Documentários sobre a mãe natureza costumam nos brindar com cenas de tirar o fôlego. A aranha que ataca o inseto enredado em sua teia, por exemplo. Mas para se ter uma ideia exata do fenômeno, é preciso diminuir a velocidade do filme, mostrar a cena em câmera bem lenta. Vemos então, em detalhe, a fúria assassina da aranha em todo o seu esplendor.
Essa é a experiência sensorial que estamos vivendo neste momento no Brasil. A hiperinflação das décadas de 80 e 90 não nos permitia observar como o Estado brasileiro se financiava com base na inflação. A coisa era de tal maneira rápida e recorrente, que se tornava difícil distinguir os movimentos, tal como o ataque da aranha em velocidade normal.
O ano de 2021 nos permitiu ter a mesma experiência, mas em câmera lenta. A inflação foi bem acima da esperada pelos agentes econômicos e, por outro lado, os salários dos servidores públicos estão congelados. Ou seja, na prática, os salários do funcionalismo público foram reduzidos em termos reais. Por outro lado, a arrecadação acompanhou o aumento dos preços. Afinal, como já aprendemos no caso do ICMS dos combustíveis, a alíquota dos impostos é a mesma, mas a base de arrecadação é bem maior. Resultado: salários em dia e caixa em ordem.
O mesmo se pode dizer do governo federal, que vai produzir um déficit primário muito menor este ano e vai mostrar uma dívida pública bem menor do que as previsões mais catastrofistas. O segredo é o mesmo: inflação maior bombando a arrecadação e gastos com funcionalismo congelados.
Se a inflação não se acelerar em 2022, o truque se esgota. A arrecadação não cresce tanto e os funcionários públicos começam a fazer pressão por reajustes. Afinal, os caixas dos estados e da União estão em ordem. O que ainda não contaram para os funcionários é que aquele salário do passado é impossível de ser pago, o que vale e que pode ser pago em dia (por enquanto) é esse salário desidratado.
Em 2021, tivemos o privilégio de poder observar em detalhe como a inflação ataca os insetos que caem em sua teia, coisa que as pessoas das décadas de 80 e 90 não conseguiam observar a olho nu. A inflação é aliada do governo, a única forma de fazer caber suas promessas em um orçamento limitado. Pena que seja um truque que não possa ser usado de maneira recorrente.
Joe Biden vai enfrentar os frigoríficos. Ao que parece, estão a explorar sua vantagem de mercado para impor preços mais altos. Mas Joe não vai deixar barato não! Quem esses frigoríficos pensam que são?
Bem, como sempre, fui dar uma olhada nos dados. A tabela abaixo, construída a partir de dados do Bureau of Labor Statistics, mostra a diferença entre a inflação geral e a inflação da carne nos EUA nos últimos 5 anos (sempre medindo a inflação dos últimos 12 meses). Números positivos (em mais verde) significam que a inflação geral foi maior que a inflação da carne, números negativos (em mais vermelho) significam que a inflação da carne foi maior que a inflação geral. Portanto, quanto mais vermelho, mais Biden tem razão (a ligação da cor vermelha com Biden foi completamente não intencional).
O que podemos observar? Em primeiro lugar, agora em novembro (último dado de inflação disponível), de fato, a inflação da carne está bem maior que a inflação geral. Mais precisamente, 9,1 pontos percentuais maior. A inflação da carne nos últimos 12 meses foi de 16,0%, contra uma inflação geral de 6,9%. É a essa diferença que Biden se refere em sua cruzada contra os frigoríficos.
Mas continuemos a observar a tabela. Se a inflação da carne está bem maior agora, já esteve bem menor em vários momentos dos últimos 5 anos. Aliás, observando as áreas verdes, em grande parte do tempo nesse período a inflação da carne foi menor que a inflação geral. Parece que o tal “poder de mercado” dos frigoríficos só se fez presente mais recentemente. Será que houve uma concentração de mercado somente nos últimos 2 anos?
Aliás, concentração de mercado somente é problema se os competidores atuam como um cartel, determinando preços. Mas, aparentemente, não é esse o problema, para o qual, aliás, já existe lei. Grandes mercados são, via de regra, concentrados, até porque os ganhos de escala falam mais alto. O que importa é que haja competição entre as empresas, sejam elas duas, cinco ou cem. Claro que a concentração facilita o cartel. Mas, repito, para isso já existe lei.
Enfim, Biden está em seu momento de “caçador de boi no pasto”, de triste memória por aqui. Preço de carne, como o de qualquer commodity, é determinado pelo mercado global, os frigoríficos são meio que reféns. Aliás, empresas pequenas são, via de regra, menos eficientes, o que tornaria o preço da carne, no longo prazo, mais alto.
A cereja do bolo dessa história é o fato de o campeão da preservação do meio ambiente, Joe Biden, estar brigando para diminuir o preço da carne, quando deveria estar fazendo justamente o oposto para desestimular o consumo pois, como sabemos, a pecuária é uma das principais fontes do aquecimento global. Bastou que a inflação da carne batesse em sua popularidade, Biden não hesitou em escolher o lado. O que demonstra, mais uma vez, a dificuldade de implementação da agenda de combate às mudanças climáticas.
O destaque do dia foi o IPCA de outubro. Não pelo número em si, acima das expectativas, mas por uma simbologia: a inflação acumulada em 12 meses atingiu 10,67%, exatamente a inflação do fatídico ano de 2015, quando o governo Dilma soltou todos os preços represados durante o ano eleitoral anterior. Portanto, um número que evoca lembranças de um tempo que gostaríamos de esquecer.
Na verdade, o pico da inflação em 12 meses seria atingido no mês seguinte, em janeiro de 2016, com o IPCA acumulando 10,71%. Basta que a inflação de novembro fique acima de 0,93% e este recorde será batido.
No Gráfico 1, podemos observar exatamente a trajetória da inflação acumulada em 12 meses desde 1996.
A inflação de 1995 ficou acima de 22%, então tirei da série, pois ainda estávamos em meio à estabilização monetária. O recorde dessa série foi atingido em maio de 2003, quando o IPCA acumulado em 12 meses foi de 17,24%. Como já dissemos, a segunda maior inflação foi em janeiro de 2016, 10,71% e, em terceiro lugar, temos dezembro de 2015 e outubro de 2021, com 10,67%.
Vamos procurar contextualizar este número. No Gráfico 2, temos o IPCA menos o CPI (Consumer Prices Index), que é a inflação ao consumidor nos EUA, o equivalente ao IPCA.
Estudar a diferença entre esses índices de inflação nos dá uma ideia de como a inflação local está em relação ao contexto global. Podemos observar que, ao subtrair o CPI, temos uma inflação em outubro muito menor do que o pico de janeiro de 2016. Isto acontece porque hoje temos uma inflação global (e nos EUA) muito maior do que naquela época. Ou seja, uma parte da inflação local se deve à inflação global. Há fatores locais, sem dúvida, mas a inflação global joga um papel muito maior hoje do que em 2015/2016.
No Gráfico 3, podemos observar a diferença da inflação acumulada em 12 meses contra a meta de inflação do Banco Central.
Em tese, o BC deveria perseguir a meta de inflação. Desvios em relação à meta, para mais ou para menos, significam que o BC errou em sua política monetária. No gráfico, quanto maior o desvio em relação ao zero, maior o erro. As linhas pontilhadas mostram as bandas. Se o erro está dentro da banda, ok, o BC tem permissão de errar dentro das bandas. Se cair para fora, o BC precisa justificar o erro perante o governo.
O que vemos é que o erro deste ano já está maior do que o de 2015/2016. Ou seja, o BC de Roberto Campos Neto está se saindo pior do que o BC de Alexandre Tombini no controle da inflação. Ok, tivemos uma situação completamente atípica de pandemia, a inflação é um fenômeno global, etc. Mas, no número frio, este é o caso. Está ficando cada vez mais claro que aquele 2% de Selic estava fora de lugar.
Uma observação final: todas essas contextualizações têm sua beleza técnica mas, para o povo, não importa se o BC errou ou acertou, ou se o americano também está sofrendo com a inflação. No final do dia, a inflação pesa no bolso do brasileiro de qualquer jeito. E ainda não inventaram criptonita mais eficaz para acabar com popularidade de governante do que a inflação.
Você que estava com saudade de ter rendimento de 1% ao mês, seus problemas acabaram! Qualquer título prefixado está pagando acima de 12,50% ao ano! Você agora pode comprar um título que vence em 2030 e garantir mais de 1% ao mês nos próximos 8 anos!
Claro, você precisa torcer para que a inflação fique bem comportada nesse período aí. Mas claro que vai, só temos governos responsáveis, que tratam o orçamento de maneira séria. Não tem erro.
“Não podemos tirar 10 no fiscal e zero no social”. Com essas palavras, o ministro da economia enterrou a disciplina fiscal.
Imagine por um momento que o comunicado do Copom de ontem trouxesse uma frase desse tipo: “Não podemos tirar 10 na inflação e zero no social”. Já imaginou?
Estamos em um carro em que o governo está com um pé no acelerador e o BC está com o outro pé no freio. Quanto mais o governo acelera de um lado, mais o BC precisa apertar o freio do outro, caso contrário, o carro vai entrar acelerado na curva da inflação e capotar. O resultado é um carro instável na pista.
Se o BC tivesse a “consciência social” do nosso ministro da economia, não estaria acelerando a alta dos juros agora. No entanto, Campos Neto e seus companheiros de Copom sabem que o principal programa social é evitar a inflação, que é o imposto mais perverso, pois acaba com a renda dos mais pobres.
Ao abrir mão de “tirar 10” no fiscal, o governo forçou o BC a aumentar mais as taxas de juros, para “tirar 10” na inflação. No final, alguns milhares de empregos deixarão de ser criados por causa da desaceleração adicional da atividade econômica, causada pela subida adicional dos juros. Mas, tudo bem, o auxílio eleit… quer dizer, o auxílio emergencial será pago, dando uma ajuda para os pobres que nem sabem o quanto foram prejudicados para obter essa mesma ajuda. E, de quebra, vai sobrar um dinheirinho para reforçar as emendas parlamentares e o fundo eleitoral, que ninguém é de ferro.
No final de 2019, a Caixa lançou, com todo o estardalhaço característico de seu presidente, a linha de crédito imobiliário atrelado ao IPCA. Em reportagem um mês após o lançamento (abaixo), Pedro Guimarães falava entusiasmado sobre a nova linha de crédito, que reduziria a renda mínima exigida para a contratação do financiamento, permitindo que mais famílias comprassem o seu imóvel.
Lembro que, na época, Bradesco e Itaú foram reticentes em relação à nova linha. Foram lançar muitos meses depois e, mesmo assim, nunca fizeram grande esforço para emplaca-las. O Santander sequer oferece uma linha desse tipo.
Estamos vendo agora o problema de financiamentos atrelados ao IPCA: quando a inflação sobe mais do que a renda, o orçamento das famílias vai ficando cada vez mais apertado.
Na verdade, o problema do financiamento atrelado ao IPCA começa antes de a inflação aparecer. Como a prestação inicial é menor do que em financiamentos tradicionais, dá aquela sensação de que o mutuário pode comprar um imóvel maior.
Trata-se de pura ilusão, pois a prestação vai subir mais ao longo do tempo. Ao comprometer-se a pagar por um imóvel mais caro, o mutuário já parte de uma situação no limite. Basta uma surpresa inflacionária no meio do caminho para que o orçamento fique estressado.
A inflação afeta todos os itens de consumo de uma família. Se o financiamento imobiliário também se expande, vai disputar espaço no orçamento com os outros itens também se expandindo. Resultado: o orçamento explode e a inadimplência aumenta. Não é à toa que os grandes bancos privados foram muito cautelosos com essa linha. Afinal, seus acionistas não gostam de perder dinheiro. Já o presidente da Caixa tem outra agenda, uma vez que o seu acionista, a viúva, não se importa de rasgar dinheiro.
No meu livro, eu discuto sobre essas diferentes opções de crédito imobiliário.
Em um país onde o pobre devedor paga taxas de juros de três dígitos no cheque especial e no cartão de crédito, e em que as taxas de empréstimos pessoais podem atingir facilmente 50% ao ano, parece até piada alguém se preocupar com uma taxa de 2%, 4% ou 6% ao ano. Ninguém consegue tomar empréstimo nessa taxa de juros. Então, por que se preocupar? Mais do que isso: pra que serve essa taxa, se os bancos acabam cobrando taxas de juros exorbitantes, independentemente do nível da taxa Selic?
O leme do navio
Já notou como a direção de um navio do tamanho de um transatlântico ou de um petroleiro é determinado por um leme muito menor do que o próprio navio?
Esta é a característica da taxa Selic: apesar de pequena, é ela que define a direção do grande navio da economia. A taxa Selic, que é usada pelo Banco Central para remunerar o caixa dos bancos, é o instrumento usado pelo BC para controlar a inflação. Vamos ver como isso funciona.
As correias de transmissão da economia
Apesar de termos usado a figura do leme inicialmente, a melhor ilustração de como a Selic trabalha é através das correias de transmissão.
A Selic é o motor, e transmite o seu movimento para as diversas partes da economia através de correias de transmissão. São cinco essas correias: taxa de juros, taxa de câmbio, crédito, preços dos ativos e expectativas de inflação. Vejamos como cada uma delas transmite a força da Selic, com o objetivo de diminuir a inflação.
Taxa de juros
Aqui, trata-se da remuneração do capital investido. Um empresário, ao tomar uma decisão de investimento, olha para o rendimento dos títulos públicos e pensa: “huuum, será que vale a pena investir nesse projeto ou pegar o dinheiro e comprar títulos públicos?” O mesmo raciocínio faz o investidor em ações ou em qualquer outra coisa que não sejam os títulos públicos.
A remuneração dos títulos públicos depende, em grande parte, do nível da taxa Selic. Mesmo os títulos prefixados têm como referência a taxa básica de juros. É o que chamamos de “curva de juros”. No gráfico abaixo, podemos ver a curva de juros em dois dias diferentes: em 17/03/2021, último dia em que a Selic estava em 2% (lembra?), e em 09/08/2021, momento em que começo a escrever este artigo.
Observe como a taxa Selic subiu de 2% para 5,25% entre essas duas datas, levando a remuneração dos títulos públicos toda para cima. A taxa Selic serve como uma referência para a remuneração de todos esses títulos, definindo o que chamamos, em investimentos, de “custo de oportunidade” para os investidores. Quanto maior a taxa Selic, melhor será a remuneração dos títulos públicos e menos atrativos serão os investimentos produtivos, diminuindo a atividade econômica e, consequentemente, a inflação.
Taxa de câmbio
A taxa de câmbio influencia a inflação através dos preços dos produtos importados. E temos uma parte relevante dos produtos que compramos com ao menos um componente importado, ou mesmo que depende de algum serviço importado. Então, se a nossa moeda, o real, se valoriza em relação ao dólar, fica mais barato comprar coisas do exterior, diminuindo a inflação. Se, pelo contrário, o real se desvaloriza em relação ao dólar, as coisas importadas ficam mais caras.
E como a taxa Selic influencia a taxa de câmbio? Simples: quanto maior a taxa de juros, maior a atração por capitais externos. Estes dólares, para entrarem no país, precisam ser trocados por reais. Então, temos uma busca por reais, que se valorizam em relação ao dólar. E, como vimos, se o real se valoriza, as coisas importadas ficam mais baratas, diminuindo a inflação.
Por outro lado, se a taxa Selic fica mais baixa, os investimentos locais perdem a atratividade. Os dólares, então, saem do país. Para isso, é preciso vender reais para comprar dólares. A venda de reais faz com que a nossa moeda se desvalorize. E, como vimos, quando o real se desvaloriza, os produtos importados ficam mais caros, pressionando a inflação para cima. É assim que a taxa Selic influencia a inflação via a taxa de câmbio.
O esquema abaixo resume o que falamos:
Crédito
O canal do crédito é o mais conhecido: afinal, quanto maior a taxa de juros, menor a chance de alguém querer tomar um empréstimo, o que diminui o consumo e, por consequência, a inflação.
No entanto, como dissemos no início desse artigo, as taxas de juros cobradas são tão altas, mas tão altas, que não parece que um aumento de alguns pontos percentuais na taxa Selic possa fazer grande diferença.
Isso é tão mais verdade quanto maior for o custo do empréstimo e tão menos verdade quanto menor for o custo do empréstimo. Por exemplo, as grandes empresas podem contar com taxas de juros muito menores do que nós, pobres mortais. Para elas, uma taxa Selic maior faz sim diferença no momento de tomar um empréstimo. O financiamento imobiliário é outro tipo de crédito que tem uma grande influência da taxa Selic: por ser uma taxa de juros relativamente baixa, costuma acompanhar a Selic de perto. E, quando as taxas do financiamento imobiliário sobem, fica mais difícil vender imóveis, desacelerando este setor da economia.
Então, a taxa Selic vai tanto mais influenciar o crédito quanto mais existirem modalidades de empréstimo que são sensíveis à taxa básica de juros. Como vimos, taxas do cheque especial ou do cartão de crédito são pouco sensíveis. Portanto, as pessoas não vão deixar de tomar esses empréstimos porque a taxa Selic subiu. O mesmo ocorre com certas linhas de crédito subsidiadas do BNDES, em que a taxa não acompanha a Selic. Neste caso, o canal do crédito está entupido, a mudança da taxa Selic não tem o efeito pretendido. O resultado é que mudanças na taxa básica de juros vão influenciar uma porção menor do mercado de crédito e, portanto, será necessário subir mais a taxa Selic do que seria preciso se todo o mercado de crédito dependesse da taxa básica de juros.
Preço dos ativos
Quando a taxa Selic sobe, os preços dos títulos de renda fixa prefixada caem, pelo efeito da marcação a mercado. Os preços das ações na bolsa tendem também a sofrer, porque o custo de capital das empresas fica mais caro. Enfim, de um modo ou de outro, os detentores desses ativos ficam mais pobres. Este é o chamado “efeito riqueza”, que seria mais bem denominado se recebesse o nome de “efeito pobreza”. Ficando mais pobres, esses detentores têm menos propensão ao consumo, desacelerando a atividade econômica e a inflação.
No polo oposto, se a taxa Selic cai, os ativos se valorizam, criando uma sensação de riqueza para os seus detentores, que se animam a gastar mais, impulsionando a atividade econômica e a inflação.
É assim que os “preços dos ativos” servem como canal de transmissão da política monetária para a atividade econômica.
Expectativas de inflação
Por fim, o quinto canal de transmissão da política monetária são as próprias expectativas para a inflação futura. Quando a taxa Selic sobe, os agentes econômicos já projetam uma desaceleração da atividade econômica através dos quatro canais vistos acima. Essa projeção atua sobre a própria inflação presente. Esta é a mágica do sistema de metas de inflação.
O Sistema de Metas de Inflação
No início, era o caos. A inflação no Brasil era um pesadelo sem fim, e as pessoas não sabiam realmente o que estava acontecendo. Ou melhor, sabiam, mas olhavam para o outro lado. Tentavam controlar os preços como quem quebra o termômetro para debelar uma febre. Os planos de congelamento de preços se sucediam, e a inflação sempre voltava com mais força depois que os preços eram liberados.
Até que, finalmente, chegou o Plano Real. Como que por mágica, a inflação desapareceu. A mágica, no entanto, era manjada: atrelar a moeda local ao dólar, uma moeda que sofre bem menos com a inflação. Não era esse o plano inicial, mas passou a ser depois da crise do México, no início de 1995. O Banco Central administrava o câmbio, permitindo desvalorizações controladas, de modo a não impactar a inflação. Funcionou até acabarem as reservas internacionais. No início de 1999, o real não suportou o ataque especulativo e o governo foi obrigado a deixar a moeda flutuar. E agora, o que fazer?
Foi então que se criou o arcabouço que vigora até hoje: o sistema de metas de inflação. Esse sistema, que já havia sido implementado com sucesso em países como Reino Unido, Suécia e Nova Zelândia, parte do pressuposto de que a inflação é um fenômeno a um só tempo monetário e psicológico. Monetário porque quanto mais moeda disponível na economia sem lastro em produção, maior será a inflação. E psicológico (ou de expectativas), porque os agentes econômicos tendem a perpetuar movimentos de aumentos de preços com base em suas expectativas de inflação futura.
A âncora da inflação no sistema de metas é a confiança no Banco Central. O instrumento é a taxa básica de juros, que afeta a inflação através dos cinco canais vistos acima. O Banco Central, através da determinação da taxa Selic, e da sua própria comunicação com o mercado, influencia as expectativas dos agentes econômicos em relação à inflação futura. Se o Banco Central é crível, ou seja, se constrói uma reputação de combate à inflação ao longo dos anos, não precisará subir tanto a Selic para mostrar a sua intenção e convencer os agentes econômicos. E, vice-versa, se o Banco Central constrói uma reputação de leniência em relação à inflação, fica muito mais caro combatê-la, pois, no final, será preciso subir a taxa básica de juros muito mais do que seria necessário se o BC fosse crível.
Claro que tudo isso funciona se o risco associado à dívida pública não explode na cara do BC. Neste caso, a taxa de juros exigida pelos credores da dívida sobe muito, o que não tem nada a ver com a inflação. Ou melhor, acaba tendo, pois excesso de dívida pública provoca inflação, no fim do dia. O BC controla aquela inflação cíclica, causada pelos ciclos próprios da atividade econômica. Uma inflação estrutural, causada pelo excesso de gastos do governo, não tem Banco Central que dê jeito.
O sistema de metas de inflação, em conjunto com uma série de reformas que nos permitiram tornar crível o controle da dívida pública, nos brindou com o mais longevo período de inflação baixa da história do Brasil contemporâneo.
Breve histórico da inflação no Brasil
Para medir a inflação brasileira, vamos usar o índice de inflação da cidade de São Paulo calculada pela FIPE, que possui histórico desde 1940. Antes disso, não há medidas confiáveis de inflação.
Na tabela abaixo, vamos listar todas as moedas desde o cruzeiro, criado por Getúlio Vargas em novembro de 1942. Consideraremos uma nova moeda somente quando tenha havido uma reforma monetária que cortou zeros. Nesta tabela, listamos as moedas, seu tempo de vida, a inflação anual média durante esse período e a inflação acumulada, também no período de vida da moeda.
Moeda
Início
Fim
Duração
Inflação anual média
Inflação acumulada
Cruzeiro
Nov/42
Jan/67
24 anos e 3 meses
28,4%
40.275%
Cruzeiro Novo
Fev/67
Fev/86
19 anos e 1 mês
55,5%
599.006%
Cruzado
Mar/86
Jan/89
2 anos e 11 meses
351%
7.974%
Cruzado Novo
Fev/89
Mar/90
1 ano e 2 meses
3.735%
6.942%
Cruzeiro
Abr/90
Jul/93
3 anos e 4 meses
754%
127.144%
Cruzeiro Real
Ago/93
Jun/94
11 meses
5.531%
3.924%
Real
Jul/94
Jul/21
27 anos e 1 mês (and counting…)
6,7%
481%
Salta aos olhos a imensa diferença entre o Real e as outras moedas. O sistema de metas de inflação e a disciplina fiscal foram os responsáveis por esse pequeno milagre. Espero, sinceramente, que saibamos, como sociedade, preservar essa grande conquista.
Estava hoje ouvindo a rádio CBN no carro, quando começa uma reportagem sobre a inflação na cidade de São Paulo. Como sabemos, a inflação está salgada e é um dos principais assuntos da economia brasileira no momento. Após dar a notícia, a âncora do programa chama um convidado para comentar. Quase causei um acidente de trânsito quando ouvi o nome do convidado: o professor da Unicamp, Marcio Pochmann.
Para quem não conhece, Pochmann é um dos luminares da Unicamp que orientaram a política econômica da era Dilma, chefiando o IPEA. Depois de tudo o que aconteceu, é estupefaciente que pessoas como Pochmann ainda tenham voz na mídia brasileira.
Mas o mais curioso foi a entrevista em si. A jornalista tinha uma agenda e o entrevistado tinha outra completamente diferente. Enquanto o objetivo da matéria era comentar o impacto da inflação no dia a dia do cidadão, Pochmann aproveitava todas as perguntas para criticar o governo. Parecia conversa de bêbado com delegado.
Não importa muito as perguntas. As respostas foram mais ou menos na seguinte linha: a inflação está alta porque o governo liberou os preços dos combustíveis e da energia elétrica, e agora está aumentando a taxa de juros, o que vai levar o país à recessão.
Pois foi justamente o governo Dilma que segurou artificialmente os preços dos combustíveis e da energia elétrica e, depois de algum tempo, teve que liberar tudo de uma vez, causando uma grande inflação represada. No caminho, quebrou a Petrobras e o setor elétrico, que estão pagando as contas até hoje. Para terminar a obra, o Banco Central foi leniente com a inflação, segurando a taxa de juros em níveis artificialmente baixos, provocando uma inflação constantemente acima da meta.
Agora, um dos mentores desse maravilhoso programa econômico vem ditar (para não usar outra palavra, mais grosseira) regras sobre como baixar a inflação. É de lascar.
Obrigado CBN, por me recordar porque mesmo não votei no PT em 2018.
A coluna de Alex Ribeiro, ontem, no Valor, traz a visão do ex-diretor do Banco Central, Sérgio Werlang, a respeito da meta de inflação de 3%. Segundo Werlang, esta meta seria muito baixa, incompatível com o problema fiscal brasileiro. Outros países emergentes, que adotam a mesma meta, não teriam o nosso nível de dívida e déficit, e uma inflação mais alta seria a maneira de “queimar” essa dívida. Na verdade, Werlang fala explicitamente em reduzir os salários dos funcionários públicos via inflação, uma vez que é constitucionalmente ilegal reduzir salários no Brasil.
Bem, esse raciocínio está errado de três maneiras.
A primeira e mais óbvia é encontrar o nível de inflação que seja suficiente para sustentar o nosso déficit. Afinal, por que, digamos, 4,5% seria uma inflação melhor do que 3%? Por que não 6% ou 10%? Werlang acusa o governo de ter reduzido a meta de inflação sem mostrar um estudo convincente sobre a adequação da meta. Pergunto: onde está o estudo que demonstra o nível “ótimo” de inflação no Brasil?
Pra falar a verdade, esse nível é até fácil de calcular. Tudo o mais constante, se o déficit hoje é de 2% do PIB e precisamos gerar um superávit de 1% para estabilizar a dívida, uma inflação de 3% resolveria o problema, desde que todos os gastos do governo permaneçam congelados.
Aí é que está o problema, e que nos leva à segunda falha no raciocínio. A inflação resolve o problema do déficit no primeiro momento. Como se trata de um jogo continuo, os agentes econômicos (funcionários públicos incluídos) aprendem e exigem a reposição da inflação em seus ganhos no momento seguinte. Assim, seja a inflação de 3%, 4,5%, 10% ou 100%, se permanecer constante neste nível, já não tem efeito sobre a dívida pública, pois os gastos do governo acompanham a inflação.
Qual o truque então? Produzir surpresas inflacionárias. Uma inflação que os agentes econômicos não estavam esperando. Assim, o que queima dívida pública de maneira permanente não é a inflação, mas uma sucessão de surpresas inflacionárias.
Poderíamos recordar os tempos da hiperinflação brasileira para ilustrar o ponto. Naquele tempo, a inflação não só era altíssima, como dava saltos de tempos em tempos. Era a única forma de queimar o déficit público. Mas não precisamos ir tão longe. A gestão de Tombini frente ao BC nos deu um exemplo mais próximo de como isso funciona. Na época, a meta de inflação era de 4,5%, a qual, segundo Werlang, seria mais adequada para um país como o Brasil. No entanto, a condução leniente da política monetária fez com que a inflação ficasse constantemente acima da meta, sempre próxima do teto de 6,5%. No início, quando o BC tinha alguma credibilidade, o truque funcionou. Inflações mais altas eram verdadeiras surpresas em relação à meta que supostamente estava sendo perseguida pelo BC. Com o tempo e a repetição do jogo, os agentes aprenderam que aquela meta era fake e ajustaram as suas expectativas para cima. Resultado? Foi necessária uma inflação ainda mais alta para surpreender os agentes. Em determinado momento, a inflação explodiu na cara de todo mundo, ultrapassando de longe o teto da meta. Esta é a lógica do jogo, independentemente da meta de inflação.
Portanto, o nível da meta pouco importa. Se o problema da dívida e do déficit públicos não forem resolvidos, qualquer inflação será sempre insuficiente. Aliás, causa-me espécie que economistas bem formados ainda advoguem pela inflação como “solução” para o déficit público. Inflação não é solução para nada, é apenas a febre que indica a presença de uma infecção.
Isto nos leva à terceira falha no raciocínio. A surpresa inflacionária não somente “queima” déficit público. Ela serve também para desorganizar a vida da sociedade e dificultar investimentos, prejudicando o crescimento econômico no longo prazo. Muitas pessoas pensam que um pouco mais de inflação é justificável para manter o crescimento econômico e a criação de empregos. Apesar de esta relação ser verdadeira no curto prazo (são os ciclos econômicos), no longo prazo o controle da inflação permite um crescimento maior e mais estável.
E não custa lembrar que a inflação é o mais pernicioso dos impostos, tributando os mais pobres (que não têm como se defender) para transferir recursos que financiam o déficit do governo. O controle do déficit público que permite uma inflação mais baixa ao longo do tempo é o programa mais potente de distribuição de renda. O resto é populismo barato (ou caro).
Vou ao mesmo supermercado todo sábado pela manhã, fazer as compras da semana. Como sou habitué, acabo fazendo amizade com os atendentes.
Há um senhor que pesa os produtos hortifruti (é um atacarejo, não tem balança no caixa). Nos poucos minutos em que interagimos, enquanto pesa os produtos, ele sempre tem algum assunto. Pode ser uma doença, alguma coisa que aconteceu no supermercado ou alguma oferta que eu não posso perder de jeito nenhum. Hoje, ele me perguntou: “você não acha que as coisas estão muito caras?”
Respondi de maneira protocolar (eu sempre respondo de maneira protocolar, não sou muito bom de fazer amizades. Acho que por isso que os estranhos gostam de conversar comigo, não falo nada, só escuto).
Ele continuou: “eu tenho três gatos. No ano passado, achei um preço bom, e comprei ração pra eles. Paguei R$0,99. Essa semana acabou o estoque que eu tinha comprado. Fui na loja e estava R$2,40! Triplicou o preço!”
Concordei, ainda que 2,40 não seja o triplo de 0,99. Mas isso é um detalhe, o ponto é que a ração dos gatos subiu muito, e o senhor sentiu no bolso a coisa.
Em um momento em que a Selic está subindo justamente para controlar a inflação, é bom que este governo tenha em mente uma verdade que desconhece cores ideológicas: desemprego é muito ruim, taxa de juros alta não é bom, mas é a inflação que derruba governos.