Ainda não havia comentado sobre a indicação de Lula para a vaga no Supremo Tribunal Federal. Demorei porque não poderia ser ligeiro e leviano ao comentar uma indicação de tamanha importância. Trata-se, afinal, de uma das 11 vagas no Tribunal mais importante do país, aquele que tem a última palavra, e diante do qual os outros dois poderes baixam a cabeça. Dizem, assim deve acontecer em um país onde as instituições funcionam.
Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que não tenho envergadura intelectual para tecer comentários. A excelsa Corte do país é algo que está muito acima de minha limitada compreensão, de modo que preferi ouvir pessoas doutas e capazes a respeito do assunto. Nada melhor do que começar por aqueles que fizeram por merecer uma daquelas 11 vagas no Olimpo, os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal.
O ilustríssimo ministro Luis Roberto Barroso, por exemplo, afirmou: “É um advogado que desempenhou de forma admirável o seu trabalho quando tudo parecia perdido. Não se pode penalizar alguém por ter trabalho bem”. E completou: “Não vejo, se vier a ser o Cristiano Zanin, nenhum conflito ético, nem moral, nem de violação da impessoalidade”.
Já o excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, saudou a escolha: “É alvissareira a notícia de que o nome do brilhante advogado Cristiano Zanin foi encaminhado à apreciação do Senado Federal. O Dr. Zanin sempre demonstrou elevado tirocínio jurídico em sua trajetória profissional”.
O magnificente agora ex-juiz Ricardo Lewandowski, que não perdeu a sua excelência pelo fato de ter se aposentado, pontuou: “Cristiano Zanin é um experiente e combativo advogado que preenche todos os requisitos constitucionais para ocupar uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Será, com certeza, um magistrado competente e imparcial.”
Tão doutas opiniões certamente precisam ser consideradas. Mas é o Senado o Poder constitucionalmente responsável pela aprovação do nome indicado pelo presidente da República. Os senadores, cônscios de seu dever, certamente serão duros e austeros em sua sabatina, de modo que aos brasileiros não reste dúvida, uma vez aprovado o nome, de que se trata da escolha correta e perfeita.
Com o tirocínio do presidente da República, que indicou o nome, as opiniões favoráveis dos ilibados magistrados do Supremo Tribunal Federal, e a aprovação dos Senadores da República, podemos estar certos e convencidos e tranquilos de que o nome de Cristiano Zanin é o ideal para ocupar a vaga na Suprema Corte do País. Descansem, pois, os espíritos timoratos, pois as instituições do País estão funcionando na mais perfeita ordem. Se Cristiano Zanin chegar lá, será porque é o melhor para nós, brasileiros.
Reza a lenda que Brasília foi construída para isolar os políticos de protestos populares. Verdadeiro ou não, esse “objetivo” foi cumprido relativamente bem até o dia 17/06/2013, quando populares ocuparam a parte externa do Congresso Nacional. Ontem, novamente as sedes dos três poderes foram ocupadas por populares. Os dois eventos, separados por quase 10 anos, guardam semelhança em alguns aspectos, mas são profundamente diferentes em outros.
Os protestos de 2013 pegaram o mundo político e, porque não dizer, os próprios manifestantes, de surpresa. Sem liderança ou pauta definida, os protestos manifestavam uma espécie de “malaise” em relação ao governo de turno e à classe política em geral. O que começara com grupelhos de esquerda protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, foi engolfado por multidões protestando contra “tudo isso que está aí”. Atordoados, os políticos começaram a prometer tudo para todos, até que as manifestações voltaram ao nada de onde surgiram, e tudo voltou como dantes no quartel de abrantes. Isso é normalmente o que acontece com movimentos sem objetivos claros e, principalmente, lideranças hábeis. A Revolução Francesa só funcionou porque tinha um Robespierre com um plano de ação para o dia seguinte.
Os protestos de 2023 (e aqui incluo os acampamentos em frente aos quartéis e o quebra-quebra de ontem) também surgiram “contra o sistema”. A semelhança com 2013, além da foto de populares no telhado do Congresso, acaba aqui. Ao contrário de 2013, havia um objetivo claro e uma liderança definida, ainda que oculta. O objetivo era pedir e apoiar um golpe militar que reconduzisse ao poder o líder oculto do movimento, Jair Bolsonaro. Antes de continuar, vamos tentar construir a ponte que liga esses dois eventos separados por 10 anos.
Havia, como dissemos, um mal-estar generalizado contra a classe política. Este mal-estar só fez aumentar e explodir com as revelações da operação Lava-Jato. O movimento pró-impeachment de 2015/2016 foi uma extensão dos protestos de 2013 e, a seu exemplo, apartidário. Nesse movimento, havia uma minoria que pedia um golpe militar. Eram caminhões de som menores, que ficavam na periferia das manifestações. O núcleo do movimento, formado por grupos como o MBL e o Vem Pra Rua, defendia uma saída institucional, o que acabou ocorrendo. Mas os grupos golpistas estavam sempre ali, como relíquias de um passado distante.
O caráter apartidário desses movimentos era o sinal evidente de que qualquer político que se mostrasse desvinculado do sistema tinha grande chance de sucesso. Bolsonaro levantou essa bandeira com rara habilidade, encarnando os ideais dessa espécie de “limpeza” das instituições. O seu anti-petismo, na verdade, era um anti-sistema. Notem que a ojeriza dos bolsonaristas nunca se limitou ao PT. O PSDB sempre foi “o parceiro do PT”, o centrão só se movia por dinheiro, o STF só tinha bandidos, os governadores eram sabotadores. Nada prestava, a não ser Bolsonaro.
Jair Bolsonaro, portanto, foi o underdog que, como herói improvável, apareceu como o líder daquela franja golpista que mal aparecia nas manifestações pelo impeachment. Tendo uma parcela firme, ainda que minoritária, do eleitorado a seu lado, a lei da polarização fez com que Bolsonaro obtivesse o apoio de outras parcelas da população que não comungavam de suas convicções anti-sistema. Uma minoria, assim, tornou-se uma maioria, e ele foi eleito em 2018 e perdeu por pouco em 2022.
Chegamos, então, a janeiro de 2023. Bolsonaro perdeu as eleições e aquela franja se reuniu na frente dos quartéis, pedindo um golpe militar. E ontem, enfim, partiu para as vias de fato, uma alegoria perfeita da retórica anti-sistema. Cada parte do patrimônio público depredado é expressão física desse discurso.
Obviamente, as instituições brasileiras estão doentes. As manifestações de 2013 e a ascensão de um sujeito como Bolsonaro indicam alguma falha no sistema. No entanto, também é óbvio que qualquer “solução” por fora do sistema tem chance zero de prosperar. Quando muito, eventos como o de ontem só servem para deixar claro a que ponto pode chegar o discurso anti-sistema, o que somente fortalece o mesmo sistema, o contrário do objetivo declarado das manifestações.
Por fim, há um líder inconteste do ocorrido. Por omissão e abuso de mensagens dúbias, o ex-presidente levou essa franja golpista a acreditar que algo poderia acontecer. Na medida em que foi ficando claro que nada aconteceria, só restou o ato de desespero que testemunhamos ontem. Bolsonaro foi o político que empunhou a bandeira anti-sistema, e sua retórica se materializou na depredação de ontem. Ele é o responsável último, senão juridicamente, pelo menos, politicamente.
Mas, não nos iludamos, prender Bolsonaro e os responsáveis pela depredação de ontem não irá pacificar o país. É preciso entender o que gerou esse fenômeno. Caso contrário, estaremos fadados a repeti-lo.
Por óbvio não conheço detalhes, e tudo que vou escrever a seguir se baseia na minha percepção das coisas, mas, ao que parece, o presidente (agora ex) do Peru, Pedro Castillo, foi vítima da ilusão do apoio do “povo”. Contando com o “povo” para se manter no poder, Castillo tentou uma cartada, frustrada em poucas horas.
Em uma sociedade minimamente organizada, o que manda são as “instituições”. O “povo” não passa de uma massa amorfa, desorganizada, incapaz de impor a sua vontade. Mesmo porque, a “vontade” do povo é, como o próprio, amorfa. São as instituições que dão estrutura à vontade do povo. Se elas funcionam bem, se são inclusivas ou extrativistas, se estão capturadas por interesse privados, isso é outro problema. O ponto central é que são as instituições a instância onde se resolvem as coisas na arena política.
Nas ditaduras pessoais, as instituições se confundem com uma pessoa. No entanto, mesmo nesse caso, o ditador precisa se mostrar hábil para se manter no poder. Afinal, trata-se apenas de um único homem, que domina as instituições do país com sua maneira de equilibrar os pratos e satisfazer ou aterrorizar pretendentes ao poder.
Em uma democracia, a mesma coisa. O detentor do poder mantém-se na medida em que consegue equilibrar os pratos. O poder é limitado pelas instituições. Muitos acham, por exemplo, que o impeachment de Dilma só ocorreu porque Eduardo Cunha assim o quis, ou que um processo de impeachment de Bolsonaro só não ocorreu porque Rodrigo Maia e, depois, Arthur Lira, não quiseram. Ledo engano. O presidente do Congresso, de fato, tem a caneta. Mas é subordinado aos interesses da Casa que preside. Cabe ao presidente do Congresso medir a temperatura e dançar conforme a música. É a instituição, no fim do dia, que manda.
Muitos esperavam (e ainda esperam) que a força do “povo” fosse suficiente para que Bolsonaro se mantivesse no poder, desafiando as instituições. Se tentasse, aposto que seu destino seria o mesmo que o de Castillo. O ”povo” na rua tem alguma influência sobre as instituições, sem dúvida. Mas os que detém o poder dentro das instituições sabem distinguir entre uma verdadeira revolta popular e um amontoado de devotos de um político.
Conta a história que um diplomata francês e o ditador da União Soviética, Josef Stálin, estavam em uma reunião antes do início da guerra, onde discutiam um pacto de não agressão. Depois de ter desfiado todas as vantagens do pacto para a União Soviética, o diplomata achou por bem jogar mais uma carta na mesa: o Vaticano veria com bons olhos aquele acordo, e Stálin poderia contar com a boa vontade do Papa. No que Stálin respondeu com a frase que ficaria famosa, e que serve até hoje para descrever as relações de poder: “quantas divisões tem o Papa?”
No Brasil do século XXI, alguém poderia perguntar: “quantas divisões tem o STF?” Stálin vivia em um mundo e em um contexto político em que o número de soldados e armas era a medida do poder. O STF, por outro lado, só tem ao seu lado o arranjo institucional brasileiro. E este arranjo é mais forte do que a força das armas.
Bolsonaristas passam as horas e os dias acampados em frente aos quartéis, clamando por uma “intervenção militar”, eufemismo para golpe. Os militares têm à sua disposição muitas divisões. O que os impede de “resolver” a questão? Simples: as “divisões” que importam estão nas mãos do STF. Engana-se quem acha que o golpe de 64 foi realizada pelos militares. A sociedade civil, a opinião pública e a grande maioria dos agentes políticos queria se livrar de Jango. Os militares apenas operacionalizaram o processo. Foram as instituições brasileiras que expeliram Jango, não os militares.
Hoje, qualquer movimento militar seria recebido com absoluta resistência por parte das principais instituições do país e por parte relevante da opinião pública. O dia seguinte ao movimento seria recebido por uma resistência política fenomenal e pelo não reconhecimento do novo governo por parte de nossos principais parceiros. Viraríamos um pária internacional.
Alguém já disse que a guerra é a diplomacia por outros meios. Quando as instituições falham, a força bruta (o número de divisões) passa a fazer o papel da lei. No Brasil de hoje, as instituições estão firmes e fortes. Podemos não concordar com suas decisões ou seu modus operandi. Podemos, inclusive, achar que essas instituições estão levando o Brasil para o buraco. O que não podemos fazer é ignorar que elas existem. O STF, afinal, conta sim com muitas divisões.
Relatório do Instituo Voto Legal, contratado pelo PL para auditar o sistema eleitoral, aponta uma série de falhas. Li o relatório na íntegra. Parece-me bem fraco. A quase totalidade refere-se a achados da própria auditoria interna do TSE, já reportados ao TCU e, por suposto, já endereçados. Mas isso é o que menos importa. Um relatório desses, tornado público a meros 4 dias do 1o turno, pode ter qualquer objetivo, menos técnico. O mais provável é que, vendo a vaca já atolada no brejo, Bolsonaro resolveu definitivamente usar a carta da fraude. Funcionará?
Depende do que entendamos por “funcionar”. Se o objetivo for criar tumulto, sim, provavelmente funcionará. Por outro lado, se o objetivo for manter-se no poder em 2023, as chances são mínimas.
Antes de continuar, farei referência a um vídeo que vem circulando esses dias, mostrando uma fala do jornalista Gerson Camarotti, da Globo News, em que este dizia que Bolsonaro estava sozinho, abandonado, em seu périplo pelo Nordeste. O vídeo corta a fala do jornalista na palavra “sozinho”, e mostra multidões acompanhando os comícios do candidato em Petrolina e Juazeiro, em uma aparente contradição. A questão é que Camarotti estava se referindo aos políticos da região, aqueles que, bem ou mal, decidem sobre as leis e a execução das leis no país. Bolsonaro havia sido abandonado pelo “poder”, mas não pelo “povo”.
Voltemos. Em editorial de hoje, o Estadão toca no ponto fundamental desse imbróglio: Bolsonaro está sozinho. A não ser pelos seus seguidores mais fiéis, que ele chama de “povo” (todo político gosta de confundir “povo” com aqueles que o apoiam), Bolsonaro não tem o apoio de mais ninguém. Nenhuma instituição relevante da República (incluindo as Forças Armadas) embarcaria em uma aventura desse tipo.
O “povo” sem as instituições só consegue produzir cenas patéticas, como a invasão do Capitólio. Chegando lá, o “povo” fica perdido, sem saber o que fazer ou como se organizar. O corpo político, para o bem ou para o mal, forma a liderança institucional de qualquer movimento. Sem essa liderança, temos uma agitação caótica que termina no nada.
Portanto, se Bolsonaro tentar um movimento desse tipo, o mais provável é que termine preso, por atentar contra as “instituições democráticas”, que estarão, todas, contra ele. E o “povo” voltará para casa, curtindo o seu luto, e esperando 2026 para voltar às urnas. Não estou aqui fazendo juízo de valor, estou apenas descrevendo o que vai acontecer. Quem espera algo diferente disso, seria bom rever suas expectativas.
No dia 16/03/2016, o juiz Sérgio Moro levantou o sigilo do grampo no telefone do ex-presidente Lula. Era início de noite, e a Globo News deu o furo de reportagem: Dilma havia prometido enviar o “Bessias” com o termo de posse para evitar a prisão de Lula.
Assisti à curta matéria no escritório, já de saída. Intuindo que aquilo era a gota d’água para a questão do impeachment, decidi ir até a Paulista para sentir o clima. Não havia nenhuma convocação especial, mas a Paulista estava lotada. Uma manifestação espontânea daquele tamanho era tão significativa quanto a manifestação monstro que havia ocorrido três dias antes nas principais cidades brasileiras, mas que tinham sido preparadas cuidadosamente. Naquela quarta não, as pessoas estavam ali simplesmente porque pressentiam o momento da história.
Mas, para mim, o mais significativo daquela noite ainda estava por ocorrer. Encontrava-me em frente ao prédio da FIESP, quando, de repente, a fachada do prédio se iluminou com as cores verde e amarela, cruzada com uma faixa preta com a palavra “IMPEACHMENT” inscrita. Naquele momento, entendi que o jogo estava perdido para Dilma Rousseff.
Voltemos um pouco mais no tempo. Quem tem acesso aos jornais da época, sabe que o golpe de 1964 foi apoiado por todas as forças civis relevantes do país. Empresários, grande imprensa, políticos das mais diversas tendências (de Juscelino a Lacerda) se uniram contra a baderna prometida por Jango. As Forças Armadas se juntaram a um movimento que já existia na sociedade civil.
Voltando a 2016, aquele “IMPEACHMENT” inscrito na fachada da FIESP traduzia o sentimento do grande capital, que precisa de condições mínimas de governabilidade para fazer negócios. Condições essas que Dilma já havia perdido há algum tempo.
E chegamos em 2022. A FIESP e a Febraban assinam um manifesto emprestando solideriedade ao STF, ao TSE e ao processo eleitoral brasileiro.
Assim como em 1964 e 2016, o grande capital se coloca ao lado da estabilidade das instituições, condição sine qua non para fazer negócios. Pouco importa se também assinam o manifesto os suspeitos de sempre, como CUT ou OAB. A FIESP não assinou manifestos #elenao em 2018, mas decidiu assinar este. A sua assinatura neste manifesto equivale ao “IMPEACHMENT” na fachada do seu prédio. Assim como Dilma estava sozinha com os petistas, Bolsonaro está sozinho com seus seguidores.
Como último esclarecimento: a análise acima não pretende ser um veredito moral, sobre o que é certo ou errado. Trata-se apenas de uma leitura das forças que estão em jogo. Como disse Rodrigo Pacheco ontem, no dia 1o de janeiro de 2023, o Congresso Nacional dará posse ao presidente eleito nas urnas eletrônicas. A assinatura da FIESP a este manifesto não deixa margem a dúvidas quanto a isso.
O Brazil Journal publicou uma entrevista com Guilherme Aché, fundador da Squadra, uma gestora de fundos de ações. Aché ficou famoso por levar o IRB às cordas, ao denunciar a manipulação de seus balanços. É um típico representante da famosa “Faria Lima”, o tal do mercado financeiro.
Abaixo vão dois trechos de sua entrevista. Certamente ele não notou a profunda contradição entre os dois.
No primeiro, ele lamenta que o investidor estrangeiro não esteja nem um pouco interessado na bolsa brasileira. Um desses investidores cita o clássico Why The Nations Fail para ilustrar o Brasil. E o que diz o livro? Basicamente, que as nações atingem diferentes graus de desenvolvimento porque algumas têm instituições que funcionam e outras não. O desenvolvimento não depende das “riquezas naturais” ou de um povo que “trabalha duro”. A riqueza das nações é função de instituições, tais como uma justiça que funciona para todos e respeito aos contratos e à propriedade privada. O que este estrangeiro quis dizer é que o Brasil, com suas instituições falhas, não vai chegar a lugar algum.
Vejamos agora o segundo trecho. De acordo com o gestor, Lula vai caminhar para o centro, vai escolher pessoas como Marcos Lisboa e Paulo Hartung para assessora-lo, e vai trazer o mercado para o lado dele. Com isso, a bolsa vai subir.
Não vou aqui entrar no mérito da probabilidade de isso, de fato, acontecer. E, se acontecer, é bem provável que o mercado se jogue no colo de Lula e a bolsa suba. Meu ponto é outro.
Há uma contradição em termos entre os dois trechos. O Brasil é visto pelo estrangeiro como um país não sério justamente porque esse é o país do “jeitinho” e do “sabe com quem está falando”. Em qualquer país sério (com instituições que funcionam) um partido como o PT já teria sido proscrito depois do mensalão e do petrolão. Não só isso não aconteceu, como Lula, que estaria preso em qualquer país com instituições funcionando, é favorito para ganhar as próximas eleições.
E nem acho que o problema seja este ou aquele ministro do STF, ou este ou aquele político. O ponto é que Lula conta com o apoio de quase 50% dos brasileiros, o que demonstra que nossas instituições são a cara do nosso povo e das nossas elites. Os operadores são contingenciais. Estes vão sair e entrarão outros. Mas as instituições permanecerão as mesmas.
O fato de um autêntico “farialimer” nem notar a contradição entre uma candidatura Lula e um país levado a sério pelos investidores estrangeiros só demonstra o buraco em que nos encontramos.
O ex-presidente da Braskem foi condenado nos EUA. Terá que passar quase 2 anos no xilindró, e ainda pagar multa milionária. Sem direito a embargos infringentes dos embargos de declaração na enésima instância da justiça.
Enquanto o executivo encontrava-se no Brasil, nada lhe aconteceu. Foi colocar os pés nos EUA no final de 2019, para onde foi em viagem de férias, para ser detido e sujeito a processo, que corria em segredo de justiça.
Fico imaginando onde estaria um político como Renan Calheiros se fosse nos EUA.
Em qualquer lugar do mundo civilizado, uma figura como a do senador Renan Calheiros já estaria relegado há muito tempo ao mais profundo ostracismo. Mais precisamente, desde 2007, quando renunciou à presidência do senado para evitar a cassação por seus pares.
No entanto, no Brasil, Renan está por aí, dando as cartas, como um interlocutor político legítimo. Inclusive, segundo a notinha do jornal, Renan teria sido “repaginado” pela CPI.
O jornalista, para escrever isso, deve entender muito de política. Eu, na minha invencível ignorância, penso o contrário: essa CPI nasceu com um vício de origem chamado Renan Calheiros. Simplesmente não dá para levar a sério uma comissão de inquérito que tenha Renan como relator. Tanta gente com uma folha corrida menos, digamos, polêmica, e os senadores da oposição não conseguiram escolher ninguém melhor que Renan Calheiros. Chego a pensar que foi tática de algum senador governista para minar a credibilidade da CPI.
Não deveríamos estar surpresos. Em um país onde um político com condenação confirmada em três instâncias da justiça é tratado como um player normal do jogo político e até como um estadista, Renan Calheiros é café pequeno. No fim, a mesma inteligentzia tupiniquim que acha tudo isso muito normal, rasga as vestes diante das “injustiças” brasileiras. Vai vendo.
Existe consenso no mainstream do pensamento econômico de que a qualidade das instituições determina a probabilidade de sucesso de um país. Por instituições, entendemos coisas como as leis e o enforcement das leis, a estabilidade do sistema político, a qualidade e independência das agências governamentais e a facilidade para se empreender, por exemplo.
Muitas vezes nos perguntamos por que certas coisas são de um jeito e não do outro, porque não podemos funcionar como os países mais desenvolvidos funcionam. E não vale dizer que os países ricos funcionam melhor porque são ricos. É o justo oposto: porque as coisas funcionam bem é que esses países são ricos. EUA e Brasil tinham nível de riqueza semelhante há três séculos. O que aconteceu lá que não aconteceu aqui? Boas instituições.
Mas as instituições não foram outorgadas por Deus no início dos tempos a cada país, de modo que uns tiveram sorte de contar com boas instituições e outros, nem tanto. Não. As instituições são construções humanas. Mais especificamente, são construções das elites de cada país. Diz o velho ditado que jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém colocou. O jabuti das instituições, boas ou ruins, foi colocado pelas elites de cada país.
Pedro Fernando Nery, em um artigo de 08/12 no Estadão (Piores elites do mundo, leia aqui), cita um trabalho em que os autores, Tomas Casas e Guido Cozzi, da Universidade St. Gallen, na Suíça, criaram um índice de qualidade das elites, inspirados nas ideias dos economistas Acemoglu e Robinson, autores do best-seller Por que as Nações Falham. O Brasil aparece em 27º lugar em um conjunto de 32 países. Fui atrás do trabalho, que pode ser consultado aqui.
Trata-se de uma abordagem bastante interessante, que parte de três pressupostos:
As elites são uma inevitabilidade empírica, dominando a economia por meio do poder político. Elas proveem a capacidade de coordenação necessária dos recursos da economia, sejam humanos, financeiros ou baseados no conhecimento.
Ao estabelecer instituições que permitem a coordenação, as elites moldam o desenvolvimento humano e econômico, o destino das sociedades, a riqueza das nações e sua ascensão e queda.
Para sustentar sua posição, as elites administram modelos de negócios que acumulam riqueza. Elites de alta qualidade administram modelos de negócio de Criação de Valor, que fornecem para a sociedade mais do que dela tomam. Elites de baixa qualidade fazem o oposto, ao operar modelos de Extração de Valor da sociedade.
O que são elites?
Para começo de conversa, é preciso definir o que se entende por elite. Segundo os autores do índice,
“Elites são grupos estreitos e coordenados, que contam com modelos de negócios que conseguem acumular riqueza com sucesso”.
Modelos de negócios, neste contexto, não são necessariamente empresas. É qualquer mecanismo de acumulação de riqueza. Não se está entrando no mérito de se se trata de elites econômicas, políticas ou culturais. Qualquer um que acumula riqueza (em relação à média da riqueza da população do país), faz parte da elite. Tomando dados do IBGE (Pnad contínua – 2019), uma pessoa que recebe mais do que R$ 3.500 por mês está entre as 15% que mais tem renda no país, e faz parte do grupo que acumula 50% da renda do país.
Claro, ninguém que receba R$ 3.500 por mês se considera elite. No entanto, as estruturas estão, de alguma maneira, montadas para concentrar a renda do país dessa maneira. Se R$ 3.500 não parece muito, lembre-se de que a parcela dos 80% mais pobres da população vive com uma renda mensal média de R$ 850. Sim, o Brasil é um país pobre.
Uma outra forma de ver a questão é focar na demonização que as esquerdas costumam fazer das elites empresariais, as quais, em conluio com políticos inescrupulosos, seriam responsáveis por criar regras para proteger os seus interesses. Esta é a imagem de “elite” que a maioria tem em mente quando ouve esta palavra. No entanto, elite é muito mais do que isso. Lembro, a propósito, de um artigo de Samuel Pessoa, em que o economista descreve perfeitamente uma das muitas vertentes da elite brasileira. Pessoa toma como exemplo a personagem principal do filme Aquarius, que virou ícone da luta contra o “golpe” do impeachment, quando seu elenco apareceu empunhando cartazes “anti-golpe” no Festival de Cannes.
Clara, a personagem encenada por Sônia Braga, é o símbolo da resistência contra a especulação imobiliária, quando se recusa a vender seu apartamento para uma incorporadora. Pergunto: tem mais simbolismo anti-elite do que isso? Pois bem. Pessoa descreve Clara: aposentada pelo teto do INSS, acumula a pensão do falecido marido, ex-professor titular de uma universidade federal. Ele comenta: é exclusividade brasileira poder acumular a própria pensão com a do marido. Clara possui 4 outros apartamentos, provavelmente adquiridos com financiamento do antigo BNH. A hiperinflação comeu o saldo devedor, e estes apartamentos provavelmente custaram a Clara muito menos que à sociedade brasileira, pois políticos demagogos cancelaram a correção da dívida. Com sua “luta contra a especulação das elites”, Clara impede a geração de empregos na construção, aumento de renda para a incorporadora, aumento de patrimônio para os outros moradores do prédio, aumento de IPTU para a prefeitura. Quer dizer, a esquerda e seu discurso anti-elite convive e fomenta distorções que também concentram renda. E muito.
Os autores descrevem as elites que criam valor como aquelas que aumentam o bolo, enquanto as elites que extraem valor são aquelas que aumentam a sua fatia no bolo. Essa definição faz lembrar a luta pela distribuição de uma renda que não existe. Na verdade, trata-se da luta entre diferentes elites em busca de aumentar a sua fatia do bolo.
Vejamos, a seguir, como o índice mede a capacidade que as elites têm de criar ou extrair valor da sociedade.
Metodologia
Como identificar elites que criam valor para a sociedade e elites que extraem valor da sociedade? Os autores do estudo dividem essa capacidade em dois sub-índices: Valor e Poder.
O sub-índice Valor mede a capacidade das elites de criarem valor para a sociedade, por um lado, ou de extraírem valor da sociedade, por outro. Já o sub-índice Poder mede o potencial de extração de valor. Quanto mais poder as elites possuem, mais valor podem extrair da sociedade. Portanto, quanto mais poder as elites têm, menor a sua qualidade. Esse conceito é interessante, porque parte do pressuposto de que, tendo poder, as elites irão necessariamente extrair valor da sociedade. Isso, em geral, é verdade. Uma notável exceção é Cingapura, primeiro lugar no ranking, em que a elite tem muito poder, mas usa, digamos, “para o bem”, ou seja, para criar valor para a sociedade. Veremos isso mais adiante.
Cada um desses dois sub-índices é medido em duas dimensões: a dimensão política e a dimensão econômica. As esferas política e econômica são o palco onde as elites exercem o seu poder de criar ou de extrair valor para e da sociedade.
O quadro a seguir resume a relação entre os dois sub-índices e as duas esferas, e os itens medidos em cada combinação, chamados pelos autores de Pilares, com seus respectivos pesos no índice:
Vejamos a seguir o que significa cada um desses 12 pilares (entre parênteses, a nomenclatura em inglês). Estes 12 pilares são medidos através de 72 indicadores dos mais diversos. Para mais detalhes sobre como estes indicadores são usados, recomento verificar o trabalho diretamente aqui.
Poder Político
Regras do Estado (State Capture): mede a concentração de poder dentro Estado.
Medidas: Corrupção política, Mobilidade Social, Descentralização política, Descentralização administrativa, Globalização política, Índice do Poder Feminino, Resposta do governo às mudanças.
Regulação dos negócios (Regulatory Capture): mede o poder de grupos de interesse de capturarem as regras que regem os negócios, formando monopólios ou oligopólios de fato.
Medidas: Qualidade institucional, Capitalismo de compadres, Risco de expropriação, Proteção a acionistas minoritários, Facilidade para descumprir regras.
Regulação da mão de obra (Human Capture): mede o poder dos funcionários públicos de capturar as regras para o seu próprio benefício.
Medidas: Taxa de sindicalização, Participação dos funcionários públicos no total dos empregados, Poder dos acordos coletivos, Índice de escravidão, Desigualdade de gênero.
Poder Econômico
Dominância do setor econômico (Industry dominance): medida pelo grau de diversidade da economia. Quanto menos depender de um ou dois setores econômicos, menos o país estará sujeito a políticas extrativistas.
Medidas: Top 3 setores exportadores como % do PIB, Top 3 setores como % do PIB, Índice de complexidade econômica, Top 3 setores como % do valor agregado.
Dominância da firma (Firm dominance): medida do grau em que poucas companhias dominam a economia de um país.
Medidas: Lucratividade das 10 maiores empresas, Pequenas e médias empresas por habitante, Exceções a leis antitruste, Riqueza dos bilionários como % do PIB, Valor de mercado das top 10 empresas como % do PIB, Receitas das top 3 empresas como % do PIB, Receitas das top 30 empresas como % do PIB, Concentração bancária.
Destruição criativa (Creative destruction): termo emprestado de Schumpeter, mede a capacidade de inovar.
Medidas: Turnover das empresas listadas em bolsa em 15 anos, Turnover das empresas listadas em bolsa em 3 anos, Empreendedorismo, Investimento em venture capital, Pesquisa e Desenvolvimento em % do PIB, Barreiras para start-ups, Novas firmas por habitante, Término de firmas por habitante.
Valor Político: reflete as decisões que canalizam ou desviam recursos da inovação e dos setores que criam valor.
Renda distribuída para a sociedade (Giving income): mede como o governo maneja as finanças públicas de modo a prover bens públicos (educação, saúde, etc).
Medidas: Subsídios e transferências como % das despesas, Redistribuição regional como % do orçamento, Expectativa de permanência na escola, Gastos em serviços públicos como % do PIB, Resposta a pandemias, Segurança contra Covid-19.
Renda extraída da sociedade (Taking income): mede como o governo coleta renda da sociedade.
Medidas: Alíquota de imposto das empresas, Diferença entre alíquota de imposto sobre o capital e sobre a renda, Taxa de homicídio, Concentração de renda entre os 10% mais ricos, Descentralização fiscal, Receita fiscal como % do PIB, Mortos em guerra por habitante.
Renda “não merecida” (Unearned income): mede a renda extraída de recursos não ganhos com produção; por exemplo, a dependência de commodities ou o tamanho da dívida pública, que é um empréstimo sobre o futuro.
Medidas: Propensão à doença holandesa, Controle estatal de empresas, Performance ambiental, Dívida pública como % do PIB.
Valor econômico: mede diretamente o Valor Criado (ou Extraído) dos 3 mercados da economia.
Produtos & serviços (Producer rent).
Medidas: Liberdade de comércio exterior, Barreiras à entrada de novos negócios, Investimento Estrangeiro Direto como % do PIB, Barreiras ao Investimento Estrangeiro Direto, Índice de globalização, Gastos com saúde como % do PIB, Abertura para negócios.
Mercado de capitais (Capital rent).
Medidas: Taxa neutra de juros, Inflação, Apreciação da moeda, Demanda por ouro como % do PIB, M&A como % do investimento.
Mercado de trabalho (Labor rent).
Medidas: Taxa de desemprego, Participação da força de trabalho sobre o total da população, Diferença entre o salário real e o aumento da produtividade da mão de obra, Razão de dependência (trabalhadores/não-trabalhadores), Taxa de desemprego dos jovens, Diferença salarial entre gêneros.
Análise dos Resultados
O ranking final pode ser visto na tabela a seguir:
O ranking é dado pela coluna EQx. Além disso, podemos observar o ranking pelos sub-índices Poder e Valor. No caso do ranking de Poder, quanto maior o score, menor é o poder que as elites têm de extrair valor. E, no caso do ranking de Valor, quanto maior o score, maior é o Valor criado pelas elites para a sociedade.
Vimos anteriormente que, no critério dos autores, o score de Valor vale 2/3 da pontuação final, enquanto o score de Poder vale 1/3. A lógica dessa ponderação é de que, no final do dia, o que importa é o Valor criado. O Poder serve para potencializar o Valor extraído. Assim, mesmo que as elites concentrem muito Poder, se não usarem esse Poder para extrair Valor da sociedade, está valendo.
Para fazer uma análise mais sistemática dos resultados, vamos usar o gráfico a seguir, que relaciona Valor com Poder:
Os autores dividem os países em quatro grupos, a depender de sua colocação nesse gráfico (os quadrantes são divididos pelas medianas das séries, de modo que temos metade dos pontos acima e metade abaixo, metade à esquerda e metade à direita):
Elites Competitivas (quadrante verde – alta geração de Valor e baixo Poder de extração): é a situação que mais se assemelha a um livre mercado. Este quadrante é caracterizado por elites altamente inovadoras e lucrativas que chegam ao topo em ciclos curtos de rápida sucessão. As disputas entre as elites produzem uma infinidade de bens públicos, incluindo desenvolvimento econômico e humano. As possibilidades tecnológicas são aproveitadas e o crescimento econômico de longo prazo é maximizado e limitado apenas pela capacidade de inovação do ser humano.
Elites Ilustradas (quadrante azul – alta geração de Valor e alto Poder de extração): são elites poderosas que dominam a economia política. Essas coalizões dominantes, no entanto, abstêm-se de extração de Valor apesar de sua capacidade de extraí-lo. Ao contrário, optam por gerenciar modelos de negócios que criam Valor. Nesse quadrante, as elites são muito poderosas e, no entanto, criam Valor substancial.
Elites Rentistas (quadrante vermelho – baixa geração de Valor e alto Poder de extração): países com economias neste quadrante são caracterizados por elites poderosas e altamente dominantes, que consolidaram modelos de negócios de extração de Valor. Tendo capturado as alavancas do Poder e superado a resistência das forças produtivas, as elites desenham instituições que favorecem os seus modelos de negócios às custas de não-elites cada vez mais desmoralizadas e que têm pouco incentivo para investir em atividades de criação de Valor.
Elites em Luta (quadrante amarelo – baixa geração de Valor e baixo Poder de extração): neste quadrante, uma miríade de diferentes agentes de baixo Poder procuram extrair Valor, em um ambiente de ausência de modelos de negócio de geração de Valor. Este é um modelo instável, que conta com elites extrativistas, mas que ainda não conquistaram Poder. Grupos emergentes se engajam em disputas por posições dominantes, que lhes permitirão moldar as instituições que irão, por fim, proteger seus modelos de negócios no futuro.
Observe que, de maneira geral, os países encontram-se nos quadrantes verde (Elites Competitivas) ou vermelho (Elites Rentistas). Alguns encontram-se na fronteira, constituindo-se em casos interessantes.
Por exemplo, as elites em Cingapura e África do Sul detém praticamente o mesmo Poder de extração de valor. No entanto, o modelo de negócios em Cingapura cria muito mais Valor do que na África do Sul. As elites em Cingapura detêm muito mais Poder de extração do que outros países com modelos de alta criação de Valor. Seria um exemplo de Elite Ilustrada, que não usa o seu Poder para extrair Valor da sociedade, pelo contrário. Já as elites da África do Sul detêm muito menos Poder de extração do que outros países com modelos de baixa criação de Valor. Ou seja, apesar de não ter elites com alto Poder de extração, o país não consegue criar modelos de criação de Valor. Seria um exemplo de Elites em Luta, grupos em busca de uma posição de dominância para perpetuarem o modelo de negócio de baixa criação de Valor.
Como estão as elites brasileiras?
As elites do Brasil, assim como de vários outros países pobres, encontram-se no quadrante vermelho. Ou seja, são elites rentistas, que usam o seu Poder para extrair Valor da sociedade. Mas mesmo dentro desse quadrante vermelho, há diferenças significativas entre os países. As elites de Botswana, por exemplo, com um modelo de negócios que cria mais Valor, estariam mais próximas de serem elites ilustradas do que o Brasil, cujas elites estariam mais próximas do modelo sul-africano, de Elites em Luta.
Vamos detalhar um pouco mais onde estão os problemas brasileiros, em comparação com seus pares. Para isso, vamos explorar os detalhes do índice, isto é, os seus pilares, e verificar como as elites brasileiras se saíram em cada um deles.
Nesta tabela, mostramos a nota do Brasil em cada um dos pilares, a média de todos os países também em cada um dos pilares e o z-score, ou seja, quão distante está o Brasil da média, considerando o desvio-padrão dos resultados de todos os países em cada um dos pilares e nos sub-índices.
Podemos observar que o país se sai mal principalmente no sub-índice Valor, que tem peso maior na ponderação (2/3). Os pilares que mais nos puxam para baixo (considerando o z-score) são o Mercado de Trabalho, Produtos e Serviços e Renda Extraída. Vamos lembrar quais são os índices que compõem cada um desses pilares.
No caso do pilar Mercado de Trabalho, temos, por exemplo, o índice de desemprego, a diferença entre o salário real e a produtividade da mão de obra (basta lembrar do nível do salário-mínimo vis a vis o nível de preparo médio do trabalhador brasileiro) e o desemprego dos mais jovens.
No pilar Produtos e Serviços, temos, por exemplo, abertura comercial (o país é um dos mais fechados do mundo) e barreiras à entrada de novas firmas.
Por fim, no pilar de Renda Extraída, temos taxa de homicídio (uma das mais altas do mundo), descentralização fiscal e carga tributária (a mais alta do mundo emergente).
Pode ser difícil relacionar cada um desses índices com a extração de valor por parte das elites. São consequências tão indiretas, que não ligamos uma coisa com a outra. Mas, segundo os autores do estudo, tudo tem a ver com a forma como o poder político e econômico é organizado em cada país. Consideremos, por exemplo, o índice de homicídios, que puxa para baixo o pilar Renda Extraída. Lembremos que, neste pilar, medimos como o governo extrai renda da sociedade.
Mas, afinal, o que tem o índice de homicídios a ver com a extração de renda? O vergonhoso índice de homicídios brasileiro é explicado de maneira diferente pela esquerda e pela direita. Pela esquerda, trata-se do resultado da má distribuição de renda, que leva à violência. Pela direita, é o resultado de instituições fracas, que não investigam, não julgam e não prendem de maneira eficiente. Tanto faz. Uma ou outra explicação levam à mesma conclusão: o homicídio representa a extração máxima de valor da sociedade, uma vida humana produtiva, resultado da ineficiência das elites. Este é o sentido.
Qual a solução? Existe solução?
Observemos novamente o gráfico de relação Valor vs. Poder.
O objetivo dos países é subir na escala da criação de Valor. Segundo a lógica do ranking, grande parte dos países alcançou sucesso porque suas elites são fracas, não conseguem extrair valor da sociedade (quadrante verde). Mas as elites brasileiras são menos extrativas que vários de seus pares, segundo os índices usados no estudo. Portanto, poderíamos ter modelos de negócios que criam mais valor para a sociedade. Botswana, Indonésia e Casaquistão, para citar 3 países com elites até mais extrativas do que a brasileira, contam com modelos de negócios que proporcionam maior criação de valor.
De qualquer forma, apesar de ser possível, o que nos mostra o modelo é que é mais difícil estabelecer modelos de criação de valor com elites mais extrativistas. Ou, inversamente, elites menos extrativistas levam quase que naturalmente a modelos de negócios que agregam mais valor para a sociedade (a África do Sul parece ser a única exceção a essa regra). Óbvio que estou aqui supondo uma relação de causa-efeito, da natureza do poder político para a criação de valor, e não vice-versa. Além disso, estamos analisando uma foto e não o filme. Não sabemos como essas características evoluíram no tempo. Mas essa relação de causa-efeito parece ser a mais intuitiva.
São muito úteis índices como o Doing Business, do Banco Mundial, que nos aponta caminhos para aumentar a produtividade da economia. No entanto, estas estruturas burocráticas não estão aí por acaso. Elas servem elites rentistas, que lucram e mantém suas posições ao extrair Valor da sociedade através dessas mesmas estruturas. Portanto, e é isso o que nos diz a Economia Política, a maneira de montar modelos de negócios que criam Valor para a sociedade é diminuir o Poder das elites de extrair Valor da sociedade.
A pergunta do milhão é: como diminuir o Poder das elites?
Minha crítica ao índice
A ideia de um índice de poder das elites é muito boa. Permite-nos uma outra visão sobre o problema de criação de valor nas sociedades, mudando o foco da operacionalização dessa construção de valor para um conceito de economia política que foca a gênese das estruturas que extraem valor da sociedade. Como mencionei no início, tira o foco do jabuti em si para a mão que colocou o jabuti na árvore.
Mas o índice, per se, não endereça soluções para o problema. Vou fazer um paralelo com o índice Doing Business. O Doing Business é um índice formado por vários quesitos que atrapalham a vida do empreendedor. O foco é na desburocratização. Portanto, para que um país melhore sua posição no ranking, basta endereçar diretamente os problemas apontados: número de dias necessários para abrir ou fechar uma empresa, enforcement de contratos, tempo para obter eletricidade etc. São critérios objetivos que, se melhorados, ajudam o empreendedor a criar valor.
O Ranking das Elites, por outro lado, é calculado usando-se como base medidas que não se relacionam diretamente com o Poder que essas elites detêm. Funcionam como o termômetro que mede a febre, mas não nos dizem nada sobre a doença em si. Por exemplo, o pilar Regras do Estado, dentro do Poder Político, é medido por 7 índices. Um deles é o nível de corrupção no governo. Certo, a corrupção é um sinal de captura do Estado pelas elites. Mas o que leva à corrupção? Se não tivermos um diagnóstico objetivo das causas últimas da corrupção governamental, de nada servirá ranquearmos os países dos mais aos menos corruptos. Claro, sempre se pode combater a corrupção e tentar melhorar a posição no ranking. Mas, como vimos no episódio da Lava-Jato, qualquer tentativa de combater a corrupção sem mudar as estruturas sobre as quais as elites exercem o seu poder é como enxugar gelo. Mudarão os personagens, mas a corrupção permanecerá como regra para se fazer negócios.
E é este diagnóstico, em minha opinião, que falta a este índice. Óbvio que não é fácil (e talvez não seja sequer possível), construir um índice de determinantes do Poder político das elites, e não somente um índice que mede as consequências desse poder político. Mas, se não for feito, o que obtemos (como é o caso) é mais um índice que tem alta correlação com renda per/capita, IDH, competitividade e outros índices de riqueza e produtividade.
Como afirmei acima, este índice de qualidade das elites é útil por mostrar a mesma realidade de outro ângulo, e chamar a atenção para as causas últimas (causas políticas) da pobreza dos países. Mas precisa caminhar muito para servir como instrumento de mudanças.