do dólar paralelo naquela época.
Sempre que via essa tabela, me perguntava porque a polícia não ia atrás de quem fornecia aquela informação para o jornal. Afinal, dólar paralelo é crime financeiro. Que um crime financeiro desfilasse diariamente nas páginas de economia, ao lado de outros indicadores respeitáveis, nos dá um pequeno sabor do que era o Brasil daqueles tempos.
Lembrei disso quando vi o gráfico abaixo, em um relatório de hoje do J P Morgan. O dólar paralelo na Argentina atingiu 150% de ágio sobre o dólar oficial, maior ágio desde o final da década de 80.
O ágio do dólar paralelo é fruto de um dólar oficial fora de lugar. O governo argentino está praticamente sem reservas internacionais, o dólar é mercadoria escassa, mas o preço oficial não reflete isso. O governo Alberto Fernandez não deixa o dólar flutuar porque adicionaria ainda mais gasolina na inflação. Seria uma mistura explosiva, que poderia rapidamente transformar uma inflação alta em uma hiperinflação.
Qual a saída para os argentinos? Equilibrar o orçamento público, de modo a conseguir estancar a monetização da dívida (o Banco Central financiando o Tesouro). Difícil? Sim. Mas como disse Anne Krueger no artigo citado em meu post anterior, adiar a resolução de um problema só serve para agravá-lo.
Difícil identificar porque a situação piorou tanto em tão pouco tempo. Mas é assim que as crises financeiras acontecem. Primeiro lentamente, depois de repente. Há uma espécie de momento-chave, em que cai a ficha dos agentes econômicos, e um processo linear torna-se exponencial.
O Brasil está longe da situação que aflige agora o nosso vizinho austral. Temos grande quantidade de reservas, há compradores para a nossa dívida pública (a um preço salgado, mas há) e um banco central com credibilidade. Mas se me perguntarem em que estrada estamos, diria que estamos na estrada que leva a Buenos Aires. Ainda distantes do destino, mas a estrada é essa. Para dar a meia-volta, os remédios são amargos, mas menos amargos do que daqui a um, dois ou cinco anos, se nada for feito.
Estamos ainda na fase em que a piora se dá lentamente. Em algum momento, se continuarmos a caminhar nessa estrada, chegaremos na fase do “de repente”. E todos se perguntarão “mas o que aconteceu???”. Nada. Teremos apenas chegado ao nosso destino.
Segundo o IBGE, nos últimos 12 meses até maio, o diesel subiu 52% e a gasolina, 29%. Portanto, é bastante compreensível que os agentes políticos, liderados por Bolsonaro e Lira, estejam buscando desesperadamente uma forma de controlar esses preços. O único problema é que, uma vez controlados esses preços, vão restar esses aqui (variações em 12 meses):
Farinha de trigo: +28%
Mandioca: +37%
Abobrinha: +82%
Pepino: + 78%
Tomate: +56%
Cebola: +49%
Cenoura: +116%
Açúcar: +36%
Alface: +40%
Laranja+ 38%
Mamão: +56%
Melão: +71%
Óleo de soja: +31%
Café: +67%
Uma pena que o governo não disponha de uma “Supermecadobras”, em que pudesse exercer seu poder de acionista majoritário para baixar os preços desses produtos. A Venezuela resolveu isso, colocando a PDVSA para distribuir alimentos para o povo. Está aí uma ideia. Se Arthur Lira estivesse realmente preocupado com o povão e não com os mais ricos, estaria pensando nisso.
É bem provável que Bolsonaro, Lira e seus companheiros tenham voltado a destruir a governança da Petro, depois de ter sido reconstruída a duras penas por Temer da destruição causada pelo PT, e não obtenham o seu objetivo de baixar a inflação para os mais pobres.
PS1: alguém pode dizer que, baixando o preço do diesel, o preço dos alimentos também cai, pois o preço do frete se reduz. Essa relação, no entanto, está longe de ser certa. A cadeia de produção é extensa, são muitas empresas envolvidas e que podem abocanhar o lucro que a Petrobras deixará de ter (inclusive os próprios caminhoneiros) e, acima de tudo, os preços dependem, em última instância, do equilíbrio de oferta e demanda, e não dos custos de produção.
PS2: Se, como querem alguns, Bolsonaro estaria apenas jogando para a torcida, colocando-se ao lado do povo contra a Petrobras para tentar se desvencilhar do problema, pode tirar seu cavalinho da chuva. Narrativas fazem sucesso nas bolhas. No final do dia, o povão quer ver o seu problema resolvido, e não historinhas. Quer queira, quer não, Bolsonaro agora é vidraça.
Fareed Zakaria é um analista bastante lúcido, alinhado aos democratas. Vale a pena ouvi-lo quando fala de política. Mas não é a primeira vez que, quando fala de economia, Zakaria se mostra bem limitado.
Na coluna de hoje, Zakaria se pergunta candidamente por que Biden não reduz a inflação eliminando as tarifas de importação e as regras de imigração estabelecidas por Trump.
É um pouco como uma criança que pensa poder segurar as ondas na praia.
Vamos por partes. Em primeiro lugar, inflação não é o mesmo que aumento de preços. O aumento dos preços é o sintoma, a inflação é a doença. Digamos que as tarifas de Trump fossem eliminadas do dia para a noite. Segundo o artigo, a estimativa é de que, se isso acontecesse, a “inflação” cairia 1,6%. Errado. Os preços cairiam 1,6%. Seria apenas uma queda isolada, sem efeito sobre o processo inflacionário. Se nada mais fosse feito, os preços continuariam a subir na mesma intensidade, só que começando de um patamar mais baixo. É o mesmo que achar que congelamento de preços resolve o problema da inflação.
Milton Friedman dizia que a inflação é um fenômeno eminentemente monetário. Ou seja, excesso de dinheiro na economia. Esse excesso, se não for retirado, continuará impulsionando os preços para cima, com ou sem tarifas. É isto o que o Federal Reserve está fazendo no momento, retirando dinheiro da economia americana. Estamos saindo de um período em que todos os governos do mundo, e em particular o americano, encharcaram as suas economias com dinheiro, via pagamento de auxílios dos mais diversos tipos. Além disso, os bancos centrais dos países desenvolvidos compraram toneladas de títulos no mercado, colocando mais gasolina na fogueira. Portanto, sem endereçar este ponto, todo o resto é apenas paliativo.
A proposta de abrir o mercado de trabalho para imigrantes é outra medida que ataca as consequências, não as causas.
Se o processo inflacionário não for debelado, a redução do custo da mão de obra se torna lucro das empresas, não preços menores. Aliás, não deixa de ser curioso que alguém alinhado aos democratas esteja defendendo medidas com o objetivo de reduzir os salários. Deixa os democratas saberem disso.
Uma evidência de que a inflação não tem nada a ver com tarifas e mercado de trabalho apertado é fato de se tratar de um fenômeno global. Trump foi presidente dos Estados Unidos, não do mundo. Suas medidas certamente não influenciaram a inflação, por exemplo, da Alemanha, que está em seu maior nível dos últimos 40 anos. Aliás, quando Trump elevou as tarifas, lá pelos idos de 2017-2018, a inflação não subiu. Por que cairia agora?
Aqui no Brasil também estamos flertando com medidas que não atacam o problema, como redução de impostos e suspensão de reajustes contratuais de energia elétrica. São medidas que reduzirão os preços, não a inflação. Esta somente será controlada com juros mais altos e política fiscal austera. Não há atalhos.
Acho graça quando bolsonaristas repercutem a narrativa de que o governo fez um “ajuste fiscal”, citando, para isso, o superávit primário de 2021 e a queda da relação dívida/PIB. Faz-me lembrar dos petistas que comemoravam o “espetáculo do crescimento” de Lula. Naquele tempo, os economistas amargurados insistiam que o crescimento na base de anabolizantes cobraria o seu preço em algum momento no futuro. A recessão de Dilma confirmou os prognósticos mais sombrios. Agora, esses mesmos economistas insistem que esse “ajuste fiscal” feito com base na surpresa inflacionária pode terminar muito mal.
Vamos entender o conceito. O grau de saúde fiscal de um país é medido pela trajetória da relação dívida/PIB. Se há uma estabilidade ou tendência de queda, os financiadores da dívida tendem a ficar calmos. Por outro lado, se a tendência é de aumento sem fim, os financiadores tendem a ficar nervosos, e pedem taxas de juros cada vez maiores para rolar a dívida. Pois bem: para que essa relação caia, é necessário que o PIB cresça acima da dívida, em termos nominais. O crescimento do PIB nominal, por sua vez, tem dois componentes: o seu crescimento real mais a inflação. Já o crescimento da dívida depende do tamanho das taxas de juros e de novas dívidas.
O que aconteceu em 2021? O PIB nominal cresceu cerca de 15%, sendo 4,5% real mais 10,5% da inflação. E o que aconteceu com a dívida? Como as taxas de juros perderam a corrida para a inflação (quem tem aplicação no Tesouro Direto sabe do que estou falando), a dívida cresceu menos do que o PIB. Além disso, as receitas do governo foram turbinadas pela inflação, ao passo que uma parte das despesas ficou congelada. Não é à toa que o funcionalismo público está indo para a greve. Então, tivemos aumento do PIB nominal maior que da dívida, e aumento da receita maior que da despesa. Tudo graças à inflação, ao rendimento pífio das aplicações financeiras e ao congelamento do salário do funcionalismo.
Aqui entra a manchete da reportagem do Valor.
A surpresa inflacionária de março pode estar indicando que teremos, mais uma vez, um efeito inflacionário sobre a dívida pública, diminuindo a relação dívida/PIB em 2022 a exemplo do que ocorreu em 2021. Note, e isso é de grande importância, que não estamos falando de inflação, mas de “surpresa inflacionária”. Para que a mágica funcione, é preciso que a inflação pegue de surpresa os agentes econômicos, não dando tempo de repassar para os juros a surpresa na inflação. Se não há surpresa, a dívida cresce tanto quanto o PIB, e não há efeito sobre a relação dívida/PIB.
Em um país com instituições monetárias funcionando, o BC reage ao aumento da inflação aumentando os juros mais do que proporcionalmente. Então, no 2o tempo do jogo temos a dívida crescendo mais do que o PIB, seja porque o seu custo aumenta, seja porque a atividade econômica se desacelera, diminuindo o crescimento da arrecadação. Sem contar as reposições salariais da inflação passada. Ou alguém acha que é possível manter os salários dos servidores públicos congelados para sempre?
Assim, para manter a bicicleta em pé, é necessário sempre produzir novas surpresas inflacionárias. Esta era a dinâmica da época da hiperinflação, em que a inflação andava ”aos saltos”, sempre mantendo os agentes econômicos desfasados em relação ao grande vencedor no processo, a dívida do governo. Esta também era a dinâmica do processo de “crescimento” dos governos do PT, que necessitava de cada vez mais estímulos para manter a bicicleta em pé, até que o dinheiro acabou.
Comemorar a “redução da dívida” feita com base em surpresa inflacionária é o mesmo que comemorar gol claramente ilegal. A diferença é que, no futebol, o próximo jogo começa no 0 x 0 e não existe a obrigação de “compensar” o gol roubado. Já na economia, as distorções se acumulam de um jogo para o seguinte e, mais cedo ou mais tarde, precisarão ser compensadas. Pelo bem ou pelo mal.
O economista Arthur Okun criou um índice muito simples mas poderoso para medir o humor da população. Trata-se do “Misery Index”, que você vai ver por aí traduzido como “Índice da Miséria”, mas que eu prefiro traduzir como “Índice do Sofrimento”.
O Índice do Sofrimento nada mais é do que o resultado da soma do índice de desemprego com a inflação acumulada nos últimos 12 meses. A idéia é medir o quanto o povo está sofrendo do ponto de vista da atividade econômica e da inflação, as duas principais variáveis macroeconômicas que influenciam o dia a dia do cidadão. O gráfico abaixo mostra o Índice do Sofrimento calculado desde o ano 2000 até fevereiro de 2022, quando temos os últimos dados de inflação e desemprego.
A linha vermelha mostra uma previsão deste índice, considerando as projeções para a inflação e para o desemprego segundo o relatório Focus do Banco Central. Além disso, destaco os meses das eleições e o do impeachment de Dilma Rousseff.
Em primeiro lugar, podemos observar que, nas três eleições em que houve continuidade do partido incumbente (2006, 2010 e 2014), o Índice do Sofrimento estava abaixo de 14. Por outro lado, nos dois casos em que houve troca de partido (2002 e 2018), o Índice estava acima de 16. Por ocasião do impeachment, estava acima de 20.
Pois bem. Hoje, o Índice do Sofrimento está acima de 22, em pior situação do que na época do impeachment. Não é à toa que a popularidade do presidente está em baixa. A boa notícia para Bolsonaro é que o índice tende a cair ao longo do ano, chegando nas eleições um pouco acima de 18. A má notícia é que, neste nível, o partido incumbente não conseguiu fazer o sucessor em 2002. Ou seja, a considerar esta estatística, a popularidade do presidente vai melhorar ao longo do ano, mas não na velocidade e intensidade suficientes para lhe dar um novo mandato.
Claro que esta é uma interpretação unidimensional da realidade, e baseada em poucos pontos, dado que o histórico é curto. Mas, sem dúvida, é um alerta para a campanha do presidente, que precisará de muito mais esforço do que o normal para conseguir se reeleger.